Béla Tarr. “É à proteção da dignidade humana que dedico a minha vida”

Para o realizador de “O Cavalo de Turim” têm sido recorrentes as visitas a Lisboa. E foi durante a última que o encontrámos para esta conversa

À espera de uma entrevista com Béla Tarr, só que será parco nas palavras. Parco, mas certeiro. Assim foi neste fim de tarde em que o encontrámos no café da Cinemateca Portuguesa, em Lisboa, numa pausa do workshop que deu ao longo de duas semanas a um conjunto de jovens realizadores de várias nacionalidades. É sobretudo a eles que diz querer dedicar-se, agora que tudo o que tinha para dizer com uma câmara está dito. “Continuo a acreditar no cinema. Sou viciado no cinema e em filmes. Se quisesse fazer um filme, faria. Só que não quero. Já disse tudo, não há para mim razão para continuar.” Dirá também o realizador de “O Cavalo de Turim” que o que quer agora é dar aos que começam coragem para que sejam livres, “realmente livres”. E numa conversa em que as respostas se hão de ir fazendo mais longas, virá quase no final também um primeiro sorriso, dos espertos, nada ingénuo: “O meu grande objetivo é destruir esta porcaria de sistema anti-humanista em que vivemos.”

Quando tinha já anunciado que deixaria de filmar por achar que tinha dito tudo o que havia a dizer com “O Cavalo de Turim”, deu numa das suas visitas a Lisboa, em 2013, uma palestra na Gulbenkian em que, a uma longuíssima pergunta que analisava todo o seu cinema, respondeu apenas com o pousar de uma garrafa de água numa mesa, para dizer que o que fazia era apenas olhar para aquilo que existe. Acredita mesmo que isso seja assim tão simples?

Sabe, as coisas acontecem de uma forma muito simples. Vivemos a nossa vida, estamos com pessoas e vemos o que acontece. Recebemos tudo isso que, depois, transformamos e partilhamos com os outros. Claro que é um ponto de vista que vem da forma como vemos o mundo. Claro que, se não formos estúpidos, a vida nos toca. 

Entretanto mudou-se para Sarajevo, onde deu aulas durante vários anos, tem dado várias masterclasses e workshops, como este do FEST que está a decorrer aqui em Lisboa. Encontrou aí uma nova forma de continuar a fazer algo pelo mundo?

Não é apenas isso. Tive agora uma grande exposição em Amesterdão [“Béla Tarr – Till the End of the World”, inaugurada em janeiro de 2017 no EYE Filmmuseum] e tenho outras ideias, porque me faz falta a criação. Claro que quero continuar a criar, só não quero continuar a fazer filmes. 

Mas acabou por fazer entretanto uma curta-metragem, “Muhamed”, centrada num rapaz que toca acordeão num centro comercial, num registo a aproximar-se do documental.

Não se pode dizer que seja um documentário porque escolhi um rapaz, levei-o para um lugar, e isso é absolutamente ficção. De qualquer modo, só o filmei como parte da exposição. Precisava dele para a exposição. Não acho que seja bem uma curta, era apenas um vídeo a que queria juntar à exposição, como um último capítulo. Este rapaz. E chamei-lhe “Muhamed”. 

Essa exposição, “Béla Tarr – Till the End of the World”, veio como um statement político sobre a tragédia dos refugiados na Europa. Foi essa a sua motivação, sentir-se atingido pela realidade de tal forma que teria de ter algo a dizer?

É uma questão de sensibilidade social. Estarei sempre do lado dos mais miseráveis, dos que têm a vida lixada. Dar-lhes dignidade é muito importante para mim. É, digamos, à proteção da dignidade humana que dedico a minha vida, a contar e a mostrar o que significa ser-se um ser humano. 

E a partir daí, como tem assistido e lidado com esta que é a nova realidade da Europa, sobretudo como cidadão de um país que tem à frente Viktor Orbán, um homem que classificou os refugiados como “invasores” e que liderou o grupo de países que se recusaram a cooperar com o plano europeu para o acolhimento dos refugiados?

Escrevi um texto muito longo sobre isso. Acho que se dizemos que somos cristãos, temos a obrigação de proteger os miseráveis. Não podemos erguer muros. O que a Hungria tem estado a fazer com os refugiados é uma enorme vergonha para mim. É inaceitável. Não temos este direito. Não podemos tratar seres humanos desta forma. 

Aproveitando o facto de estarmos a falar na Hungria, há meses esteve em Lisboa a realizadora Ildikó Enyedi, a propósito da estreia de “On Body And Soul” em Portugal, no LEFFEST. Esse filme, com o qual venceu o Urso de Ouro em Berlim, que foi a sua primeira longa em 20 anos – facto que na conversa com o público atribuiu à ausência de uma política para o cinema por parte dos sucessivos governos húngaros. 

A Ildikó Enyedi não fez filmes porque não fez. Foi uma decisão dela que não tem nada a ver com questões de estruturas políticas. Se ela se preocupasse com as questões políticas, nunca teria aceitado um único cêntimo do Fundo Nacional do Cinema da Hungria, que está associado a este governo. E não quis saber disso. 

Se não tivesse parado de fazer filmes não aceitaria também?

Eu? Se quisesse fazer agora algum filme, fá-lo-ia de forma independente. Se quiser mesmo fazer um filme, posso fazê-lo com o meu telemóvel. Não é uma questão de dinheiro. É um embuste falar-se assim no dinheiro. Quando se é um verdadeiro realizador e se quer realmente fazer um filme, faz-se. Facilmente. Com a porcaria de um computador e de um telefone. A questão não é mesmo essa. 

Continua a acreditar no cinema como arma política?
Continuo a acreditar no cinema. Como um drogado, sou viciado no cinema e em filmes. Honestamente, se quisesse fazer um filme, faria. Só que não quero. Porque já disse tudo. Não há para mim razão para continuar. Claro que ao longo de 40 anos a fazer filmes tive muitas experiências. Agora quero apenas partilhá-las com os mais jovens para os ajudar a tornarem-se mais fortes, para lhes dar coragem, para os incentivar a serem eles próprios. E livres, realmente livres. O que vejo hoje é que as pessoas não são livres porque têm as suas cabeças completamente formatadas por esta porcaria de sistema. Podemos chamar-lhe o que quisermos – capitalismo, feudalismo, socialismo, não interessa. A questão é: se somos parte do sistema, temos de aceitar a lógica do sistema. E o que eu quero é dar-lhes coragem para recusar a lógica do sistema. 

É essa a sua missão agora?

Sim! [sorri] O meu grande objetivo é destruir esta porcaria de sistema anti-humanista em que vivemos.

Um desses seus alunos foi André Gil Mata, que acabou de estrear também em Berlim “DRVO – A Árvore”, que rodou na Bósnia, justamente, logo depois de o Béla ter anunciado que deixaria Sarajevo.

Vi o filme aqui [em Lisboa]. Não estive em Berlim, mas vi-o agora. Não vou é dizer nada sobre o filme. Nunca comento o trabalho dos meus colegas por uma questão muito simples: todos somos artistas e todos temos uma visão e uma sensibilidade diferentes, um diferente ponto de vista para um projeto também ele diferente, a partir de contextos e de realidades diferentes. Como posso dizer algo? Ele tem a sua forma de fazer filmes, outra pessoa terá outra, e isso é maravilhoso, sermos diferentes. O nosso poder está nessas diferenças. Não quero que as pessoas sejam iguais, isso é muito aborrecido. Temos de ser diferentes e temos de manter as nossas diferenças e de ter orgulho nisso. Falo na cor da pele, em tudo. Temos de proteger as nossas diferenças. E há outra razão para não querer dizer-lhe nada sobre o filme do André [e sorri de novo]: é que quero dizer-lhe a ele primeiro.