Meio século de Maio de 68

O ano mágico de 68 teve vários epicentros que fizeram abanar o planeta: Ofensiva de Tete, massacre da Praça das Três Culturas, manifestações em Paris e Primavera de Praga.  

O álbum era belo e graficamente colorido. Tinha um horário dos turnos de uma fábrica em laboração continua, que parecia um quadro de um museu de arte contemporânea. Dentro estava gravada a poderosa voz de Collete Magny, que entre sons reais das ruas e dos tumultos gravados por William Klein e Chris Maker, cantava Nous Sommes Le Pouvoir (Nós Somos o Poder): «Un soir je revenais de chanter/On m’a téléphoné/Il y avait des blessés,/Des gosses matraqués./J’ai eu peur,/ Je ne suis même pas allée/Ramasser les blessés./Dans les usines je me suis planquée/ Pour les travailleurs, chanter./’ Là où la chèvre est liée,/Il faut mieux qu’elle broute’ (B.Brecht)/J’ai rien vu, j’étais pas dans la rue./Tout ce qui était gai,/Je l’ai manqué./Chanter, c’était devenu dérisoire./Je sais taper à la machine/Mais peut-être que je chante mieux/Que je ne tape à la machine./Au mois de Mai, par l’espoir/Tout le monde se parlait.». O que numa tradução livre dá qualquer coisa, sem respeitar a métrica, como isto: «Uma noite eu vinha de cantar e telefonaram-me. Havia feridos e miúdos que tinham levado bastonadas. Eu tive medo, nem sequer fui ajudar os feridos. Nas fábricas eu coloquei-me para cantar para os trabalhadores. ‘Onde a cabra está amarrada é melhor que ela paste’ (Brecht). Eu não vi nada, não estava na rua. Tudo o que era alegre eu falhei. Cantar tornou-se inútil. Eu sei bater à máquina. Mas talvez eu cante melhor que bata à maquina. No mês de Maio, por causa da esperança, todo o mundo se falava».

Hoje encontramo-nos tão longe no tempo do Maio de 68, que os jovens que saíam à rua estavam do fim da Primeira Guerra Mundial, como é possível, passados 50 anos, reconstituir o espírito de um época, perceber o que se passou e como pensavam os protagonistas, nesse ano que agitou o planeta, do Vietname, passando pelo México, até França e as ruas de Praga? 

«Olhamos sempre o passado com os olhos do presente», confessava, em entrevista ao i, o historiador António Borges Coelho. Se na história distante é assim, se muitas vezes ela é formatada pelos vencedores; com maior razão, é preciso ter cuidado com os testemunhos de quem hoje tem a posição inversa da que tinha ontem. Na maior parte das vezes os testemunhos não querem contar aquilo que aconteceu de facto, mas justificar o que lhes aconteceu na sua deriva para as opiniões políticas de hoje.

Há dois livros curiosos, datados de 20 anos depois da revolta, que reconstituem, por entrevista e por história corrida, o trajeto de parte significativa desta geração. 

Génération, Les Annés de Rêve e Génération tome 2, Les Annés de Poudre são centrados nos acontecimentos em França; e o Nous Avons Tant Amée, la Revolution, de autoria de um dos principais dirigentes do movimento 22 de Março francês, atualmente eurodeputado dos Verdes Alemães, Daniel Conh-Bendit com entrevistas de ativistas de todo o planeta. 

Os dois volumes, do Génération fazem desfilar, como se tratasse de um romance, os trajetos pessoais de muitos dos ativistas franceses. Um relato que começa por um fim: o enterro de Pierre Goldman, a 29 de setembro de 1979, assassinado alegadamente por um grupo de extrema-direita. Todo o seu percurso é uma história de filme: filho de judeus polacos fugidos do nazismo e resistentes em França; adere às juventudes comunistas; é chefe da segurança da União dos Estudantes Comunistas; pertence aos ‘catangueses, grupo violento de estudantes de extrema-esquerda que fazem ações violentas no Maio de 68; participa nas guerrilhas na América Latina; depois do regresso a França torna-se marginal e participa em três assaltos, um deles com vítimas. Se no Génération lemos a deriva de uma geração, no livro de Cohn-Bendit temos entrevistas com os lamentos dos arrependidos de várias latitudes, com honrosas exceções: aí vemos desfilar os hippies que se tornaram empresários yuppies, os guerrilheiros que cantam loas à democracia parlamentar, e os anarquistas que sonham com a família burguesa. Dos pouco que parece não ter desistido é o basco francês Jean-Pierre Duteuil. É anarquista e basco. Sabe que tudo foi tentado. Ainda nada funcionou. Mas só lhe resta continuar a tentar.