Presidente e maestro…

Ao completar dois anos de mandato,  Marcelo Rebelo de Sousa tem o país rendido ao virtuosismo constante da  palavra e à sua natureza extrovertida e afetiva, seguido acriticamente pelos media. Um maestro, como se autointitulou, que exercita a batuta perante uma partitura que domina de cor.  O professor e antigo comentador, irreverente e ácido nas…

Ao completar dois anos de mandato,  Marcelo Rebelo de Sousa tem o país rendido ao virtuosismo constante da  palavra e à sua natureza extrovertida e afetiva, seguido acriticamente pelos media. Um maestro, como se autointitulou, que exercita a batuta perante uma partitura que domina de cor. 

O professor e antigo comentador, irreverente e ácido nas suas ‘missas’ dominicais,   resiste mal a um microfone e os jornalistas que o assediam sabem disso. Perguntam-lhe sobre tudo, e ele, pacientemente, não deixa ninguém sem resposta

O resultado acaba por ser perverso: durante vários anos, o país político  habituou-se a esperar pela ‘homilia’ semanal de Marcelo, conferindo-lhe um estatuto de oráculo. E ele retribuía com avaliações sábias, distribuindo notas salomonicamente. Hoje, ouve-se quase todos os dias.

O gráfico das audiências, que Marcelo vigiava então com zelo, mais o convenceu  de um destino traçado. Por isso, chegado o momento próprio, nem precisou de campanha eleitoral. Estava escolhido à partida. Salvo – confessou agora – se Guterres se tivesse candidatado. A ONU ficaria a perder. E Marcelo não menos.   

 Sabe-se como as redações são especialmente sensíveis a quem, vindo da direita, goste do convívio à esquerda. Cavaco nunca logrou vencer as barreiras, incluindo as de berço, que a ‘esquerda chique’ não perdoa.

Ao contrário, Marcelo cedo demonstrou ser tão capaz de circular na Festa do Avante! como ir a banhos nas praias de Cascais ou tratar ‘por tu’ a elite política e financeira. Não é para todos. 

Quase a meio do mandato, o Presidente conseguiu cativar os jornalistas e ter o país deslumbrado, mesmo quando o acham excessivo.  O maior risco, com a vertigem em que anda, é tropeçar em si próprio. 

Depois, o seu gosto pelos estúdios fez escola e teve um efeito multiplicador. Não se conhece na Europa outro exemplo de tamanha lista de comentadores, da esquerda à direita.  

Há uma legião de políticos no ativo ou desempregados que procuram pastorear os portugueses, com agenda e interesses próprios. 

De todos, Francisco Louçã é omnipresente, desdobrando-se, com proveito e doutrina, por diferentes meios, incluindo o Expresso, que lhe entregou de mão beijada quase uma página do caderno de economia. E, quando calha, ainda o mima com espaço na edição diária online, oferecendo-lhe também uma dezena de páginas da revista para o ‘professor catedrático do ISEG’ (como assina cheio de si) celebrar o bicentenário de Karl Marx. 

São insondáveis os critérios editoriais do ‘navio-almirante’ de Balsemão, de bússola errática, em perda constante de velocidade…

Com tantos ‘herdeiros’ do comentário político do qual foi pioneiro, Marcelo percorre um país conformado, alternando entre a euforia e a depressão – exercendo ainda o papel de ‘pronto socorro’ da ‘geringonça’, que salvou em várias ocasiões em que esteve à beira de desconjuntar-se, com o timoneiro perdido.

Este modo de ser reforçou-lhe, contudo, a popularidade, promovendo-o a um patamar que raros alcançaram. Talvez Mário Soares, nos seus melhores dias.

O colapso do Estado nos incêndios de Verão ou em Tancos já lá vai. A degradação do Serviço Nacional de Saúde, a barafunda instalada no Ensino pelo atual ministro, ou o risco denunciado pelo LNEC na ponte sobre Tejo, não chegam para atrapalhar o otimismo do Presidente, que acha que deu ‘murros na mesa’ quando foi preciso.

 Infelizmente, sempre que exigiu responsabilidades «doa a quem doer», retribuíram-lhe com resmas de inquéritos inconclusivos, fingindo serviço. E uma mão cheia de nada. 

Já no ‘campeonato dos afagos’, é Assunção Cristas quem mais se aproxima de Marcelo, cometendo ainda a proeza de terminar o Congresso de Lamego a irritar as esquerdas – ao declarar-se apta para ser primeira-ministra, capaz de mobilizar o eleitorado e duplicar a votação no CDS. Louçã apressou-se a desvalorizar a hipótese, com tanto afã que dir-se-ia inquieto.

Eis no que deu a ‘estratégia’ de Rui Rio: há menos de um ano, Cristas faria sorrir com complacência. Hoje, graças à passividade da direção do PSD, a ousadia é levada a sério, como o comprovaram as capas dos jornais – que, à exceção do i, quase ignoraram o seu discurso de encerramento do Congresso.

Cristas incomoda. A sua ambição perturba as esquerdas. Com a desistência de Rio, o ‘nervo’ da oposição está a deslocar-se para o CDS. Viu-se nas entrevistas que ambos concederam, em original simultâneo, nas televisões. 

Rio ‘despromovido’ para a RTP-2, enfiado no décor pesado da Biblioteca Joanina de Coimbra. Cristas, incisiva e sorridente, na SIC-N, sem estar perdida no cenário.

A diferença entre ambos não esteve apenas no estilo e no enquadramento. As cenas dos próximos capítulos prometem…