O pénis segura a bandeira branca. Esta coisa de ser o alemão na guerra dos sexos

As bandeiras de movimentos como o #MeToo parecem muito progressistas, mas a atual guerra dos sexos pode servir de manobra de distração face a outra mais dura e mais vasta: a desigualdade económica

Está mais difícil do que nunca não ser canalha. Por toda a parte, tudo respira um ar de acusação. E ter um entre as pernas é o que basta. Revogaram a licença de porte, e um olhar lúbrico dá cadeia. Eu já açaimei todos os vira-latas do meu desejo. Se uma mulher bonita passa por mim na rua, já não olho. Se for dona de uma beleza dessas imperdoáveis, como um tiro à queima-roupa, até mudo de passeio. Tenho-me instruído, estou até avisado para certas infelicidades tão subtis, quase invisíveis, como aquela que Nelson Rodrigues detetou, notando que “toda a mulher bonita leva em si, como uma lesão da alma, o ressentimento. É uma ressentida contra si mesma”. Mas, assim mesmo, a menor distração ou descuido arrisca-se a dar num processo, e de nada vale alegar desconhecimento da lista de infrações aprovadas meia hora antes. A redação da lei do politicamente correto está nas mãos de uma comissão permanente, indo por turnos, revigorando as disposições a cada dia. E é curioso como pôr em causa qualquer dos seus membros equivale a atacar toda a minoria ou movimento em nome do qual se fizeram eleger sempre através de um insondável esquema. Gozam todos de imunidade, digam o que disserem, são intocáveis.

A marcha progressista está frenética. De tal modo que ou refrescamos a conta de Twitter da Fernanda Câncio a cada quarto de hora, como quem se informa sobre a meteorologia, o horóscopo, a bolsa de valores, ou arriscamo-nos com qualquer pronunciamento a ser levados a conselho de guerra. As suscetibilidades tomaram conta da ordem moral e é impossível estar em dia com a evolução do politicamente correto, cuja linha vermelha não para de se mover.

Por mais cuidados que observe na redação deste texto, tão cedo quanto abandone a relativa segurança do abstrato e toque o concreto, há de explodir uma ou várias das minas no campo das sensibilidades. Logo algum agente da horda dos ofendidos virá com o seu cassetete moral, passar coima ou pedir a cabeça. Que posso fazer senão repudiar os meus inatos privilégios e guindar-me pelos pontos de conversa previamente aprovados? Não tenho defesa. Sou, em todo o caso, um canalha.

O que há de novo nesta “revolução” é que nem a boa vontade para com ela torna o processo menos extenuante. Em algum aspeto acabaremos tachados de reacionários e, se levantarmos objeções, não é difícil que nos espetem a cabeça nalguma das estacas na margem dessa infindável estrada para a redenção.

A rendição, claramente, não é o bastante. Como indivíduo do sexo masculino – é o que me diz, por enquanto, o bilhete de identidade -, branco, ocidental e o raio, o custo de ter consciência é ficar refém de uma culpa formada em relação a horrores praticados desde as interações entre o mais ancestral dos meus antepassados e uma mulher lá no breu das cavernas.

Sou o alemão, e mesmo manifestando a vontade de perder a guerra, e até de levar uma trepa, o que eu gostava é que se realizasse de uma vez a Conferência de Ialta desta coisa: digam de uma vez que linhas devo observar. Eu queria o meu Muro de Berlim, mas desta vez parece que só há paz na guerra.

Ter esta coisa maldita entre as pernas e os impulsos que vêm com ela, por mais que os vigiemos, tem gerado entre os alemães uma crise de nervos, um estado permanente de ansiedade. Como chegar a casa e vê-la lá, fria, ressacando da sua ira, e ficarmos com medo de perguntar: o que é que eu fiz agora?

Não comparo isto com o sofrimento de morrer às mãos de um cão que faz da mordida uma prova de amor. Não me escaparam as estatísticas, podia desaparecer atrás dos números que servem muito frias essas histórias de terror e abuso, das persistentes desigualdades, mas este é o relato de um alemão. E sei que pediram que nos calássemos enquanto a comissão está em sessão e discute o futuro do certo e do errado, da linha onde o branco acaba e começa o preto, mas devo dizer que estou inquieto em relação ao perigo de nos ficarmos por isto mesmo: pela eterna indefinição. 

Já tive até um pesadelo em que Rita Ferro Rodrigues, Câncio e outros coronéis do movimento levam a sua avante. O receio é que não tenhamos mais descanso. A realidade terá de se submeter a uma sucessão de plásticas até ter a utopia sorrindo quando se olhar no espelho. Posto isto, não é difícil imaginar que uma das primeiras operações passará pelo corte do dito órgão, hoje a raiz de todo o mal. Porque já vimos que a própria natureza não está nem perto de corresponder aos ideais desta tropa justiceira que pretende corrigir numa geração o que o diabo levou tanto tempo a aperfeiçoar.

Se até aplaudo o vigor de toda esta ânsia reformista, e mesmo desconfiando que o diabo ainda se faz valer das melhores das intenções para agregar alas do mundo dos vivos ao inferno, não consigo ficar indiferente à sanha com que se pretende este equilíbrio dos sexos sem nem tocar nos pesos da balança em que, afinal, têm origem as maiores injustiças sociais. Porque há uma guerra que, curiosamente, parece ter recuado para um distante segundo plano nas prioridades desta esquerda ultraprogressista. É essa luta já sem brilho, hoje quase envergonhada, em que há séculos as maiorias têm saído vencidas face a uma cada vez mais ínfima e todo-poderosa minoria. Tem graça como, apesar de nas últimas décadas, e particularmente desde a crise de 2008, a desigualdade económica se ter acentuado espetacularmente, a esquerda-tcharan está desinteressada dessa luta, barricando-se no plano das “questões fraturantes”.

Sei que não passo de um alemão, mas no meio deste entusiasmo convulsivo, desta golpada mediática alinhando em tudo o que são as estratégias de diversão e distração, tão afins das indústrias do entretenimento, ainda não vi ser beliscado o esbanjador estilo de vida que ameaça levar–nos à mais completa ruína social. Talvez nos devesse preocupar um pouco que algumas mentes brilhantes de Silicon Valley, que enriqueceram fabulosamente em poucos anos, estejam a preparar o amanhã comprando bunkers em pontos remotos do planeta. Talvez nos devesse preocupar esta dinâmica aspiracional que eleva a deuses jogadores de futebol, atores de Hollywood e figuras reconhecidas apenas por famosas e que, em 2016, converteu a Casa Branca no prémio final de um reality show. Quando movimentos como o #MeToo conseguem reforçar ainda mais a cultura das celebridades, com cada vez menos ênfase no mérito artístico ou intelectual, há razões para desconfiar que tudo isto é a aplicação da receita que, na falta de pão, manda dar mais circo.

Perdoem tão crua observação, mas parece que as mulheres que já não podem ser objetificadas em eventos desportivos e outros estão, num plano mais alargado, a ser usadas para dirigir as atenções sobre um conjunto de aspetos, certamente negativos, mas que não põem em xeque um esquema social atroz. Há nisto tudo um extraordinário impasse, uma forma de fazer colidir os campos da vida privada e pública, de tal modo que os grandes desafios atuais, ameaças à escala planetária, vão congeminando, nas costas do sonho de uma sociedade ideal, um retrocesso civilizacional que pode bem devolver-nos a uma Idade Média das liberdades individuais. Naquilo que chamamos o Primeiro Mundo, muitas das vítimas que hoje surgem como os heróis desse amanhã ideal talvez ainda venham a morrer de nostalgia em relação ao dia de ontem.