Julieta Monginho. “Basta de aborrecerem as mulheres com o que decidem vestir”

A escritora e magistrada alerta para um mundo que usa o medo e os sentimentos mais básicos para discriminar os refugiados e disseminar o ódio

“Trazem o que lhes restou: um caderno, um brinco, fotografias, a t-shirt do filho que morreu, um bebé a crescer na barriga, o barulho do seu quarto a ruir. Atravessado o mar, ergue-se o obstáculo inesperado: o muro construído pela hostilidade, esquecida dos que sucumbiram sem refúgio em território europeu, há menos de um século. À porta do muro alastram os campos de refugiados – chão de pedras, ratos, tendas fustigadas pelo sol, pela neve, pelas quezílias”, assim reza a contracapa de “Um Muro a Meio do Caminho”, último livro de Julieta Monginho, em que se contam as aventuras de Amina, que desenhava sonhos, Asmahn, que estava grávida, Shayma, que ficou só, Eleni, que é grega, Saud, que não se despediu dos pais, Ann, que ensina inglês, Omid, que se apaixonou, Dimitris, que tenta deixar de ser diretor de um campo de refugiados, Juan, que procura traduzir línguas e sentimentos, e J, que tem no nome a mesma primeira letra que a autora Julieta Monginho. 

Como foi parar a um campo de refugiados nas ilhas gregas?

Eu já me interessava por esta questão há uns anos. Tenho estas duas facetas que me dão a minha profissão [magistrada do Ministério Público] e ser escritora, mas sou sobretudo uma pessoa muito interessada nas questões dos direitos humanos. A primeira vez que me lembro de me ter interessado mais por este tema foi no verão de 2014, quando andei a fazer uma volta pela Escandinávia e, na altura, foi o auge da Guerra da Síria. Infelizmente, não sei se se pode dizer que houve um auge mas, naquela altura, tinha havido imagens de ataques com gás e isso abria os telejornais. Aquele povo é um saco de pancada de um conjunto de interesses e potências que se digladiam. Mais ou menos pela mesma altura, vi no “Guardian” uma reportagem no campo de Calais [norte de França], que não tem nada que ver com a Síria. Ao ver essas coisas até escrevi uma coisa que não vou publicar, para crianças. Como é que eu vou mesmo parar a um campo de refugiados? Um dia estava a ler o “Público” e vi uma entrevista de uma amiga minha a relatar a sua experiência num campo de refugiados, e telefonei-lhe e disse-lhe que gostava de ir. Ela respondeu-me: “Então vou ver com as pessoas que conheço como é que se pode fazer.” Resumindo, eu só podia ir de férias em Agosto e, com os conhecimentos que ela tinha tido com vários voluntários e organizações, desencadeou–se uma série de contactos, um dos principais Kaster Ratcliff, que estava em Quios – por isso é que vou para lá -, que fazia uma coisa que, para mim, era muito interessante, que era a preparação das entrevistas de admissibilidade. Eu falo no livro que os requerentes de asilo que são abrangidos pela Convenção de Genebra para acederem ao estatuto de refugiado têm de fazer uma entrevista.

A função dessa pessoa é organizar os dados dos refugidos de modo a que eles digam as coisas mais relevantes na entrevista.

Eles vêm todos atarantados. Essa pessoa tem de perceber quais as partes mais fracas e as partes mais relevantes do seu percurso. Não é para inventar histórias, mas é para se perceber melhor o que os levou a requerer asilo. Há pontos que as pessoas nem sequer focam porque não pensam nisso. Era inicialmente essa a minha ideia da tarefa que podia cumprir, até por causa da minha profissão. Para isso, estive a estudar livros de direito ligado aos refugiados, até porque não é a minha área. Só que, muito ironicamente, o meu amigo saiu antes de eu chegar à ilha grega de Quios. Eu e a minha amiga, que entretanto veio comigo, não tínhamos portugueses lá nem nenhum outro apoio. Tínhamos apenas a indicação de um grupo de voluntários na internet. Esse grupo em que nos inserimos era coordenado por uma voluntária grega e nele estavam pessoas que vinham de todas as partes do mundo.

E lá, o que fazia?

Eu fiz muitas coisas, mas rapidamente quis alargar o âmbito da minha intervenção porque ia ficar muito pouco tempo. Havia uma reunião matutina, às 8h30, em que havia uma distribuição de tarefas. A maioria delas eram tão simples como arrumar os donativos num armazém, que era um espaço caótico e quentíssimo; distribuir refeições ou outros produtos tão necessários como detergente para eles lavarem a roupa. As pessoas não tinham nada. Quando eram selecionadas para uma entrevista em Atenas, já era uma vitória, mas muitas não tinham sequer uma mala para levar as coisas delas. Todas essas parcas coisas, a gente tentava arranjar nos donativos. Outras coisas mais simples que fazíamos era entreter as crianças, que não tinham escola – isso com os miúdos acompanhados. Havia outra parte, os menores não acompanhados, que tinham um espaço próprio de que não podem sair sem ser com permissão das autoridades. Depois havia outras coisas muito difíceis, como a assistência aos desembarques e toda a vigilância que era feita de noite. Os insufláveis e as embarcações precárias chegavam de madrugada, pelo menos um por dia, e as pessoas chegavam em muito más condições.

Tal como a portuguesa que está no romance, também passava o tempo todo a tentar convencê-las a vir para Portugal?

(Risos) Não estava o tempo todo, mas aflorei isso porque percebi que o nosso país era dos poucos que são relativamente acolhedores. Pelo discurso, é totalmente acolhedor e não há uma grande resistência das pessoas a essa ideia, apesar do discurso populista do “a eles dão tudo e a nós nada”, provavelmente porque não somos ameaçados com uma vaga de refugiados – não sei o que aconteceria se estivéssemos sujeitos a isso como outros países. O nosso clima é acolhedor e da parte das autoridades também há um discurso acolhedor; depois, pôr isso em prática é bastante mais difícil. De todo o programa de acolhimento e recolocação de refugiados, que é anterior ao acordo com a Turquia de março de 2016, nenhuma das quotas foi cumprida, nem em Portugal nem em lado nenhum.

E por isso tentava convencê-los a vir para Portugal?

Primeiro, tentava resolver os problemas deles, mas pouca gente conhecia Portugal. Não tínhamos ganho a Eurovisão, apenas o Europeu de futebol. Toda a gente conhecia Cristiano Ronaldo mas, como digo no livro, ele é uma espécie de fenómeno extranacional que ninguém associava a nós. Não é por se falar dele que as pessoas acham que o país é extraordinário, porque o Ronaldo é único. Agora talvez conheçam mais Portugal por causa da subida do turismo.

Uma coisa que aflora no romance é a questão do Acordo de Dublin, que estabelece que os refugiados tenham de ficar no país onde acedem à UE. Se a Europa estivesse interessada em resolver o problema dos refugiados, essa legislação era a primeira a ir. 

A questão é o que é a Europa aqui: como todos sabemos, não estou a dizer nada de extraordinário, uma coisa é a UE como instituição, outra são os poderes de facto. A própria Angela Merkel, que na altura se mostrou muito recetiva a acolher refugiados, teve de recuar para poder ganhar as eleições e, mesmo assim, teve dificuldades. A questão dos refugiados – não é para puxar para título – está a ser usada como isco para acicatar os sentimentos racistas das pessoas. 

… é não serem louros.

Exatamente. As forças que estão a acirrar estes sentimentos básicos das pessoas contra o que é diferente, as diferenças culturais e religiosas, terão esse tipo de reação a todas as outras diferenças. Têm o mesmo tipo de ideologia de base dos que não acolheram os refugiados, que também não eram tão louros, judeus na ii Guerra Mundial.

Um personagem do seu livro, que é o tradutor, tem a ânsia de compreender os outros. Uma base da discriminação dos refugiados é o facto de serem muçulmanos. Sendo mulher e feminista, como compreende essa cultura? Ela é de facto discriminatória para as mulheres?

É uma leitura simplificada com alguma base. Em todo o caso, não é a minha experiência lá que me pode levar a falar da cultura muçulmana. 

Embora algumas personagens femininas sejam muçulmanas : a mulher a quem morreram os filhos e as duas raparigas mais novas cobertas pelo hijabe (lenço).

Eu, como feminista, repugna-me qualquer traço cultural, aqui ou lá fora, que discrimine a mulher ou que a force a fazer alguma coisa que não quer. Mas assim como acho que ninguém deve ser forçado a usar o hijabe, também acho que ninguém deve ser proibido de o usar. Estou com as mulheres iranianas muito corajosas que fazem do cabelo descoberto uma luta. E estou contra aqueles que na Europa querem proibir que as mulheres possam ir de burquíni para a água. Basta de aborrecerem as mulheres pelo que decidem vestir. 

Como podemos perceber se é decisão delas? Como se pode avaliar o que é imposto por uma cultura e o que é decisão das próprias? Fazendo de advogado do diabo, podia-se arranjar mulheres que se declarassem favoráveis à excisão feminina.

Há coisas que são crime e que devem ser criminalizadas. A excisão, como qualquer ofensa à integridade física, e ainda mais essa, que é feita por discriminação e mutila a mulher, é uma ofensa agravada no nosso direito. Por mais diferente que seja a cultura que tenham, têm de respeitar as normas do país que os acolhe. Sobre isso, não tenho qualquer dúvida. As questões culturais não nos podem permitir aceitar crimes. Já o uso de uma peça de roupa qualquer, como o hijabe, é completamente diferente. 

Aliás, o lenço no cabelo não é algo de exclusivamente islâmico. No cristianismo também existe, como sinal de humildade. É, por exemplo, usado pelas freiras. 

Sim, é verdade. Na nossa própria cultura era, até há poucos anos, frequente as mulheres usarem lenço. As mulheres muçulmanas podem estar num ponto mais recuado da História. Nem todas, porque a Síria era uma sociedade laica e só mais recentemente é que o uso do hijabe se tornou mais frequente. No Irão também não era obrigatório o uso do lenço antes da revolução islâmica. Há algum tempo, em Portugal, as mulheres usavam no luto um lenço e iam à missa com um véu. No meu tempo, isso era obrigatório, mas mesmo depois de não o ser ainda permaneceu o costume de o fazer por muito tempo. Em zonas mais rurais, isso ainda pode ser observado. Se virmos as horríveis imagens dos refugiados judeus na ii Guerra Mundial, tanto homens como mulheres usavam coisas na cabeça. Não quer dizer que se houver uma discriminação com base nessas práticas culturais, isso não seja condenável. E o que se pode fazer? Como de alguma forma abordo no meu livro, é preciso falar e compreender para perceber aquilo que é cultural e aquilo que, sendo-o, expressa uma discriminação que é preciso combater. Se não for crime e não for uma imposição, não deve ser reprimido. 

O Ocidente tem uma posição muito hipócrita em relação àqueles países. Grande parte daqueles regimes, corruptos mas laicos, foram destruídos com o apoio do Ocidente. Depois de se tornarem Estados falidos devido às guerras levadas a cabo pelo Ocidente, não queremos receber os refugiados criados por essas guerras. No seu livro há um diálogo entre um realizador iraniano que faz um filme sobre os refugiados e que explica, enquanto corrige as falas do jovem refugiado apaixonado, que as pessoas não veem nem querem ver.

É preciso arranjar a melhor forma de chamar a atenção. Penso que as pessoas podem ficar despertas para este problema, até porque ele não tem fronteiras e ultrapassa literalmente todas as barreiras. Se se confinasse ali, já era difícil. A mim parece-me que está a ser usado como um pretexto para uma perigosa mudança política. Não sei como começou a guerra na Síria, até porque ali se digladiam todas as potências e só o povo parece ser a vítima. Temos a ação belicosa de Trump, mas temos muitos outros intervenientes na Síria, potências regionais como a Turquia e outras que estão presentes naquela guerra. 

Para além da guerra mais recente há outras situações que estão longe de se resolver, como a dos curdos.

Os curdos são uns desgraçados naquela região, não é por acaso que escolho dar passagem pela zona curda a um dos personagens, Omid, o iraniano, que tem como primeiro refúgio uma região curda. Eles tiveram um papel decisivo na derrota do Daesh e agora, porque ameaçam a territorialidade do Erdogan, estão a ser massacrados. São territórios em que as populações estão totalmente à mercê de Estados violentos. Longe vai o tempo, como na Antiga Grécia, em que as guerras implicavam toda a gente. Agora é tudo mais clean, o Ocidente e a Rússia bombardeiam à distância e quem sofre são as populações locais destes territórios. É limpinho para as potências interventoras, é totalmente sujo e dramático para as populações das regiões sob bombardeamento.

Parece-me que no seu livro isso é de alguma forma dado nas linhas: essa situação não é legitimada pelas nossas opiniões públicas devido a considerarmos que essas pessoas não têm a nossa dignidade humana?

Completamente. Está-se a fazer com que as pessoas comuns no Ocidente estejam a ficar indiferentes ao que lá se passa. Deixou de estar na ordem do dia. As nossas indignações e sobressaltos humanitários duram cada vez menos tempo: acho que ninguém se recorda já daquela criança de nome Aylan cujo corpo apareceu numa praia da Turquia. Chocou–nos porque era um menino muito parecido com o europeu. Há, aliás, uma passagem do livro em que eu evoco isso quando falo do filho do diretor do campo, que em protesto com o pai se deita na cama de barriga para baixo com os seus ténis e calções, fazendo sem querer lembrar a imagem da criança afogada. 

Existem pessoas como aquele polícia que decide que o iraniano não entra para o castigar do seu ativismo?

Não sei se existem. Isto é uma ficção. Tudo é transfigurado dentro da memória e da imaginação. Todas as personagens começam com uma certa realidade e, a pouco e pouco, vão-se embrenhando em tramas que são cada vez mais ficcionais. O que posso garantir é que aquele diretor do campo que eu visitei, e com quem falei, não tinha o mesmo nome do personagem do meu livro. Tive com ele uma conversa muito interessante e no meu trabalho de voluntária apercebi-me de muitas coisas que se passavam, algumas que eu não vi, mas que eram possíveis naquela dinâmica. É também esse o trabalho da ficção: partir da realidade para o romance. Não tenho a certeza absoluta de que existam todas as personagens que escrevo, mas as forças que estão presentes no romance traduzem aquela dinâmica que eu encontrei no terreno.

As estruturas e os campos são feitas para acolher refugiados ou são feitas para justificar a sua deportação?

Essa é a pergunta de um milhão de dólares. Tal como o sistema está feito neste momento, ele existe para deportar. O acordo feito pela União Europeia e a Turquia é para que não entrem mais pessoas, melhor dizendo, é até feito para as dissuadir de tentarem entrar. 

É, aliás, um segundo acordo desse género. Os países da UE já tinham feito um acordo com a Líbia, no tempo do Kadhafi, que previa o mesmo tipo de mecanismos, até com os requintes de maldade de expulsar os refugiados para o deserto.

Provavelmente, mas esse não conheço. Eu não sei quase nada da realidade italiana, descrevo apenas a rota do Egeu. A rota mediterrânica tem ainda mais mortos, porque tentam passar mais pessoas, as embarcações são maiores e o mar mais largo. Sabe-se que morre muita gente, mas não se sabe o que é feito aos que chegam. Se alguém sabe, que o diga. Na Grécia acontece que, apesar de tudo, fornecem-lhes o mínimo de condições. Apesar de indignas, permitem ainda sobreviver.

Tal como à personagem portuguesa do livro, o Tsipras parece-lhe mais gordo e uma espécie de desilusão perante a sua prática na realidade?

(Risos) Não quero nem sei ir muito por esse caminho porque, aliás como descrevo no livro, aquela língua é impenetrável e eu sentia-me bastante isolada na captação de conhecimento do que lá se passava, salvo com as pessoas que falavam o inglês corrente, os franceses, espanhóis e italianos que o usavam entre si…

Isso é que eu achei uma liberdade de romancista, colocar espanhóis a falar inglês.

(Risos) Não, toda a gente falava inglês e queria falar inglês. Eu compreendo bem espanhol, italiano e francês, mas toda a gente queria falar inglês. São microcosmos que se formam em que se estabelecem laços com pessoas, uns maiores e outros menores, uns melhores e outros menos bons. O facto de haver este esperanto moderno que se tornou o inglês permitia esses contactos. Todas as reuniões decorriam nessa língua franca que passou a ser o inglês, independentemente da nacionalidade dos intervenientes. 

Não querendo fazer um spoiler, o final semifeliz do livro é passível de ser obtido na realidade?

É evidente que esta história é completamente imaginada e é o fio condutor do livro. O que não quer dizer que, com tantos jovens refugiados, não possa haver histórias de amor. É uma história que, não tendo tido conhecimento dela na realidade, não quer dizer que ela não possa ser possível.

Mas o facto de se concretizar no fim não marca alguma esperança?

Não querendo revelar o romance, é preciso ver que o final é mais aberto que isso, porque não é bem assim. Mas assumo que não é um final desesperado. Embora as circunstâncias atuais sejam desesperantes e pareça difícil que as coisas se componham, não quis deixar de dar uma nota de esperança. É tão importante o que se está a jogar ali. É fundamental lutar pelos direitos humanos. É preciso, perante o triunfo da extrema–direita, contrapor um outro discurso. Como é que as pessoas não percebem que, mesmo nos Estados Unidos, é a questão dos refugiados que – apesar de não serem um país de acolhimento e de não estarem pressionados, e de serem um país de uma multiplicidade de povos em que a história é muito recente – acaba por ser a pedra de toque do que é correto e incorreto? Como é que aceitam que Trump venha agora dizer que quem vale mais são os brancos (esse é o eleitorado dele) e que a primeira coisa que ele faz é cortar simbolicamente a possibilidade de entrada no país de muçulmanos? As pessoas não acham isso estranho?

Não impediu os milionários da Arábia Saudita de entrar.

Mas isso tem que ver com os interesses que continuam a ditar as políticas. Mas essa medida não é estranha, tal como é a ascensão da extrema-direita na Alemanha e noutros países da Europa, como a República Checa, a Polónia, que está terrível, ou a Hungria, onde foi criado o primeiro muro da Europa? Este crescimento de um sentimento na Europa contra os refugiados não é estranho? As pessoas não acham estranho que, neste momento, eles são tão poucos naquelas ilhas, não põem em causa nem empregos nem nenhum dos direitos dos residentes, e que mesmo assim as pessoas os rejeitem? Não acham estranho que haja forças que joguem com esse sentimento e impulsos e medos básicos, que são básicos, mas não deixam de ser um impulso contra a civilização e um cultura que demorou tantos séculos a ser construída? As pessoas precisam de estranhar e de se baterem contra os sentimentos mais básicos.