Cais do Ginjal. E das ruínas se faz futuro

Já foi um ponto náutico importante, a base industrial da margem sul do Tejo e o sustento de centenas que viviam da pesca. Hoje tem apenas dois restaurantes, milhares de graffiti e armazéns ao abandono. Mas não por muito tempo.  A câmara traçou um plano revolucionário para o Cais do Ginjal e, não tarda, a…

Cais do Ginjal. E das ruínas se faz futuro

Nas paredes do “Ponto Final” há fotografias de Álvaro Cunhal, Mário Soares, Fernando Rosas e até de Maria Vieira. Há recortes de artigos escritos em japonês, turco e alemão, fotografias de uma zona ribeirinha pintada a preto e branco e anúncios do tempo em que uma dose de sardinhas custava mil escudos. Aberto há 50 anos, o restaurante sobreviveu à passagem para o euro, a uma Almada menos à esquerda do que aquelas das fotografias da parede e, para já, ainda não foi uma das vítimas da humorista, cujo ódio tem direções tão distintas como o cozido à portuguesa do Avillez ou os plágios no Festival da Canção.

Num sítio de pratos originais e pouco dados ao gourmet, a casa está sempre cheia, até mesmo num último dia de fevereiro em que a maré cheia faz do simples ato de entrar no restaurante um autêntico desafio. “Acho que isso até é um pormenor que dá piada ao restaurante”, diz André Coelho. É isso e uma esplanada “que dá à refeição um toque de romantismo”, garante o proprietário, como se falasse já com saudade de algo que teme que acabe com a renovação do cais. “Não é que eu não queira ver isto arranjado, mas é o chamado pau de dois bicos: claro que vai ficar mais bonito, mas vamos perder o estatuto de sermos um dos poucos sítios que trazem cá pessoas.” 

De facto, no plano de pormenor previsto para o Cais do Ginjal, o “Ponto Final” e o vizinho “Atira-te ao Rio” deixam de ser os únicos pontos a pedir uma paragem naquele quilómetro à beira-rio. Para o espaço está prevista a construção de casas, hostels, espaços para indústrias criativas, lojas, praças e passeios largos. Mas, por enquanto, o cais mantém-se curto e obriga a um passeio feito com o rio a tentar galgar a margem de um lado e armazéns ao abandono do outro.

Casa de pescadores A única porta entreaberta aguça-nos a curiosidade sobre o que existe para lá desta fachada de antigas fábricas ligadas à pesca. Fintamos a lama e as poças de água para dar de caras com os vestígios de que há alguém a ocupar aquilo que em tempos foi uma fábrica de fazer redes e serviu como espaço para reparar navios. Por ali circulam dezenas de galinhas e patos, há coroas de natal nas portas presas por um fio, restos de mobília, couves a crescer do chão e um cão que dá o alerta sempre que alguém se aproxima.

Não tarda até que David Silva venha espreitar a presença estranha num espaço que há anos é ocupado por pescadores. Ao todo são 15 homens, divididos por quatro embarcações que, à falta de um espaço disponibilizado pela câmara, fazem das antigas fábricas uma espécie de casa. “Não dormimos aqui, atenção”, esclarece, “mas temos aqui um espaço que não vamos encontrar em mais lado nenhum. Olhe ali, até temos galinhas e horta”, aponta.

É que, apesar de parecer terra de ninguém, a verdade é que o Cais do Ginjal tem dono. O grupo madeirense AFA é a entidade detentora do espaço e, à falta de investimento, cede os armazéns aos pescadores a custo zero.

Com o plano prestes a entrar em prática, o grupo de quem vive do rio teme pelo futuro. “Se até lá não houver solução, no dia em que me tirarem daqui pego nas minhas coisas e despejo o camião em frente à câmara”, garante.

Cais do passeio Se o cais é de quem o trabalha, também é de quem o usa para passeio. “Lá vai o tempo, menina, que agora já me é difícil ir lá abaixo.” Com 77 anos, Alexandrina Oliveira prefere ficar pelas terras altas da arriba na hora de passear o cão.

Vive a uma ribanceira de distância do cais que, durante anos, usou para passeio e até para banhos de rio. “Os meus netos vinham de Lisboa mortinhos por esta liberdade”, conta. 

Agora, já nem os netos têm idade para essas coisas nem Alexandrina quer descer para um sítio em ruínas. “Olhar para ali e ver o que aquilo já foi…”, diz, em tom de lamento, apontando para o resto das paredes que, um dia, foram a fábrica que sustentou a família. 

É por lá que passa Katerina, de fones nos ouvidos, pés descalços para evitar molhá-los com a maré alta e completamente alheia às lamúrias de quem fala daquele cais com saudade. 

Quase que custa interromper este cenário digno de videoclipe, mas há que saber o porquê de um passeio ali numa semana de temporal. “Vim visitar uma amiga que vive em Almada e que me disse que isto, daqui a pouco tempo, vai mudar tudo. Não podia ir embora sem ver o original”, conta. 

Katerina elogia as cores dos graffiti e a proximidade do rio, mas acredita que algumas obras tornariam o espaço mais atrativo. “Vai chamar mais gente e não será certamente tão pacífico como agora, mas c’mon, eu venho da Bielorrússia, vocês vivem num autêntico paraíso”.