Alicia Kopf. “Cheguei à escrita para dizer que o rei vai nu e reivindicar que não estou louca”

Irmão de Gelo é o romance de uma artista visual catalã que virou sobre a cabeça o género e colheu louvores, com uma narrativa que se serve da épica dos exploradores do Ártico e Antártico no século passado para espelhar a vida íntima neste século

As tentações de enredadeira têm boa parte da culpa pela incapacidade da literatura para escapar a um paralisante fascínio pelos seus próprios processos, como uma aranha tornada indefesa pela própria teia. «Aqui devia estar a liberdade; dizem-vos que está, mas ninguém sai», alertou o «papa do surrealismo», André Breton – um diagnóstico tão actual como nunca dado o estado de impasse e até marasmo em que se vê a literatura, cada vez mais um retiro, uma casa de repouso, muito longe de qualquer frente de batalha, lendo um tanto alheada as notícias sobre  as experiências artísticas que hoje relançam o desafio e continuam a dar emprego aos horizontes. Alicia Kopf disse já noutra entrevista que vê o romance como um caminho do qual procura sair transformada. "Irmão de Gelo" é um desses livros que surgem causando uma certa comoção na paisagem, com um trote rasgado, seja pelos quatro prémios que conquistou como pelos elogios desmedidos da crítica (Enrique Villa-Matas disse mesmo que,  fosse em outro país que não Espanha, e o livro «teria mudado o próprio curso da história»). Felizmente, é uma obra que sabe defender-se do ruído gerado à sua volta. Um livro que cria a sua distância, engendra o seu próprio género, tendo começado como uma investigação para uma novo capítulo no trabalho desta artista visual catalã – cujo verdadeiro nome é Imma Ávalos (Girona, 1982) – e que só aceita que se lhe chame romance se for acrescentado o qualificativo «transgénero». Há no seu registo narrativo uma bestial porosidade, lê-se como um subtil entramado que fosse arquitectado a partir das entradas no caderno de um explorador em campo. Combinando pesquisa, ensaio, uma mescla de texturas entre a autobiografia e a autoficção, Kopf sabe dosear com uma mestria invejável elementos da épica que foi há um século a exploração  das regiões geladas do planeta, servindo-se dos seus protagonistas e heróis, intrigantes personagens reais como Scott, Amundsen e Shackleton, e entrando pelas suas narrativas familiares, assim abrindo margem a paralelos com a sua própria realidade íntima. Nesta teia, ciência e emoção vão-se calibrando, e emerge uma prodigiosa metáfora que devolve à literatura o seu ânimo prospectivo, leva-a de volta para a linha avançada onde estão os grandes riscos e a inovação.

Atribui ao entusiasmo com que este livro foi recebido a sua falta de paciência para os velhos rituais do modelo de construção romanesco?
Acredito que a sensibilidade actual é diferente daquela de há 100 anos, e é certo que muitos livros são escritos hoje como eram há 100 anos. Eu escrevo a partir de uma sensibilidade herdada do mundo das imagens, da ideia de montagem, não tanto da escrita narrativa mas da construção de um aparato estético-narrativo. E a minha abordagem é muito sintética também: tendo a concentrar as histórias, a criar unidades de sentido que, depois, combino.

E em que contribui o facto de ter partido para o livro como pesquisa para o seu trabalho de artista visual?
Há uma grande diversidade de referências, e tento que o livro se explique a si mesmo. Falo dessas referências – Enrique Villa-Matas é uma delas, Walter Benjamin e o "Livro das Passagens", o Proyecto "Nocilla Dream", de Agustín Fernández Mallo. Há também bastantes referências visuais. E não se deve apenas a uma questão de sensibilidade actual que molda este género a que chamamos «romance» e que precisava de uma certa renovação… E não sou eu quem está a fazê-lo, mas é algo que tem já a sua própria tradição, a de romper com as convenções narrativas.

A crise que se abateu sobre nós em 2008 surge em pano de fundo e às vezes é também dissecada. Julga que existe já uma consciência crítica e um processo artístico sobre esta?
A crise o que fez, para aqueles que a sofremos, foi tornar-nos agudamente conscientes das condicionantes que nos foram impostas, e, por isso, desenvolvemos uma sensibilidade muito mais politizada, e que se pode traduzir directamente em formas de activismo ou, no modo como tu trabalhas, em comportamentos que têm uma dimensão política. No meu caso, o uso consciente de meios pobres decorre dessas condicionantes. Mas faço um esforço por evidenciar como me foi possível realizar este ou aquele projecto, a que custo e sacrificando o quê. Para mim, tornou-se também um modo de defender a ideia de que se pode fazer muito com muito pouco, e que, apesar de tudo, se pode criar estratégias de sobrevivência simbólica. Creio que os meus livros são muito isso: estratégias de resistência simbólica que para mim são úteis e que passo ao leitor para que possa servir-se delas.

Durante anos foi professora do secundário e há momentos neste livro em que reflecte sobre como, hoje, a escola se tornou um sítio onde os sonhos de muitas pessoas vão paramorrer.
Não sei como é em Portugal, mas em Espanha, desde há uns anos, tem-se assistido a um processo de degradação do prestígio da figura do professor, que antes, mesmo nas etapas intermédias do ensino, era uma profissão bastante considerada. Uma série de reformas levaram a que as condições de vida dos professores sejam hoje muito mais duras, e tenham de aguentar mais faltas disciplinares graves nas aulas. Isto desprestigiou muito a profissão. No meu caso dei aulas sobretudo no secundário, embora hoje dê na Universidade, e esse foi durante anos o meu meio de sustento. Ora, aquilo que vi é que se tratava de um lugar muito desesperançado.

Em que é que isso se cruza com a crise?
Liga-se com aquelas que eram as ambições da minha geração. Sou de uma geração que cresceu antes da crise, em que os nossos pais, de um modo algo ingénuo, nos diziam que podíamos ser o que quiséssemos. Vindo de um meio de classe média, não muito afluente, sais da Universidade com uma licenciatura em Humanidades e de repente deparas-te com o mundo real, no auge da crise. Ou seja, não foi só a realidade, mas o agravamento das condições que te obrigam a arranjar um trabalho que dê para pagar as contas, e que muitas vezes é o oposto daquilo que esperavas vir a fazer.

E isso foi um obstáculo às suas aspirações artísticas?
Esses anos foram como um laboratório para mim, para observar a realidade social na forma como esta se reproduz na sala de aulas. Como artista, era muito duro. Significou sair de uma educação que nos preparou para profissões criativas e confrontar-me com uma realidade que não tem serventia para elas, em que parece que aquilo que tu sabes fazer não te garante nada, não te pode levar a nenhum lado. Foram anos duros, foi uma escola de humildade… e de realidade. Sem dúvida, bom material para um romancista.

No livro é-nos dada uma impressão bastante irónica do meio da arte contemporânea, e gostava de saber de que forma compara, esse mundo, com este da feiras e dos festivais literários?
São realidades muito distintas. É também muito interessante cruzar os dois. O mundo do livro diferencia-se porque tem atrás de si uma indústria, coisa a que a arte se furta. A arte é um negócio mas não deixa de pertencer ao âmbito do luxo. Assim, ao passo que um está ligado a uma indústria que quer chegar a todos, ou que é acessível, o outro é para as elites. Ainda que me custe que a arte, na sua dimensão comercial, só chegue a muito poucos, nos seus propósitos a arte contemporânea não é elitista. Esta é a grande diferença quando comparamos com o âmbito da literatura, em que virtualmente qualquer pessoa pode comprar o teu livro.

Que coisas retira de uma e de outra?
É tremendamente satisfatório para mim o poder da literatura para se infiltrar em todas as casas uma vez que tento desenvolver uma proposta em que me desafio a fazer algo de artisticamente inovadora, mas agrada-me saber que qualquer pessoa pode chegar a ela. Não é simplesmente uma coisa que fica nalguma galeria, exibida numa feira de arte. 

E que diferença sentiu do ponto de vista da atenção mediática?
Surpreendeu-me que a atenção dos media seja muito maior em relação à literatura do que ao meio dos artistas visuais. Não sei é se a minha experiência serve de exemplo, uma vez que o livro ganhou uma série de prémios. Talvez isso tenha levado a que haja mais curiosidade por parte do grande público. Não sei, portanto, se se pode extrapolar, mas a sensação que tenho é que há um maior acesso à literatura que à arte contemporânea, que tem essa aura de qualquer coisa mais difícil de compreender. Mas é uma questão educativa acima de tudo. Não é necessário levar os quadros para casa, o que há é que visitar os espaços onde eles são exibidos.

E em que medida se aproximam?
Apesar das idiossincrasias destes dois meios, julgo que se complementam. A mim motiva-me a possibilidade de a história que conto poder chegar a qualquer casa. A arte é um laboratório do futuro. No caso dos artistas visuais, raramente uma proposta tem interesse se não traz alguma componente de inovação. Na literatura, estando suportada por uma indústria, talvez se trate de uma área mais reticente à inovação, mais conservadora como instituição. 

O livro foi escrito como um trabalho de pesquisa, e só a preocupou como seria lido depois de ter sido contactada pelo júri do prémio. Depois de uma recepção tão entusiástica, imagina que esta se possa agora intrometer no seu processo de escrita?
Não é uma questão neutra, como é óbvio. Felizmente, antes de ganhar o prémio tinha já iniciado outro projecto. Normalmente há os uma certa sobreposição de uns projectos para os outros, e cada livro anuncia o seguinte. Por exemplo, em Modos de (no) entrar en casa, digo que tenho umas fotos de esquimós e iglus afixadas pelas paredes do meu apartamento, e que um dia entenderão porquê. E no Irmão de Gelo há algumas referências ao projecto que agora me ocupa. Mas é evidente que causa alguma pressão a repercussão que teve este livro, e que para aquilo a que estava habituada foi imensa. Agora parte do trabalha passa por espantar todas essas vozes da minha cabeça. O que tento é focar-me na ideia de que preciso voltar ao ponto de partida, ao zero. Não quero ficar com a impressão de que ganhei alguma coisa com isto que me aconteceu, antes prefiro buscar o sítio onde o texto me tinha levado. Independentemente da opinião dos leitores, de todas as reacções, quero voltar àquele lugar em que me sentia só, insegura.

Tem alguém a quem confie o que vai escrevendo?
Há esse mito de que o escritor tem algum confidente, alguém que lê as coisas que escreve, que comenta e lhe dá alento… No meu caso, isso nunca se passou. Nunca tive quem lesse o que vou escrevendo, alguém que lhe dedicasse particular atenção e discutisse comigo. Vou voltar a esse trabalho solitário até que tenha algo de visível, sólido, que possa entregar a alguém. Assim, o meu trabalho, além de retomar o projecto, passa por correr com essa multitude de vozes e expectativas. Tenho de conseguir recuperar o estado de silêncio interior e de luta com o texto e não com essas coisas que me chegam de fora.

No plano mais pessoal, como foi crescer por contiguidade com este irmão mais velho e autista que, devido à sua condição, vivia do outro lado de uma barreira de gelo?
Todo o livro, e sobretudo a parte mais introspectiva, é u ma tentativa de responder a essa pergunta. Necessitei de todo o percurso para chegar a algumas conclusões, e não me é possível agora resumi-lo. Desde pequena tinha alguma tendência para me virar para os livros, uma inclinação pela efabulação, um modo muito fantasioso de me relacionar com as coisas. Não caibo na etiqueta do escritor angustiado, alguém que se encerrava porque não era popular ou não tinha amigos.

Qual era o seu perfil? 
Eu tinha amigos, fui delegada de turma, tirei sempre boas notas durante toda a adolescência, não era, portanto, uma pessoa problemática, que buscava refúgio na literatura. Mais tarde é que tentei recuperar esses rastros, esse trilho que te dá uma força interior maior – e esse é o ponto a que se chega no final do livro, com a irmã mais nova que tem de sair em defesa do irmão. Foi isso que recuperei, a noção de que a minha posição vital não é normalmente aquela para a qual as miúdas são educadas. Talvez esse seja o aspecto mais interessante, o ter uma voz narrativa que passa ao lado desse desejo de ser agradar às pessoas, o tipo de estereótipos para os quais se educam ainda as mulheres.

O que levou a essa diferença? 
Fui educada para ser a forte, ser valente, para tratar de mim própria porque a minha mãe estava muito ocupada com o meu irmão, e porque ficou sobrecarregada depois do divórcio. Conto isto não pelo seu valor biográfico, mas porque se relaciona com o tipo de descobertas que o livro me levou a fazer. Creio que esta educação, do ponto de vista narrativo, me deu ferramentas ‘tipicamente’ masculinas. Trata-se também de coisas que me vi obrigada a repensar, porque uma coisa é seres tu a escolher esse papel, outra é que to peçam desde muito nova, quando não é a tua propensão natural. É um pouco isso aquilo com o qual, a nível pessoal, me tenho debatido.

Como foi recebido o livro, particularmente pela sua mãe, alguém que, como disse, todos os dias tem de vestir e despir o filho já adulto, mas não se reconhece nessa imagem?
Aceitar uma situação assim, com um filho, é algo com o qual nunca chegamos a apaziguar-nos. Creio que nas reacções ao livro a grande questão é aquilo que cada leitor é capaz de reconhecer no texto. No fundo, os que estão de fora têm a sensação de conhecer uma realidade, ao passo que os que estão por dentro sentem a dificuldade de se reconhecerem. A questão é que, se és posto diante de algo que reconheces, mas que não consegues admitir, dás por ti a sofrer com isso. Esse é o problema de se escrever sobre a família.

Debateu-se muito com isso?
Aí a questão que se impõe é: que direito temos nós de tocar num tema destes? Essa foi uma das interrogações que me acompanhou. Será que o meu ponto de vista merece impor-se? Acredito que se pode exercer essa perspectiva pessoal contando que se seja respeitoso com os implicados. O problema da forma como vivíamos esta questão ao nível familiar era o estar mergulhada no silêncio. Há silêncios que são bem intencionados, para proteger uma pessoa, e há silêncios que acabam por gelar as relações, causar danos, provocando um desencontro entre o real e a sensação de cada um. 
É como a história do rei que vai nu. O todos fingirem que ele está vestido, e alguém dar por si a vê-lo nu cria uma espécie de desajustamento cognitivo se formos incapazes de assumir aquilo que vemos. No meu caso, como no de outros escritores, cheguei à escrita para dizer que o rei vai nu e reivindicar que não sou eu que estou louca. Isto mesmo sabendo que é conveniente para muitos continuar a fingir que ele está vestido. No fim, todos precisamos de confirmar que a realidade corresponde ao quadro que os nossos sentidos compõem. É claro que há muitos graus de realidade, e há que medir até que ponto nos podemos bater pela nossa verdade emocional, sobretudo quando esta choca contra a dos outros. Não há leis que nos valham a este nível. Estamos sempre dependentes do modo como a nossa sensibilidade regula aquilo que nos parece certo ou errado. Quando discutimos a fronteira entre ficção, autobiografia ou, no meu caso, autoficção, creio que o acento deve pôr-se na história e não no referente real. Assim, se a história é um modo de sanar e não de provocar ainda mais dor, então vale a pena.

A abertura e consciência em relação ao autismo é bastante recente, sendo que neste caso se levanta a questão das variações imensas dentro desse espectro. O que lhe parece que são os equívocos mais persistentes à volta desta condição?
O autismo levanta problemas desde logo porque não há uma condição comum, o que há são autismos, e cada caso é tão distinto e varia quanto as personalidades de cada pessoa. Há autistas com alto rendimento, pessoas com elevado grau de autonomia, e que conseguem viver uma vida bastante comum, e há outros que têm um alto nível de dependência. Há um certo desconhecimento do quão diversa é esta realidade, e se, por um lado, não se tem representado bem as limitações que esta causa, porque aquilo que é o imaginário à volta desta incapacidade muitas vezes tentam minimizá-la, por outro lado, também não se mostra que há uma afectividade, e uma necessidade de contacto, acontece é que a pessoa não sabe criar a ponte até ao outro. Mas tem a mesma necessidade. Isto foi algo que também eu tive de aprender, por isso não é uma coisa que ocorre por falta de interesse nem falta de informação, é porque é realmente difícil dar-mo-nos conta disto, mesmo vivendo com alguém com esta condição. Acabamos por perceber que querem esse contacto, o que não sabem é pedi-lo. O que aprendi é que tens sempre de ser tu a criar essa ponte. De todas as vezes, terás de ser tu a construí-la.

Esta geração parece estar a atravessar um dilema pela suposta facilidade de criar essas pontes, mas ao mesmo tempo o campo relacional não ficou mais fácil, não estamos mais disponíveis hoje para o afecto do que estavam as pessoas que viveram há algumas décadas. Talvez este desencontro até tenha tornado as coisas mais difíceis. De que modo lhe parece que, ao compreender que no autismo uma pessoa não deixa de ter a mesma necessidade de afecto, a preparou para lidar com todas estas pontes que não deixam de ser muito precárias?
Parece-me muito bonito esse paralelismo. O de uma pessoa incapaz de criar pontes face ao de outra que tem demasiadas pontes virtuais mas que se dá conta que não são relações mas apenas conexões. Essa diferença traça-a muito bem Zigmunt Bauman em “Amor Líquido”. Temos muitas mais conexões ao nosso dispor, mas contacto real e autêntico é tão difícil como sempre foi. Creio que isso produz também um estado dissociativo próprio desta época, e que vem da facilidade que tens em enrolar-te com várias pessoas numa semana, mas de saíres de tudo isso sem ter conseguido criar um sentimento, uma ligação, nada. E isto mesmo sem usar essas aplicações, porque a própria realidade em que emergidos cria essa cultura, por efeito de contágio do dinamismo entre a oferta e a procura, que nos pode levar a tratar o outro como algo descartável. Isto já se verificava antes de se ter generalizado o uso de aplicações como o Tinder. É um tema absorvente. Quanto a mim, as relações não são um campo fácil para ninguém, e os autismos são uma problemática nas relações humanas, mas não têm o exclusivo nessa sensação de gelo que nos separa.

Um dos aspectos que referiu como importante neste projecto foi a aproximação da noção de épica a aspectos da vida íntima, e como as histórias de exploração do árctico e antárctico foram para si elementos de inspiração e impulso. Como é que a relação com essa épica lhe deu coragem para desbravar esses lugares difíceis e chegar à noção de que a arte passa muitas vezes por tornar o invisível visível, um desafio que se pôs àqueles exploradores quando tentavam fotografar a sua chegada ao Pólo Norte ou Pólo Sul, sendo obrigados a encenações para figurar pontos impossíveis de medir então com absoluta precisão?
Esse foi o marco épico a partir do qual me situei para começar a desenvolver todo esse constructo metafórico. Sabendo que me dirigia ao interior de mim, queria criar esse vínculo forte para não transformar o livro numa história familiar. Para que a história pudesse ser apercebida mas a partir de um olhar distinto. Não foi apenas para fazer da mãe uma figura assemelhável a um explorador polar, mas também porque o meu eu narrativo estava a passar por essa fase de documentação para um projecto artístico que não sabia que direcção ia tomar. O que sabia era que tinha de resistir a essa realidade algo precária, para também ela ganhar uma consistência épica. Creio que todo o livro é uma explicação do modo como adaptei essa épica masculina, colonialista, com tantas conotações negativas, que também sinalizo, mas aproveitando o lado positivo, a persistência, para que, à semelhança do que fiz, o leitor pudesse também aproveitá-la na sua própria vida, enfrentando a sua realidade com outros olhos, e fazendo-se valer desse paralelismo épica em casa. Também exponho o paradoxo do aventureiro. Em muitos dos casos, abro a perspectiva para a própria vida pessoal daqueles homens, o lado disfuncional das suas existências, e mostro como não estavam apenas a ir em direcção a uma conquista, mas fugindo de alguma coisa. A vida doméstica e a aventura são muitas vezes dois pólos que se espelham.