A Forma da Água. O vencedor possível para uma noite de Óscares mexicana

Na edição em que os Óscares cumpriram 90 anos, Trump pode ter sido nome quase nada repetido. Mas o recado ficou dado, numa noite que sem ser de grandes vencedores se fez sobretudo mexicana. E de Frances McDormand. Por todas as mulheres e pela representatividade.

Depois dos Globos de Ouro e dos BAFTA, nada fazia prever que “A Forma da Água”, o mais nomeado para a edição em que os Óscares completavam 90 anos, pudesse sair do Dolby Theatre de Los Angeles como o grande vencedor de uma noite que não esteve para eles. Das 13 nomeações, o envolto em polémica (pelas acusações de plágio que deram já origem a um processo judicial) filme de Guillhermo del Toro, venceu em quatro, e com essas mais do que qualquer outro. Para o realizador mexicano, o esperado Óscar de Melhor Realizador mas também o de Melhor Filme. 

Inesperado mas que Jimmy Kimmel quase previra quando no seu monólogo de abertura colou a história de amor entre uma mulher e uma misteriosa criatura marinha e o #MeToo, a propósito do filme mais nomeado “no ano que recordaremos como o ano em que os homens fizeram tanta porcaria que as mulheres começaram a sair com peixes”. Não fosse Frances McDormand, protagonista do grande momento da noite, e seria o Time’s Up tema quase ausente entre uma red carpet resgatada do preto como dress code para a normalidade e discursos de agradecimentos às famílias.

Viria ela salvá-la (salvar-nos?) então, quando já no final da noite subiu ao palco para receber o seu segundo Óscar de Melhor Atriz Principal das mãos de Jodie Foster e Jennifer Lawrence – que, a propósito, não caiu desta vez, mas voltou a dar que falar nos Óscares. A hiperventilar, palavras suas, entre gargalhadas nervosas, a protagonista de “Três Cartazes à Beira da Estrada” haveria de pedir que alguém a segurasse caso caísse. Porque tinha “umas coisas para dizer”

Pousando o Óscar no chão – havia que ganhar “alguma perspetiva” – pôde então dizê-las: “Se puder ter a honra de ter em pé comigo as mulheres nomeadas em todas as categorias nesta noite… As atrizes – Meryl, se o fizeres toda a gente o fará, vá lá [e Meryl Streep, com ela nomeada pela 21.ª vez para aquele Óscar] – as realizadoras, as produtoras, as argumentistas, a diretora de fotografia, as compositoras, as designers, vamos!” 

E pediu: “Olhem à vossa volta, olhem, senhoras e senhores, porque todas nós temos histórias para contar e projetos para os quais precisamos de financiamento. Não nos venham falar nisso nas festas desta noite, convidem-nos para os vossos escritórios daqui a um par de dias, ou venham aos nossos, como preferirem, e contar-vos-emos tudo sobre eles. Tenho duas palavras para deixar convosco esta noite, senhoras e senhores”, e assim terminou: “Inclusion rider”. McDormand referia-se a uma cláusula de representatividade entre elencos e equipas técnicas que pode ser exigida pelos atores nos seus contratos.

“A representatividade importa”

Antes disso, sobre representatividade apenas Jimmy Kimmel na abertura da cerimónia a que chegava pela primeira vez nomeada uma mulher para o Óscar de Melhor Fotografia [Rachel Morrisson, por “As Lamas do Mississipi”]. “Se é um nomeado que não está a fazer História, tenha vergonha. A Greta Gerwig é a primeira mulher nomeada para o Óscar de Melhor Realização em oito anos, e isto é importante”, notava o anfitrião. “Apenas 11% dos filmes são realizados por mulheres. Temos um longo caminho a percorrer aí, e temos um longo caminho a percorrer quanto à igualdade nos salários.” E voltou-se então para Jordan Peele:  “Parabéns a triplicar para o miúdo da Comedy Central que teve um grande sucesso com o seu ‘Foge’. O Jordan é a terceira pessoa em 90 anos [de Óscares] a ser nomeado pela realização, argumento e melhor filme no seu filme de estreia.”

Notável pareceu-lhe também que entre nove nomeados para Melhor Filme, “apenas dois” tenham gerado uma receita a passar a marca dos 100 milhões de dólares. “Não é isso que importa. Não se fazem filmes como o ‘Chama-me Pelo Teu Nome’ pelo dinheiro. Fazemo-los para irritar o [vice-presidente dos EUA] Mike Pence. Certo?”

Pantufas, bandeiras e uma mota de água

Daí por diante, noite (quase sempre) morna. Gary Oldman, por exemplo, a agradecer à família e ao companheiro que foi Churchill na rodagem de “A Hora Mais Negra” – que, à segunda nomeação, lhe deu o Óscar de Melhor Ator Principal. Depois da promessa (de resto, cumprida) de uma mota de água para o vencedor com maior capacidade de síntese, brincadeiras com bandeiras ou com pantufas – assim e com os sapatos na mão apareceram Tiffany Haddish e Maya Rudolph. Mas só até chegar o México.

Antes dos anúncios finais que fariam do mexivcano Guillermo del Toro o vencedor da noite (o de Melhor FIlme veio de novo, e desta vez sem erros, pelas mãos da dupla Faye Dunaway e Warren Beatty), haveria “Coco”. Animação da Disney-Pixar feita história de resistência de um menino de 12 anos que, de uma cidade imaginária no México, é transportado para o mundo dos mortos, para os Óscares de Melhor Animação e de Melhor Canção Original, por “Remember Me”, de Kristen Anderson-Lopez e Robert Lopez, que saudou a celebração da música mexicana. 

“’Coco’ é a prova de que a arte pode mudar e unir o mundo, e isso apenas pode ser feito quando se tem um lugar para todos e em que todos sentem que podem ser ouvidos”, lembrou a produtora Darla K. Anderson sobre este filme para os autores urgente depois da chegada de Trump à Casa Branca. E a isto acrescentou o correalizador de ascendência mexicana Adrian Molina um dos soundbites da noite “Com ‘Coco’ tentámos dar um passo em frente em direção a um mundo em que todas as crianças possam ver nos filmes personagens que se parecem e falam e vivem como elas. Os marginalizados merecem sentir que são parte. A representatividade importa.”

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Vencedores e vencidos

Depois disto e numa noite renhida, viria só no final a confirmação de que seria no fim das contas “A Forma da Água” o vencedor de uma noite que já se fizera mexicana. Com quatro Óscares ao todo, foi o filme do realizador de “O Labirinto do Fauno” o mais premiado numa edição que, mais do que de vencedores, se fez de vencidos.

Nomeado em sete categorias, “Três Cartazes à Beira da Estrada”, de Martin McDonagh, venceu em apenas duas: para Frances McDormand, o Óscar de Melhor Atriz Principal, na companhia de Sam Rockwell como Melhor Ator Secundário, que deixou para trás nomeados de peso como Christopher Plummer (”Todo o Dinheiro do Mundo”) ou Willem Dafoe (”The Florida Project”). 

Depois de “A Forma da Água”, o mais premiado foi “Dunkirk”, de Christopher Nolan, mas apenas em categorias técnicas: Melhor Mistura de Som, Melhor Edição de Som e Melhor Montagem. Já “A Linha Fantasma”, de Paul Thomas Anderson, nomeado em seis categorias, venceu apenas numa: Melhor Guarda-Roupa (para Mark Bridges, que terminou mesmo a cerimónia de colete salva-vidas a bordo da prometida mota de água “no valor de 17.999 dólares”). 

Sem prémios mas sem grande surpresa, chegaram ao fim da noite “Lady Bird”, de Greta Gerwig, e “The Post”, de Steven Spielberg. Caminho melhor do que esses e o próprio original de 1982 de Ridley Scott fez “Blade Runner 2049”,  de Denis Villeneuve, vencedor nas categorias de Melhor Fotografia e Melhores Efeitos Visuais. Óscar de Melhor Argumento Adaptado foi para “Chama-me Pelo Teu Nome”, e de Melhor Argumento Original para “Foge”, de Jordan Peele. 

No Documentário, foi o Óscar para “Icarus”, de Bryan Fogel, sobre o doping na Rússia, deixando para trás “Olhares Lugares”, que provavelmente será o último filme de Agnès Varda, de 89 anos. Em assunto de Filme Estrangeiro, um ano depois de um Óscar político para “O Vendedor”, de Asghar Farhadi, a Academia de Cinema norte-americana premiou “Uma Mulher Fantástica”, realizado pelo chileno Sebastián Lelio e protagonizado pela atriz e cantora lírica transgéneropor Daniela Vega.