Marlene Ferraz. A voz que nos chega do lado Darque da força

Como que se lhe perseguem atmosferas mortiças, personagens que se escapam por feitio para se deixarem morrer, um peso dobrando as costas, em suma, a vida no antagonismo da morte. Marlene Ferraz voltou com segundo romance ao barroquismo melancólico da escrita, onde as palavras se refugiam em sinónimos de delicadeza, rudeza ou timidez. As Falsas…

Nesta nova obra, borboletas, flores, livros, Fernando Pessoa e a transição da ditadura para a democracia servem a uma história de descoberta do mundo por uma criança que se deixa fascinar pelo porte de um livreiro conluiado com o regime.

Marlene – nome, já se vê, inspirado na admiração do pai pela atriz de O Anjo Azul – conta histórias do campo, de aldeia, da cidade longe da cidade grande, com flores, animais e fatalidade. Se é da natureza que gosta, Marlene Ferraz não se deixa engendrar em rodriguinhos quando a encara: «A natureza é bruta» e dessa matéria se fazem também os seus livros, ora duros, ora delicados, como esse pequeno entomólogo que protagoniza este novo livro, deleitado com a beleza das borboletas que espeta com alfinetes de coleção.

Escritora de Viana do Castelo, esta entrevista fez-se pelos lugares que há muito a acompanham e inspiram. A biblioteca municipal projetada por Siza Vieira, cujas estantes fez suas dada a falta de livros em casa (e que nos primeiros tempos funcionou sem catalogação e era preciso procurar as obras uma a uma); o Instituto Politécnico de Viana, onde tem o consultório de psicologia clínica; a praia do Cabedelo, a sua praia; Darque, a aldeia do outro lado do rio Lima, onde chegou com ano e meio depois de nascida imigrante em Montreal, no Canadá, e cresceu, por entre árvores, pássaros e brincadeiras no rio; e a sua casa, hoje, onde Mia, a filha de nove meses é defendida pelo ladrar da cadela pug, arisca para qualquer estranho.

«Sempre gostei muito de pássaros… livres», diz, enquanto caminhamos pelas ruas estreitas de Darque, por entre limoeiros carregados de fruta a tombar, a caminho da casa dos pais, onde cresceu. Desde a ponte nova sobre o Lima, o barulho dos automóveis empresta burburinho buliçoso ao remanso de aldeia: «Lembro-me de que se ouviam as rãs e nunca mais foi possível ouvi-las porque o ruído se sobrepõe», diz-nos. Do tempo do barulho batráqueo, recorda que «ninguém falava de livros», mas a mãe ainda contava de missas em latim. «Quando volto à infância, volto ao conflito. Sentia que não estava no meu lugar», com Deus e o peso da Igreja. Da primeira comunhão não se lembra de ritos, só da foto «com cara de poucos amigos» e uma pose masculinizada, de perna aberta.

Em O Amargo das Laranjas, livro de contos que ganhou o prémio Florêncio Terra em 2008 e foi publicado pela Câmara da Horta, cita «quando deus não fala, também o homem pode calar-se. O que havia para ser dito veio no livro sagrado. Mas nem todas as criaturas sabem ler na mão do criador».

Dentre os poucos livros que havia na infância estava a Bíblia ilustrada para crianças, que traz agora consigo num saco de plástico e nos mostra (como lá está dentro o livro Poemas Dramáticos, que pediu à mãe envergonhada para comprar tinha 14 anos e que lhe serviu de porta entrada para a sua máxima referência literária, Fernando Pessoa, várias vezes citado em As Falsas Memórias de Manoel Luz), onde desenhos e pequenos relatos fazem o resumo das parábolas e alegorias religiosas. Mesmo para alguém com mais esperança e menos fé, as marcas do livro sagrado não deixam de se refletir na sua escrita.

Sem afirmar perentoriamente que Deus não existe, Marlene Ferraz sublinha que, na infância, ao ler a Bíblia, percebeu «imediatamente que deus seria uma pessoa de mau íntimo, como se diz por aqui, porque sacrificava inocentes».
Lembra-se de ouvir, em pequena, algo que não compreendia, sempre que morria uma criança, os mais velhos justificavam a morte com um «Deus precisa de anjos». Daí que, quando chegou à literatura, começasse logo por escrever deus com letra minúscula, «por vontade de provocar esse Deus com letra grande», essa entidade «que está sempre a olhar de cima e nunca nos olha de frente». E que em «casa vigorava» com muitas advertências: «cuidado que Deus está-te a ouvir», «cuidado que Deus está-te a ver», tudo isto «sempre com um sentido punitivo». Por isso, quis «desafiá-lo», transformá-lo «em deus pequeno, como qualquer um de nós», porque, «a existir, que seja um de nós».

A escritora fala da «invenção de deus» como um «sentido para a nossa narrativa». Nós, humanos, temporários, escolhemos tê-lo porque «é mais fácil ter a quem servir do que sermos livres». E não será, também, forma de exploração, esse Deus que te obriga a servir, a Ele e, ao longo da história, a servir outros senhores? «Eventualmente, esta invenção terá intenção de poder», responde a escritora.

A invenção do suicídio

Por exemplo, a forma como se encarava (encara?) o suicídio incomodava-a, essa ideia de que aqueles que escolhiam determinar o fim da sua existência «não tinham o perdão de Deus» ou a enorme «intransigência com aqueles que sofriam», que já não sabiam como prosseguir.

A ponto de no conto A Carta, do livro O Amargo das Laranjas, Efigénia elogiar o gesto suicida do marido no meio de uma mensagem de despeito por não lhe deixar possibilidade de denunciar os maus-tratos infligidos: «Não te perdoo, José. A coragem desse nó no teu pescoço, a morte gloriosa depois duma vida miserável como a tua.»

«O suicídio é um impulso de já não conseguires dar utilidade ao teu sofrimento. Provavelmente, a escrita surge-me assim. Tinha de dar utilidade a tudo isto que ia absorvendo à minha volta. Se não fosse desta maneira, me pergunto o que seria de mim. Repare no meu percurso, fui para a psicologia, fui para a escrita.»

Não é que a escritora tenha sentido esses impulsos alguma vez (os do suicídio, não os da escrita), até porque «a morte nunca a fascinou nesse sentido», mas convive com o tema quotidianamente enquanto psicóloga clínica, no seu consultório. «No meu ofício é coisa que ouço tantas vezes: ‘só queria morrer’.» E o que a salva de rondar a morte autoinfligida será, talvez, a esperança, pois, embora acredite que «somos capazes de ser melhores», muitas vezes pensa «no que aconteceria se matasse a esperança; seria insuportável».

Ao mesmo tempo, admite, que a esperança «seja uma defesa» tão-somente, ocupando o espaço deixado vago por essa fé religiosa que riscou da sua vida.

Os seus livros estão cheios de personagens homens e quase nada de mulheres. Até nos títulos, Manoel Luz, José Homem, Senhor Blum. Para quem se tomou de admirações pelo universo masculino («eu cresci fascinada pela liberdade que era permitida aos homens») e a lamentar as condicionantes de ser menina e depois mulher, não admira que a sua escrita se deixe atrair para o descrever varonil.

«A vida das raparigas era muito mais condicionada e eu sempre me obriguei a ver-me como uma rapariga-rapaz. Foi um risco que eu, mesmo menina, tinha consciência que teria de correr», explica. «Hoje percebo que não era rapaz que queria ser, era ter a coragem de ser, simplesmente, sem olhar a género.» 

A maternidade, diz, acrescentou um pormenor à perceção, a de que «o tempo das mulheres é mais abreviado» e com uma «criaturinha» (assim nomeia sempre a filha) nos braços não há letra que resista, lida ou escrita. «O maior desafio da maternidade foi este conflito entre a criatura que sou e a nova criatura.» Mia faz-lhe lembrar Copérnico porque ao ser mãe mudou o seu posicionamento, passou a girar à volta de outro astro, e, com isso, deu-lhe para «questionar» a sua própria individualidade.

Curiosamente, neste livro, «aquilo que mais mudou o Manoel Luz foi ver-se obrigado a descentrar-se porque aparecem criaturas mais frágeis que precisam de ser cuidadas» e, garante a escritora, «isto renova-te a forma de ver o mundo».
Manoel Luz «é uma borboleta, se pensarmos, ele acaba por se renovar. Passa por um processo de metamorfose. A borboleta respeita o código genético; vem para procriar – desde o ovo à borboleta passam quatro meses, depois têm ovos e morrem. Tanta beleza, tanto espanto e acabam a seguir as regras, Podemos dizer de Manoel Luz que é esta criança levantada entre dois homens de inspirações diferentes», entre um pai de flores verdadeiro e um pai de letras adotivo, «que, como a maioria, segue a regra para subir a escadaria social, porque a vida lhe parece mais confortável nesse lugar, e acaba até por renunciar a um amor, porque as mulheres complicam a ascensão».

O mundo do rio

Lá fora, o rio Lima, renova as suas águas de forma pachorrenta. Este é o mundo da escritora, de uma margem a outra, em eterna ponte sobre as águas. Daí que mesmo mudando de sítio para a conversa, esta acaba sempre com o rio ali ao pé – seja a Darque das marcas mais sombrias da sua escrita, seja a biblioteca alva de Siza em que criou mundo com os mundos de outros, seja na praia do Cabedelo que lhe retempera as energias e alarga o sorriso tímido até à gargalhada.

O cabelo ainda lhe vai caindo sobre o rosto e não custa imaginar que tenha passado a adolescência a deixar que lhe tapasse as feições, para esconder a criatura desencaixada num mundo onde as letras davam pouco abrigo social – «sempre estranhei muito os outros». Mesmo assim, há algo de orgulho quando conta do avô Manuel Correia, com quem ouvia rãs e visitava as obras da ponte, que não sabia ler, nem escrever, a quem ela insistia que assinasse sempre o seu nome.

Outra coisa que Mia lhe trouxe, confessa em Darque, sentados à beira do Lima, afugentando as melgas, foi «o medo da morte». O que para uma escritora que peja os seus livros de mortos, mortos-vivos, mortos para ser, não é despicienda a transformação.

O José Homem do seu romance de estreia era alguém que entrava livro dentro decidido a morrer. Em O Tempo do Senhor Blum, a epígrafe diz «o tempo continua a cumprir o seu dever, a morte. Os homens não, assim como o seu deus. Têm vindo a esquecer-se de que o tempo é a variável mais importante à vida. Sem tempo, nem a cria grita nem o morto ressuscita.»

Vê-se que refletiu sobre o assunto, «a maternidade traz isso, amplia a vontade de estar viva, traz um medo enorme de partir» e até se podia pensar no óbvio instinto de proteção, mas é mais egoísta que isso: «Quero vê-la maior, quero contemplá-la.» Do lado de lá da maternidade, estava alguém que não se sentia «agarrada a nada, a não ser a escrita», deste lado de cá anda agora alguém que há nove meses nem escreve nem se importa.

E a escrita de Marlene Ferraz não é como outra qualquer, parece vir de outro tempo, de outro lugar, está impregnada de odores do passado, respira por entre retratos antigos de solares de antanho, mas ainda vivos. Ao mesmo tempo é um texto simulacro por fazer aparentar composição burilada sem o ser.

«Sai assim, sentada, num silêncio que me põe a dialogar com esta multidão. O exercício é, muitas vezes, ao contrário: despoetizar algumas falas porque ‘ninguém falaria assim’», explica entre risos. «Obrigo-me a simplificar o barroco. O meu primeiro livro comprado: Poemas Dramáticos, do senhor Pessoa, que li e reli porque não havia muito mais (assim o Manoel Luz, na meninice), encharcou-me de tragédia (mais ainda).»

Se começou por escrever poemas, «fracos, ingénuos, com defeitos», depressa encontrou no contar histórias o seu espaço. Os poemas, o «palmo deles», usa-os agora para alguma reciclagem, para alimentar algumas dessas «memórias falsas» (como as de Manoel Luz) que, garante, fazem parte das «histórias que alteramos todos os dias, porque «somos uma memória em movimento».

«A mim interessa-me muito a memória, o que somos senão memória? E elas tendem muito a ser falsas. Falsas, por nos reinventarmos, mas também pelo limite dos nossos instrumentos sensoriais». E isso interessava-lhe muito, interessava-lhe «escrever sobre o ponto cego». Nessa área exata onde o nervo óptico se insere na retina e que não contém recetores de luz, o nosso cérebro habituou-se a compensar o escuro compondo a imagem que não está lá: «É espantoso!» Trata-se de «compor o vazio», logo «o que estás a ver pode não ser verdadeiramente o que estás a ver».
Não será isso, a vida de um escritor, compor o vazio, preencher o escuro do mundo com uma imagem? Não será essa a vida de Marlene Ferraz que se passeia por Viana falando com as suas vozes, com as personagens com quem primeiro conversa durante muito tempo antes de as verter no papel («e é curioso porque parece que estão contigo» e «às vezes noto que mexo os lábios enquanto caminho», sublinha entre risos,)? Não será essa a vida da «libertina do Largo das Bouças» que «quase poderia ter sido», porque na casa dos pais, no Largo das Bouças, em Darque, não lhe restringiam os passos?

O grito da escrita

«No começo, o texto é o mundo paralelo onde estás e demora tempo até perceberes que pode ser uma troca com os outros», explica. A escrita é, isso sabe, o grito que muitas vezes lhe apetecia dar: «Tenho a escrita, se gritasse mais, se calhar, não escreveria». Recorda «uma frase que dizia que a poesia pode ser um esconderijo e pode ser um altifalante» e acha que o mesmo se pode aplicar na prosa, na escrita em geral.

«Nós temos esta violência no olhar, há coisas que não temos a ousadia de dizer se não pelas nossas personagens que acabam por vir contar-te as coisas mais estranhas que temos dentro. É uma forma disfarçada de dares aquele grito que tu sabes que não é civilizado. Há crimes que despertam em mim uma raiva flamejante, como a pedofilia. Acordam em mim emoções que nunca imaginava que tivesse. Mas nunca tive coragem de escrever sobre isso. Seria demasiado doloroso», confessa. 

O que lhe interessa cada vez mais é explorar literariamente «a vulnerabilidade da condição humana», «esse lado da criatura miserável que vamos sendo» – criaturas «muito mais pequenas do que gostaríamos» num esforço para tentar «projetar uma sombra muito maior» do que realmente temos. E aqui a escrita e a psicologia cruzam-se, porque as suas consultas são «o laboratório desta condição humana, das vulnerabilidades». 

«Os diálogos serão mais despidos, mais transparentes e é muito interessante perceber como sentimos a aragem de um confessionário. O que somos lá dentro não é o que somos cá fora. E a pergunta é: porque escondemos esta vulnerabilidade? Há jovens que ainda me dizem: ‘podia ensinar-me a ser frio, a não sentir’. Tentamos sempre camuflar o lado frágil e fomos ensinados a isso. Lembro-me dessas conversas com os maiores, ‘tu não mostres o teu lado fraco se não comem-te’. Nós defendemo-nos muito.»

A mulher que se divide entre a psicologia e a literatura é da opinião que «estamos tão baseados no conhecimento científico» como forma de chegar à verdade que nos esquecemos, muitas vezes, que são «as artes que exploram a condição humana de uma forma mais naturalista» porque «não estamos preocupados com as metodologias, agarramos na matéria bruta».

Matérias brutas

Matéria bruta I: A cameleira do quintal dos pais, os limoeiros, laranjeiras, diospireiros, o campo dos avós, o espreitar os ninhos dos melros para ver se havia crias, o poço, a estrada de terra batida esburacada por onde se chega a Darque junto ao rio (sempre se lembra dela assim), os passadiços de madeira da praia do Cabedelo e o vento do mar a norte, Viana vista da outra margem – um homem com quem sempre se cruzava na cidade virou marinheiro num livro e, curiosamente, assim que lhe deu vida literária, esfumou-se-lhe dos seus passeios diários.

Matéria bruta II: tinha um vizinho que adorava disparar contra os pássaros com a sua pressão de ar, por vezes, as aves caíam mortas de chumbo no quintal dos pais da escritora que os enterrava com os olhos marejados enquanto continuava a ouvir os tiros.

Matéria bruta III: «Tínhamos um vizinho, um homem muito magro, alto que estava sempre a dizer que se matava. Desde que me lembro, era ele a lamentar-se que queria morrer». Vivia num anexo arrendado pelos pais a preço simbólico. A Marlene criança tinha-lhe muito afeto, a ele e à mulher, faziam parte da vida dos avós com quem haviam crescido juntos. «Lembro-me de um dia chegarmos a casa e ouvirmos uns gritos e era a mulher a dizer que afinal ele sempre se tinha matado.»

Senão somos mais que «depósitos de memórias», então o que se nos demanda «é eleger as principais para fazer ou refazer as nossas (voláteis) biografias». A matéria bruta serve ao molde da literatura e «os apontamentos da infância» – e a infância é «a lente com maior claridade» – transformam-se em pássaros para voar. Como referiu noutra conversa, quando qualquer coisa a ilumina e a história surge, dá-se o fenómeno da levitação: «É quando levanto os pés do chão.»

O processo da escrita, entre dúvidas e recuos, questionamentos vários, é um «estranho» fenómeno de conversas com as muitas vidas ficcionadas, um diálogo que se prolonga até o tempo lhe dizer que chegou o momento de deixar de sair do remanso do cérebro quem por lá andou tanto tempo, e assim abrir espaço para outras conversas. E começa sempre assim, «tenho de ter vontade de conversar». As Falsas Memórias de Manoel é a última conversa. Já há outra a decorrer.