“Sem esperança, sem amor, sem liberdade, como posso fazer arte?”, pergunta Haitham

Haitham é um refugiado sírio que passou pelo CATR. Conta a sua história ao i e não poupa críticas ao governo e à burocracia que por cá encontrou

É lá fora, no jardim, que conversamos com Haitham. O sírio não parece totalmente à vontade, e não cremos que seja por a conversa ser em inglês. Perguntamos-lhe se se quer sentar, responde que podemos passear um pouco. “Isto era um palacete, sabe?” Refere-se ao sítio onde é hoje o CATR. Decide então que prefere sentar-se. “Querem visitar o centro?”, pergunta. “Já visitámos”, replicamos. Sugerimos uma mesa, aceita a sugestão. Sentados, conta a sua história.

“Quando cheguei ao país, tive um começo muito mau”, introduz. A voz treme ao dizer que começou por ficar três dias no centro temporário da Cruz Vermelha Portuguesa, em Lisboa. Foi depois para Albufeira, no Algarve, onde outro refugiado sírio, “guerreiro da milícia, que andava armado na guerra”, tentou matá–lo com uma pedra no primeiro dia. Voltou a tentá-lo repetidas vezes. “Fiquei surpreendido por me porem a conviver com esta pessoa durante 25 dias.” Haitham era o alvo perfeito: “encenador, ator e solteiro”.

Para fugir ao perigo, decide vir para Lisboa, sozinho, para tentar recomeçar a sua vida. “Aqui, no centro do Lumiar, fiquei surpreendido porque, se já tinha tido problemas com uma pessoa, como é que me encaminham para um sítio com tantos refugiados sírios?”, questiona. Responde à sua própria pergunta: “O governo não tem um programa, uma estratégia, nada é planeado antes”, defende. A sua acusação não é infundada: estivessem os responsáveis a par da sua história e do seu passado, tal como dos dos outros refugiados, e Haitham não teria sido encaminhado para junto da pessoa que tentou tirar-lhe a vida. “O governo acolhe os refugiados sem ler os seus ficheiros e documentos, não sabem quem são. Só se preocupa com a imagem que dá aos portugueses e lá para fora.”

Ali, no centro do Lumiar, Haitham percebeu que estava em boas mãos, entre boas pessoas. “E com o tempo, devagar, as coisas começaram a melhorar”, recorda. Ainda assim, espantou-o como “tudo aqui em Portugal precisa de muito tempo para mudar”, referindo-se à carga burocrática existente no país.

Ficou no CATR durante um mês e meio e na segunda fase do programa, já a partilhar casa com outros refugiados, foi novamente atacado. “Magoaram-me outra vez. Não para me matar, mas de outra forma.” Não especifica, acrescentando apenas que “um era iraquiano e outro sírio”. Um pouco antes da guerra trabalhava como jornalista numa estação televisiva síria a favor do regime de Assad. “Era uma estação que o povo sírio detestava, até as pessoas a favor do regime. Mas era um trabalho e eu precisava de dinheiro”, recorda. “O teatro não garante uma boa vida”, lamenta.

Quando a guerra começou, demitiu-se. Deixou Damasco e foi cuidar da mãe, em Alepo, que vivia com a sua irmã. “Tenho uma família muito grande, 11 irmãos e irmãs, mas agora estamos espalhados por sete países”, lamenta. Entretanto, a irmã foi viver para Berlim com a mãe, que aí viria a morrer, e o regime pediu–lhe “que continuasse a trabalhar, em Alepo”. Mas recusou e foi aí que os serviços secretos do regime começaram a persegui-lo. “São piores do que os serviços secretos de Estaline ou de Hitler”, diz. “Talvez na Coreia do Norte sejam semelhantes.”

Quando recusou o trabalho, começaram a fazer-lhe perguntas. Porque não aceitava? Haitham decidiu então ir para outro local, nos subúrbios de Alepo. Mas lá continuava em risco de vida, desta vez ameaçado pelas forças contrárias ao regime. “Sabiam que tinha trabalhado naquela estação televisiva, que era artista, solteiro e pacifista. Eu era um alvo fácil por vários motivos.” Foge então para a Turquia, onde continua em risco, e acaba na Grécia, onde conhece o refugiado que, mais tarde, em Albufeira, tenta matá-lo. “Na Grécia tinha um grande grupo de amigos que me protegia”, recorda.

“Quando cheguei a Portugal já tinha a minha tragédia pessoal, por causa da guerra e das perdas que tive. Fugi à guerra, mas a guerra seguiu-me.” Foi por isso que, já em Portugal, tentou o suicídio várias vezes. “Todo o processo dos documentos é muito demorado e, sem documentos, eu não tenho liberdade. Quando tentei suicidar-me, as palavras que deixei escritas foram ‘sem esperança, sem amor, sem liberdade, como posso fazer arte?’.”

Depois de sair do CATR foi viver para uma casa no Lumiar. Daí passou para a Ajuda, depois para Belém, depois ainda para o Alto de São João. “Finalmente encontrei uma boa casa, em Alfornelos, onde vivo agora.” Ainda assim, apesar de parte da vida de Haitham estar resolvida, no que ao trabalho diz respeito é a precariedade que impera. Teve “a sorte” de encontrar um grupo de teatro, a Casa da Achada, com “verdadeiros seres humanos” e com quem viria a fazer três peças. Entretanto deu oficinas de teatro de sombras – o seu preferido – e outras portas se abriram: integrou o elenco de um espetáculo apresentado no festival Todos, fez três cenas num filme português e ainda uma peça no Teatro da Trindade. “Este ano, infelizmente, ainda não tive qualquer proposta de trabalho, mas acho que alguma coisa vai chegar”, diz, mostrando-se esperançoso.

E o amor? “Tive duas pessoas de quem gostei: uma, na faculdade, que me disse que preferia casar com um homem rico; outra, durante os 15 anos que antecederam a guerra, a quem perdi o rasto. Não podíamos casar porque éramos de religiões diferentes.” Não sabe ao certo a sua idade, responde que deve ter 46 ou 47 anos. “É difícil encontrar o amor nesta idade e aqui. É outra cultura. Ainda por cima, quando se trabalha com arte é fundamental amar alguém.”