O desnorte no PSD…

A votação humilhante em Fernando Negrão para líder parlamentar foi reveladora do estado de espírito que atravessa o PSD, dividido e crispado por uma liderança apostada em dar ‘tiros no pé’.

Aguerra civil’ instalada no interior do PSD, por culpa declarada do líder recém-eleito, não compromete apenas a oposição tão necessária a um Governo nascido ao arrepio das eleições. Complica, também, a vida a Marcelo Rebelo de Sousa – que o recebeu em Belém, pela segunda vez, com curtíssimo intervalo – e lança uma incerteza a prazo. 

Entretanto, António Costa tem razões para estar feliz. Bafejado pelos favores presidenciais – desde o primeiro momento em que Cavaco Silva o empossou sem necessidade -, e amparado repetidamente por Marcelo, que lhe pôs sempre ‘a mão por baixo’ em situações críticas (que poderiam ter liquidado as suas aspirações políticas), o primeiro-ministro em exercício deverá sentir-se um homem de sorte.

Aconchegado na ‘geringonça’, em cujos varais conseguiu amarrar o PCP e o Bloco, Costa tem gerido o destino com ‘jogo de cintura’ e arrogância crescente, à medida que sente o chão mais firme.    

Pedro Passos Coelho serviu-lhe como ‘adversário de estimação’, zurzindo-o sem cerimónia, mesmo quando o respeito institucional implicaria maior contenção e decoro. Viciado na escola de Sócrates, Costa terá assimilado, também, os ensinamentos (pouco diplomáticos) de Augusto Santos Silva, um ministro de todas as pastas, que comparou a concertação social a «feiras de gado» e não disfarçou o seu gosto em «malhar na direita».

Foi com este lastro – e decerto um infinito gozo – que Costa recebeu Rui Rio em S. Bento, com mesuras pouco habituais.

Ora, que tem Rio para oferecer a mais que o PCP e o Bloco? Com que custos?

É essa a dúvida que fica a pairar, colocando na defensiva até o ‘convertido’ Pedro Santana Lopes. Não basta a ideia feita de um ‘Governo-sombra’ para contrapor às sombras que se derramam sobre o futuro próximo.

Na Justiça, por exemplo. Quando estão em cima da mesa processos judiciais tão complexos e mediáticos como os de Sócrates, Ricardo Salgado ou Rui Rangel, seria expectável que coubesse a Rio o impulso de valorizar o papel da Justiça e, nesta, o do Ministério Público. Ao contrário, revelou-se timorato ou, no mínimo, equívoco. 

A sua exótica escolha de Elina Fraga para a direcção do partido poderá ter agradado a Marinho e Pinto ou a Sócrates, mas foi um enorme passo em falso.  

Há quem suspeite estar a ser cozinhado à sorrelfa um outro ‘pacto da Justiça’ destinado a ‘domesticar’ o Ministério Público (releiam-se as conclusões do último congresso dos magistrados públicos, na Madeira, onde consta que «há uma intenção clara do poder político em condicionar a autonomia do Ministério Público na investigação criminal»).Os juízes vêm depois. 

A votação humilhante em Fernando Negrão – por sinal um antigo juiz – para líder parlamentar foi reveladora do estado de espírito que atravessa o PSD, dividido e crispado por uma liderança apostada em dar ‘tiros no pé’.

Rio finge não ter percebido que o PS actuou durante uma legislatura como se não tivesse assinado o memorando da troika e fosse alheio ao desgoverno até 2011, no qual pontificaram António Costa e outros ministros entretanto reaparecidos.

Há no PS uma patologia amnésica, que reaparece sempre que convém. Recorde-se, a propósito, uma entrevista de Sócrates ao jornal La Voz de Galicia na qual desfiou o rosário das suas mágoas, por sentir que «tudo acabou quando me detiveram e tanto ele [António Costa] como a cúpula do PS me viraram as costas». 

Há uma espécie de bipolaridade estranha no comportamento socialista. Ora protege afincadamente quem dos seus ‘caiu em desgraça’, ora volta-lhes as costas… 

Já as desavenças na família social-democrata, não sendo inéditas, podem indiciar um elevado ‘risco sísmico’, em cujo epicentro surge Rui Rio de braço dado com Elina Fraga, um caso sério de inaptidão, como ficou provado no penoso naufrágio que foi a sua entrevista à SIC Notícias, cheia de sorrisos postiços.   

A ‘revolta’ da bancada parlamentar confirmou esse mal-estar. E a frouxa prestação de Negrão, ao estrear-se na liderança dos deputados, cheio de delíquios de «oposição construtiva», não ajudou a creditá-lo e deixou espaço ao CDS. 

O ‘namoro’ com António Costa pode abrir um fosso sem retorno, que Assunção Cristas se prepara para aproveitar, assumindo-se como única antagonista às esquerdas unidas.     

O Estado de Direito está em jogo, de uma forma mais sofisticada do que no tempo de Sócrates. Com a agravante de muitos media sobreviverem debilitados e sem condições para desempenharem a função de ‘quarto poder’ ou de ‘contrapoder’, fundamentais em democracia. Depois, Rio não convive bem com jornalistas.

As armadilhas estão montadas. Por ironia do destino, Rio em vez de um norte trouxe o desnorte ao PSD, ao ‘candidatar-se’ a ‘ajudante’ de Costa…