O discurso de Cavaco

Cavaco Silva anunciou, com estrondo, a sua recusa em empossar António Costa como primeiro-ministro. Não se limitou a dar a novidade, explicou também aos portugueses os motivos da sua decisão, aproveitando igualmente para censurar o comportamento de quem teria a obrigação de encontrar uma solução governativa estável e credível. De imediato uma chuva de críticas…

Cavaco Silva anunciou, com estrondo, a sua recusa em empossar António Costa como primeiro-ministro. Não se limitou a dar a novidade, explicou também aos portugueses os motivos da sua decisão, aproveitando igualmente para censurar o comportamento de quem teria a obrigação de encontrar uma solução governativa estável e credível.

De imediato uma chuva de críticas estendeu-se por todo o espectro político, com uma incidência bem mais ruidosa e acintosa, como seria de esperar, junto da esquerda, na verdade a principal visada pelas denúncias presidenciais.

Acusou-se o Presidente de hostilizar a Assembleia da República e os partidos e de desprezar o voto de algumas centenas de milhares de portugueses.

Mas vejamos, e eu sou insuspeito, considerando a minha militância monárquica, para debater este tema de forma desapaixonada, não vivemos nós numa república semi-presidencialista? Não foi este o modelo votado quase por unanimidade pelos constituintes de 76?

Alguma vez, nas diversas revisões constitucionais que nos ofereceram, se questionou os poderes presidenciais?

Nesta república jacobina, que por imposição constitucional somos forçados a suportar, o Chefe de Estado não é um simples marionete condenado a limitar-se a cortar fitas, mas pode, e deve quando necessário, exercer os poderes que lhe foram conferidos e pelos quais prestou juramento.

Quando Jorge Sampaio demitiu um governo com maioria absoluta, dissolveu o Parlamento e convocou eleições antecipadas, prestado, assim, um inestimável serviço ao partido no qual milita, ninguém da esquerda se insurgiu contra supostas ingerências presidenciais nas competências parlamentares. Ninguém acusou, então, Sampaio de exorbitar das suas funções e de atacar os partidos políticos e afrontar os eleitores destes. 
Mete mesmo dó ver esta esquerda a choramingar por se sentir ofendida com as palavras que lhe foram dirigidas, qual uma criança mimada que desata numa birra quando é repreendida pelos progenitores, quando ela própria nunca exteriorizou o mínimo respeito pela figura do actual mais alto magistrado da Nação, apenas porque com ele não se identifica ideologicamente!

Nos dez anos de presidência Cavaco Silva foi sempre desconsiderado e humilhado, no exercício das suas funções, por estes que agora se intitulam defensores do respeito entre os órgãos de soberania.

Nunca um presidente foi tão insultado, maltratado e desprezado por quem, a soldo do Estado, no mínimo lhe deveria consideração e contenção verbal.

Quantas vezes o Chefe de Estado entrou na AR, a tal casa da democracia, e praticamente metade do hemiciclo permanecia sentado, numa clara demonstração de falta de educação e de completa ausência de civismo!

As lideranças partidárias da esquerda nunca se impediram de criticar veemente Cavaco Silva por tudo e por nada, questionando sempre, com arrogância e enxovalho, o que este decidia ou não decidia.

E não o fizeram, certamente, por qualquer tipo de represália a comportamento idêntico para com os antecessores de Cavaco, porque à direita houve sempre o cuidado de se respeitar o inquilino de Belém, independentemente das suas simpatias políticas. 

É irónico que sejam os partidos, os grandes responsáveis pelo estado de pobreza a que o País tem sido votado e os únicos culpados pela embrulhada governativa em que agora se envolveram, que venham agora batalhar contra um exercício legítimo do Presidente da República, órgão de soberania que nunca se coibiram de achincalhar e menosprezar.

Além de mais, ao contrário do verificado na esmagadora maioria dos Estados europeus, em que os presidentes são eleitos pelo Parlamento, leia-se, escolhidos pelo chefe do governo, neste regime semi-presidencialista em que sobrevivemos o presidente tem uma legitimidade acrescida por, obrigatoriamente, ter que ser sufragado por mais de metade do eleitorado, circunstância que não se aplica aos movimentos partidários para aspirarem à governação.

Por isso a Cavaco Silva não bastava comunicar ao País a sua indisponibilidade para viabilizar uma solução de governo refém da esquerda radical, naturalmente que teria de justificar a sua decisão, desmascarando um plano de ambição pessoal de alguém sem escrúpulos que, num derradeiro esforço de sobrevivência política, não hesitou em pactuar com quem sempre se assumiu como inimigo da democracia.

O que está em causa na determinação do presidente é o juramento prestado quando tomou posse, obrigando-se a ser o garante da soberania nacional, razão pela qual não pode cruzar os braços perante uma ameaça que ousa pôr em causa os alicerces do Estado.

Não tenhamos quaisquer dúvidas: não são as crenças antieuropeístas, nem mesmo as reservas em relação à NATO, que podem minar a coesão nacional, mas sim a ideologia comunista que, a triunfar, resumirá Portugal à condição de um Estado totalitário e ditatorial, objectivo pelo qual os comunistas se continuam a bater.

Do Bloco de Esquerda não se receia eventuais perigos que venham a ameaçar a sociedade livre que todos ansiamos preservar. Na verdade trata-se de um grupelho aburguesado que, à semelhança do seu congénere grego, não terá pruridos em engavetar a ideologia que diz professar em troca das cadeiras do poder!
Mas do PCP não nos iludamos porque, como bem dizia há dias António Barreto, para eles a democracia não passa de um simples período de transição. 

Não há muito tempo o então presidente do grupo parlamentar comunista, hoje presidente da câmara de Loures, afirmava, com toda a convicção, ter dúvidas de que a Coreia do Norte não seja uma democracia! A este país paladino dos direitos humanos poderemos juntar Cuba e a extinta União Soviética, bem todos aqueles que orbitavam em seu torno, como os integrantes do Pacto de Varsóvia e o Vietname, Camboja e Laos, “paraísos” com que os apoiantes da foice e martelo sonham.

O fim último do comunismo é a revolução que conduza à ditadura do proletariado, com a consequente supressão das liberdades e do livre escrutínio dos governantes.

Daí a irresponsabilidade que constitui esta aproximação do PS aos seus adversários de ontem. Tanto mais porque, ao contrário da ideia que a nomenclatura socialista procura fazer passar, o partido comunista não mudou absolutamente nada.

O seu programa mantém-se inalterado ao que vigorava durante o consulado soviético, permanecendo, aliás, como o único partido comunista ocidental a manter o marxismo-leninismo como doutrina e a continuar fiel aos princípios estalinistas.

Ao contrário dos antigos partidos comunistas europeus, em particular os dos países latinos, detentores de uma força considerável durante o período da guerra fria, que se social-democratizaram após a queda do muro de Berlim, abandonando, assim, a ideologia totalitária, o PCP jamais abdicou dos valores que tiveram na génese da sua fundação.

Além de mais os comunistas são dos poucos que ainda, genuinamente, acreditam num ideal e por ele se batem, sem que daí procurem obter alguma recompensa pessoal. Não correm atrás de tachos nem de benesses, para si ou para os seus, movendo-se exclusivamente na persecução de um objectivo, que é o interesse do partido.

Por isso só com muita ingenuidade, ou com manifesta má-fé, é que se poderá acreditar nas boas intenções dos locatários da Soeiro Pereira Gomes.

Costa, de ingénuo nada tem!

Compreende-se, assim, a recusa de Cavaco Silva em permitir que o líder socialista leve a sua loucura avante. Mas esta postura presidencial somente será um acto de coragem e de firme determinação se assumida até às últimas consequências.

Se amanhã o presidente der o dito por não dito e conformar-se em empossar o homem do Rato como coveiro da Nação, toda a credibilidade que eventualmente lhe reste esfumar-se-á num ápice!