Correspondências. A multiplicação das cartas de Sophia e Jorge de Sena

A partir de “Correspondência – Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena”, Rita Azevedo Gomes construiu uma narrativa que não se fez apenas dela. Também de poemas, ou da multiplicação de todas as palavras pelas vozes dos que as disseram. Daí, só o plural para título deste seu novo filme

Em “Correspondências” não há bem ficha técnica, antes uma grande assinatura coletiva de todos aqueles que o fizeram ou ajudaram a fazer. Razão para isso será a mesma que levou Rita Azevedo Gomes a chamá-lo pelo plural, a partir de “Correspondência – Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena”, em que a Guerra & Paz compilou as cartas trocadas entre Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena de 1959 a 1978, os anos do exílio do poeta, ensaísta e dramaturgo português que nele – em Santa Barbara, Califórnia – acabaria por morrer nesse mesmo ano de 1978.

Ponto de partida para a realizadora para este seu documentário, em 2016 selecionado para o Festival de Locarno e que hoje se estreia nas salas portuguesas, haveria de ser esse livro, que leu assim que foi editado, em 2006, e onde encontrou uma “grande atualidade” – literária mas política também. Nesse diálogo mantido ao longo de anos entre dois dos nomes maiores da literatura portuguesa da segunda metade do último século, Rita Azevedo Gomes foi encontrar um “retrato muito vivo do que foram aqueles anos de 1960, 70”, tempos conturbados que, na descoberta das cartas, foi resgatando às suas próprias memórias de infância. “Em coisas muito pontuais, daquelas que a gente guarda sem saber bem porquê. Como o momento em que a vizinha entra em casa um dia a dizer que rebentou a guerra nas colónias”, recorda em conversa com o i.

“Lembro-me de não perceber o que aquilo era, mas da agitação dos adultos, de sentir que alguma coisa de grave que não era para as crianças se estava a passar e que não era para as crianças.” Como o “frenesim” que eram visitas de José Rodrigues Miguéis, chegado da América, à casa dos seus pais. “Eram notícias que vinham de fora, que nos diziam mais do que o que nós próprios sabíamos do que se passava no país. Era uma atmosfera de festa, passava-se a tarde a contar histórias, e a minha mãe perguntava sempre pelo Sena, como estava, porque não havia notícias.”

Jorge de Sena, precisamente, cujos poemas a sua mãe lhe ia pondo nas mãos, em livros – como os de Sophia. E à poesia teria de ir dar este filme em que ao longo de quase duas horas e meia se cosem cartas com poemas com as vozes de todos os lugares que em todas as direções vão espalhando este legado, ao mesmo tempo retrato de um tempo. “Quando pensei em fazer o filme não pensei logo nos poemas, mas quando comecei a ler a poesia deles vi que os motivos dos poemas eram os mesmos das conversas do quotidiano nas cartas, ou ao telefone, suponho. Está lá, dito de outra forma, porque são poemas, mas é a mesma voz.”

Voz multiplicada, ou desmultiplicada, por todas estas, tantas que serão difíceis de contar, através das quais nos chegam Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena, o retrato de uma amizade mantida intacta à distância ao longo de duas décadas, mas também de um país numa época conturbada. “Desde o princípio que pensei fazer o filme assim, por muitas pessoas. Quantas mais, melhor. O filme foi feito por pessoas que, sem saberem o que seria o filme, aderiram completamente. E éramos dois, três, cinco, pouquíssima gente de cada vez. Às vezes filmava só uma tarde, improvisava-se, e foi muito bonito”, recorda Rita Azevedo Gomes, a terminar agora o seu próximo filme, “A Portuguesa”.

“A ideia era passar isto para várias vozes, em várias línguas, espalhar isto pelo mundo. O que me interessa é que as pessoas possam ouvir o que eles dizem. E desmultiplicar.” Nesse processo que acaba por ser todo este filme encontraremos Rita Durão, Anna Leppänen, Eva Truffaut, Luís Miguel Cintra. “O Cintra… O Cintra veio, também sem saber muito bem ao quê, e contou-me imensas histórias do Sena… e depois leu o poema [’Glória’] – ‘um dia nos libertaremos da morte sem deixar de morrer’ – e disse: ‘Não sei se estou de acordo. Também podia ser um dia nos libertaremos da morte sem deixar de viver’, e quis manter isso no filme.”

Porque afinal não foi apenas um filme sobre estas cartas este “Correspondências” de Rita Azevedo Gomes, como explica. “Neste encontro com todas estas pessoas procurei sempre ir ao encontro daquilo que elas são na vida”, e explica: “O Guilherme Lopes Alves, que é um amigo meu que desenha, aparece a desenhar”, em cenas que foram filmadas na sua própria casa. Como se filmou também em casa de Eva Truffaut, em Paris. Onde a realizadora conheceu por acaso, num café, Alexander Zekke, compositor e violoncelista que trabalhou com Pina Bausch e que no dia seguinte estava já a trabalhar na banda sonora do filme. “Tentei sempre ir à vida das pessoas e levar a história para dentro da casa delas, também escolher excertos de cartas ou poemas que achava que tinham a ver com elas, não era gratuito.”

Daí o título “Correspondências”, plural para um filme que mais do que trabalho de equipa, foi construção de encontros, entre as cartas e a obra de dois autores e os que lhes emprestariam a voz, mas não só. “Também com cada pessoa. E continua agora nas sessões no Cinema Ideal, nestas conversas que continuarão a criar bolhas. Dá-me ideia de que, para lá do filme, isto continua ainda a multiplicar-se.”