Impasse continua. Concurso para contratar médicos de família ainda não abriu

Despacho que autorizou o recrutamento de recém-especialistas foi publicado a 21 de fevereiro, mas a última indicação é que poderão só iniciar funções como médicos de família em maio. Médicos continuam a tapar buracos nos centros de saúde sem poderem assumir listas de doentes

Quase 15 dias depois da luz verde das Finanças, o concurso para contratar médicos que terminaram a especialidade de medicina geral e familiar em 2017 não tinha avançado até ontem. Médicos à espera que comece o recrutamento dizem-se desanimados, sobretudo quando têm de responder aos utentes que não sabem se poderão ser seus médicos de família. Com as agendas de março praticamente preenchidas, há outra dúvida: devem continuar a marcar consultas para abril sem saberem quando vão começar a trabalhar noutros locais? 

Em causa está o recrutamento de médicos recém-especialistas, processo que nas últimas semanas tem gerado uma forte contestação dos sindicatos e da ordem, mas também da oposição e dos partidos à esquerda que apoiam o governo. 

Todos os anos há duas fases de conclusão da especialidade médica, a primeira no fim de março e a segunda em novembro. No caso de medicina geral e familiar, os “finalistas” de março do ano passado foram chamados a concurso em setembro, num processo que demorou mais algumas semanas do que no ano anterior, em que iniciaram funções em agosto. Quanto aos médicos que concluíram a especialidade em novembro, estão desde então a aguardar o recrutamento. Neste compasso de espera, continuam vinculados ao SNS como internos e podem ser colocados noutras unidades dentro do mesmo agrupamento de centros de saúde onde concluíram a especialidade.

A 21 de fevereiro, depois de repetidas promessas de que os concursos abririam “dentro de dias”, foi publicado em “Diário da República” o despacho que autoriza o Ministério da Saúde a preencher 110 vagas em centros de saúde com mais falta de médicos. O diploma foi assinado pelo ministro das Finanças, Mário Centeno, no dia 15 de fevereiro, e por Fernando Araújo, secretário de Estado Adjunto e da Saúde, pelo ministro da Saúde. Embora passem então mais de 15 dias desde a assinatura do despacho e quase duas semanas desde a sua publicação oficial, até agora nada mudou e não têm sido dadas indicações concretas aos médicos, diz ao i Francisco Nogueira, um dos clínicos neste limbo e que há um mês foi porta-voz de um movimento que entregou uma carta aberta ao ministro da Saúde a lamentar o impasse nos concursos, que se estende também aos médicos que terminaram especialidades hospitalares em 2017.

A única indicação que têm tido, informal, é que poderão só vir a iniciar funções em maio, continuando assim mais dois meses a exercer funções como internos, menos dispendiosas para o Estado, mas sem poderem dar resposta completa aos utentes. No site da Administração Central do Sistema de Saúde, que monitoriza os concursos no SNS, a informação não muda desde 21 de fevereiro: “Aguarda-se a publicitação do correspondente aviso de abertura no Diário da República.” 

Com a autorização das Finanças concedida, os médicos não percebem onde estará agora o processo a ser bloqueado e há outro motivo para a estranheza: em 2017, o despacho que autorizou o recrutamento dos colegas que terminaram a especialidade em março foi publicado a 5 de setembro e, dois dias depois, a 7 de setembro, foi publicado o aviso de abertura de concurso. Com este hiato temporal mais do que excedido, Francisco Nogueira teme que a indicação de que os concursos iam abrir em fevereiro tenha servido só para serenar os ânimos. “Não conseguimos compreender onde é defendido o SNS e os utentes mais idosos, com doenças crónicas e sem meios para pagar a medicina privada.” Entretanto, continuam a ter propostas de empresas de prestação de serviços para fazerem horas nos centros de saúde como tarefeiros: como internos, recebem 11 euros/hora; como especialistas, receberiam 16 euros; e as empresas pagam 19 a 25 euros.

“A Vida em suspenso” Pedro Domingues, de 32 anos, terminou o internato no Centro de Saúde do Lumiar e está agora colocado em Benfica, Lisboa. Admite que estava a contar com burocracia, mas não que demorasse tanto, sobretudo quando continua a haver centenas de milhares de utentes sem médico – 714 mil portugueses, segundo as últimas estatísticas (ver ao lado). “Estamos um bocado revoltados e desanimados. Há um mês escrevemos uma carta aberta e a resposta foi a autorização para o concurso. O público em geral pensou que teria aberto, mas continuamos na mesma situação, a vida está em suspenso.” 

O que dizer aos doentes é uma das dificuldades, mas Pedro sabe que em Benfica é certo que não vai ficar. A única vaga autorizada no Agrupamento de Centros de Saúde Lisboa Norte, a que pertence, foi no Lumiar, de onde saiu no final do internato por não haver trabalho, disseram-lhe. Regressar para perto de casa, na região Centro, podia ser uma hipótese, mas só poderá fazer essas contas à vida quando abrir o concurso e os 80 a 100 médicos à espera forem ordenados por notas. “Estou numa fase da vida em que posso ir para qualquer lado, mas há colegas com filhos pequenos para quem é uma situação mais difícil”, frisa. Ainda assim, sair para o privado é uma hipótese que já esteve menos em cima da mesa. “Custa-me pensar em sair do SNS até porque sei que o país investiu na minha formação e fazemos falta, mas já me vi tentado a procurar alternativas.” 

No mesmo estado de espírito está Inês Dias Ferreira, de 30 anos, colocada numa unidade de saúde familiar na Amadora a tapar o buraco deixado por uma médica que saiu para o privado, mas sem poder ser oficialmente médica de família dos doentes que atende diariamente. “Antes eram vistos por outro colega que tinha terminado o internato em março.” 

A pergunta tem, por isso, meses: será ela que, daqui para a frente, se irá ocupar deles? Sem poder responder, Inês avisa que não ter médico atribuído tem um impacto real na vida dos utentes, já que vê muitos doentes com situações de diabetes e depressão descompensados por não terem seguimento regular. A muitos tem pedido exames que não eram feitos desde 2016 e que só consegue ver fora de horas. Tem um filho de um ano e meio e ainda teria horário reduzido para amamentação, mas é raro conseguir usufruir desse tempo – um sacrifício que tem feito pois percebe a necessidade, mas não devia ser preciso para que o sistema funcionasse. “Sentimos algum desrespeito, para com o nosso futuro e com os doentes. Vê-se que as pessoas não estão no terreno.”

O i tentou perceber junto do Ministério da Saúde o que está a demorar a abertura do concurso e qual é a perspetiva, mas não teve resposta até à hora de fecho. Segundo a tutela, as novas contratações vão garantir médico de família a mais de 165 mil utentes. A incógnita continua a ser quando.