Ocidente, Rússia e a linguagem do poder

Em 2009 as relações dos Estados Unidos com a Rússia são tensas. Acabada de chegar à liderança do Departamento de Estado, Hillary Clinton reúne-se com o homólogo russo.

Antes de um jantar chique em Genebra, puxa de uma caixa verde com um laço e oferece-a a Sergei Lavrov. O veterano abre o presente e encontra um botão vermelho, estilo detonador, com uma inscrição em russo: «peregruzka». Clinton explica: «Queremos fazer um ‘reset’ na nossa relação. Trabalhámos no duro para encontrar a palavra russa». Lavrov ri e interpela a ex-primeira-dama. «A palavra que procuravam é ‘prerezagruzka’ e não ‘peregruzka’. A primeira significa reinício, a segunda sobrecarga». 

Uma gafe premonitória. Com quase uma década volvida, o botão das relações entre o Ocidente e a Rússia está em curto-circuito. 

As capitais ocidentais tendem a olhar para a Rússia como uma potência autocrática, beligerante, desrespeitadora da lei internacional e dos direitos humanos. Moscovo vê as coisas de maneira diferente: limita-se a reagir a provocações constantes da NATO e da UE, que estacionaram tropas à sua porta e patrocinam ingerências na vida interna.

As eleições presidenciais de amanhã são um passeio no parque para Putin, que se prepara para o segundo e último mandato do seu segundo (ninguém arrisca dizer último) ciclo presidencial.

Que o escrutínio tenha lugar no dia 18 de março não é coincidência. Remete para a anexação da Crimeia, há quatro anos, e para a aura do ex-agente do KGB como grande reconstrutor do império e protetor da ‘mãe Rússia’. E se o resultado não oferece grande discussão, há pelo menos duas grandes questões que permanecem em aberto. 

Primeira questão: quais são as prioridades de Putin? Em 18 anos tivemos três versões do putinismo: (1) o Presidente que represou o dique russo no caos e esmagou as tendências separatistas; (2) o Vladimir Putin implacável com parte da oligarquia que enriqueceu à custa dos despojos da URSS; (3) depois de uma pausa para entrada em cena de Medvedev, o Presidente que procurou reaproximar as fronteiras russas às da sua esfera de influência.

O recente discurso do estado da união parece dar o tom para o que aí vem: «Os esforços para conter a Rússia falharam, aceitem-no», desafiou Putin entre novos mísseis infalíveis, e promessas de melhoria da qualidade de vida do povo.

Segunda questão: terá o Ocidente vontade de falar a mesma linguagem do poder do Kremlin? A maioria dos decisores políticos tende a ignorar as constantes da grande estratégia russa. Moscovo é guiada pela ideia de um certo excecionalismo. A intervenção na Síria não demonstra apenas força: é um sinal da paridade que os russos pretendem no sistema internacional. Esse objetivo assenta, porém, num enorme complexo de segurança: a eterna indefensibilidade de um território com mais de 20 mil km de fronteira terrestre e uma densidade populacional criticamente baixa, vulnerável pelo corredor das estepes (Ásia Central) e pela grande planície europeia. Em certa medida, são os desafios da geografia que justificam a necessidade de grande centralização política, por um lado, e uma política ‘ofensiva’ na procura de zonas tampão pela ausência de boas ‘opções defensivas’, por outro. Estes são os princípios que guiam a ação de Moscovo, pelo menos desde Ivan III.

Enquanto não entenderem a linguagem da geografia e do poder, os líderes ocidentais continuarão a ser incapazes de lidar com Putin e de estabelecer uma relação estável com a Rússia. 

Os desafios da política internacional nunca se resolverão com um toque no botão.