Stephen Hawking (1942- 2018). Um professor além da ciência

Diagnosticado com uma doença incapacitante aos 21 anos, Hawking não se resignou. Morreu ontem, uma vida cheia depois, aos 76 anos 

“O mais importante é termos a capacidade de criar. A criatividade pode assumir várias formas, das conquistas físicas à física teórica. Por mais difícil que seja a vida, há sempre alguma coisa que podem fazer e em que podem vingar.” O discurso de Stephen Hawking na abertura das Paraolimpíadas de Londres, em 2012, foi ontem dos mais citados e parece sintetizar as lições de uma vida que vingou além da ciência. Aos 76 anos, desapareceu um dos cientistas mais proeminentes da atualidade, mas também uma figura consensualmente elogiada pelo testemunho de vida. Hawking viveu 55 anos com esclerose lateral amiotrófica, quando o médico que o diagnosticou lhe deu apenas dois anos de vida. Começou a publicar em 1965 e só parou no ano passado. Casou duas vezes e teve três filhos.

Mais que um mito, um herói Hawking nasceu a 8 de janeiro de 1942 em Oxford e há quem veja logo aí um prenúncio. No dia em que veio ao mundo passavam precisamente 300 anos da morte de Galileu Galilei. Morreu esta quarta-feira, data em que Albert Einstein, se fosse vivo, faria 139 anos. Hawking, que estudou primeiro em Oxford e depois fez o doutoramento em Cambridge, onde foi professor toda a vida, não desprezava os grandes da física e da astronomia, bem pelo contrário. Em 2002 organizou a coletânea “Aos Ombros de Gigantes”, editada em 2010 em Portugal, com textos clássicos de Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Einstein. 

A obra que deixa é caso ou não para entrar nesta galeria? Carlos Fiolhais, físico e o coordenador da edição portuguesa do volume, com mais de mil páginas – “que nos faz sentir mais sábios porque temos os sábios ao pé de nós”, sorri – ajuda a pôr as coisas em perspetiva. “É muito difícil dizer quem é o maior gigante. Talvez na física seja Newton, a seguir o Einstein, ou ao contrário. Stephen Hawking está um bocadinho distante, embora haja uma ligação a Newton, desde logo porque ele ocupou a mesma cátedra que Newton em Cambridge, a Cátedra Lucasiana de Matemática”, diz o professor da Universidade de Coimbra ao i.

A “Lucasian Chair”, criada no séc. xvii e destinada aos pensadores mais brilhantes de cada época, pertenceu a Hawking entre 1979 e 2009, 30 anos certos. “É evidente que Newton só há um, tal como Einstein só há um, mas Hawking trabalhou em questões fundamentais para as quais é preciso estar apoiado em gigantes. Para usar a metáfora de Newton, teve de subir ao ombro de gigantes para ver mais longe. Claro que não é fácil para ninguém subir tão alto e manter-se equilibrado: fez especulações e a sua teoria, como o próprio reconhecia, era limitada.” 

No caso da radiação dos buracos negros, previsão que ficará na história com o seu nome, há um problema: ainda não foi observada e poderá nunca o ser. “A contribuição mais significativa foi ter previsto essa radiação, que os buracos negros não são assim tão negros porque, se incorporarmos a teoria quântica, poderão radiar. A matéria negra é, por exemplo, o coração de uma estrela que explodiu. O que ele diz é que esse campo é tão intenso e a energia está de tal forma concentrada que podem nascer partículas e antipartículas. Será que isto existe mesmo ou é uma especulação apenas baseada em matemática? Tanto quando sabemos, há boas razões para pensar que, se assim for, será difícil medir.”

Orfeu Bertolami, físico teórico e professor da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto – que chegou a ter aulas de Cosmologia Quântica com Stephen Hawking nos anos 80 em Cambridge –, também não tem dúvidas do seu contributo científico, mesmo que não possa ser colocado no mesmo patamar de gigantes como Einstein. “Certamente que se a radiação dos buracos negros tivesse sido provada, teria ganho o prémio Nobel. O problema é que essa radiação está prevista em buracos negros infinitamente pequenos e isso faz com que seja impossível ser detetada”, disse ontem ao i o investigador. Orfeu Bertolami destaca outros trabalhos de Hawking, nomeadamente na cosmologia quântica e pela teoria que, nos anos 80, fazia dele um homem já famoso para quem chegava a Cambridge para aprender. Junto com Roger Penrose, sustentaram que seria necessário unir a teoria geral da relatividade de Einstein com a teoria quântica para uma teoria de tudo. 

Foi um pouco sobre isso que Orfeu Bertolami aprendeu durante dois meses de aulas com Stephen Hawking e a sua cosmologia inovadora, que apontava alguns pontos do espaço-tempo, por exemplo o centro de um buraco negro, em que as equações da teoria de Einstein não funcionavam, as “singularidades”. “A relatividade geral é uma teoria clássica no sentido em que tem todos os elementos do séc. xix, não incorpora a física dos quanta, de tudo o que é infinitamente pequeno. Um dos problemas é o comportamento a pequeníssimas escalas e para isso surgiu a outra grande teoria do séc. xx, que é a mecânica quântica. A cadeira versava sobre isso”, lembra o investigador.

Nas aulas com o professor Stephen Hawking E como eram as aulas? Estávamos em 1983, Hawking já era um proeminente professor de Cambridge, mas a doença ainda o deixava falar sem o recurso a um sintetizador de voz. “Naquela época, ele era capaz de falar mas, na realidade, balbuciava as aulas. Havia alguns estudantes que conseguiam entender o que ele dizia. Escreviam no quadro, corrigia as equações. Era um ritmo mais lento, mas isso dava-nos mais tempo para pensar nas coisas.”

E não havia tiradas mais filosóficas como as que nos últimos anos foram fazendo notícia, de não haver vida depois da morte à ameaça de uma civilização alienígena mais avançada? Do que recorda Orfeu Bertolami, nem por isso. “Era o estilo inglês, estritamente on business. Obviamente que às vezes havia uma tirada de bom humor, o que era muito típico dele. Não me lembro de nenhuma em particular dessas aulas mas, quando perdeu a voz, lembro-me, por exemplo, de frequentemente se desculpar pelo acento americano do sintetizador de voz. Tinham-lhe dado um sotaque terrivelmente californiano que não tinha absolutamente nada a ver com o inglês que falou em tempos.”

A força, isso sim, fica gravada em quem passou por ele e foi ontem elogiada por várias figuras. “É um legado humano extraordinário”, reconhece Bertolami. “É impensável um homem com aquelas limitações ir trabalhar todos os dias. O departamento estava completamente adaptado e com certeza que, nessa medida, abriu portas a outras pessoas. Fazíamos um intervalo para tomar café às 11h da manhã e outro às 16h, e ele ficava na fila como toda a gente. Lembro-me de nas conferências ele ter uma convulsão, às vezes, quando estava a falar, e quando se recompunha recomeçava a frase exatamente onde tinha parado. Era algo notável”, recorda o antigo aluno.

Um colega de Cambridge, aluno de Hawking durante mais tempo, contou-lhe um dia outra história que mostrava até que ponto ele queria viver. “Foram aos Estados Unidos e um dia foram a uma discoteca. Ele nunca tinha ido e daquela vez foi, e ficou a girar no meio da pista na cadeira de rodas. Queria mostrar que era uma pessoa normal, que tinha o mesmo impulso que os outros.”

Também Carlos Fiolhais vê neste lado humano um dos maiores testemunhos de Stephen Hawking para além de, enquanto cientista, ter querido penetrar nos maiores mistérios do universo. “Superou uma condição física difícil, a morte iminente e fez uma carreira o mais normal possível. Deixa-nos uma lição para lá da ciência que é uma lição de ligação à vida.” E se para o físico não há dúvida de que foi também a doença que o projetou e que é isso que faz dele um mito, é um herói bem-vindo. “É talvez o cientista contemporâneo mais conhecido, devido ao seu trabalho e ao esforço tenaz. A vida científica precisa de heróis e ficamos contentes por haver um de nós que, embora por razões que não são apenas do foro cientifico, consegue esse reconhecimento. É, a par de Carl Sagan, o maior comunicador de ciência dos tempos modernos.”

Foi, aliás, Sagan que escreveu a introdução de “Breve História do Tempo”, o livro publicado em 1988 por Hawking e que vendeu mais de 10 milhões de exemplares. “É um dos livros científicos mais vendidos de sempre, mais que ‘A Origem das Espécies’”, frisa Fiolhais. Nesse prefácio, Sagan, que desapareceu em 1996, recorda a primeira vez que viu Hawking, em 1974, “um jovem numa cadeira de rodas a assinar, muito devagar, um livro de Isaac Newton”, rodeado de uma multidão. Nessa altura, escreveu Sagan, Hawking já era uma lenda. 

Ao fim de 76 anos de vida, a lenda continuará. Um conselho aos filhos tornou–se uma das suas mensagens mais icónicas. “Lembrem-se de olhar para as estrelas e não para os vossos pés. Nunca desistam do trabalho. Dá um sentido e um propósito à vida, que fica vazia sem ele. Se tiverem a sorte de encontrar o amor, lembrem-se que é raro e não o desperdicem.”