Suspeita de burla pagava contas do juiz Rui Rangel

Natércia Pina, arguida em processos de burla ao Estado, era cliente do juiz Rui Rangel, para este a ‘ajudar’ nos processos. Em troca, pagava-lhe despesas através do testa-de-ferro de Rangel, o advogado Santos Martins. Na última campanha para o PSD, Natércia apoiou ativamente Rui Rio.

Documentos bancários, e-mails e registos contabilísticos a que o SOL teve acesso comprovam o esquema que o Ministério Público atribui a Rui Rangel, e ao seu testa-de-ferro, para despistar os pagamentos de despesas pessoais de que o juiz era beneficiário, a troco de decisões judiciais favoráveis a arguidos perseguidos pela Justiça. A documentação em causa, que não consta da investigação do MP, diz respeito a uma funcionária hospitalar, Natércia Pina, já constituída arguida no processo e que, entre maio de 2014 e maio de 2017, suportou despesas pessoais de Rangel e de familiares, que ascenderam a 14 mil euros.
Entre os dados agora obtidos pelo SOL está um cartão bancário cujo funcionamento, semelhante ao do antigo ‘porta-moedas eletrónico’, constitui um meio engenhoso de despistar a origem do dinheiro – visto que não está associado a qualquer conta bancária e apenas o titular tem acesso ao respetivo extrato. Neste caso, o titular era José Santos Martins, o advogado suspeito de ser o testa-de-ferro de Rangel, e o cartão era carregado por Natércia Pina com quantias que o advogado usava para pagar despesas do magistrado ou de pessoas da sua esfera familiar.
 
Natércia Pina foi apoiante de Rui Rio

Foi no seguimento de uma outra investigação – a Operação Pratos Limpos, iniciada em 2015 e que tinha com principais alvos Natércia Pina e o marido, Manuel Cleto, empresário de restauração – que os inspetores da Unidade Nacional Contra a Corrupção da PJ chegaram a Rui Rangel e a Santos Martins. 
Nesse processo, o casal era suspeito de crimes como corrupção ativa e passiva, burla qualificada e tráfico de influências, na exploração de bares e cafetarias em hospitais de Lisboa, Setúbal, Portimão e Faro. O esquema terá lesado o Estado em dois milhões de euros.

De origens modestas, e com o ordenado de funcionária pública, Natércia chegou a viver num bairro social na Ajuda. Mas só em seu nome tem hoje 16 imóveis, avaliados com um valor tributário superior a um milhão e meio de euros. Foi dirigente do PSD de Oeiras e candidata a deputada nas últimas legislativas, em 2015. Nas recentes eleições para a liderança do PSD foi apoiante de Rui Rio.

Nos concursos, acediam às propostas dos concorrentes

Na Operação Pratos Limpos descobriu-se que teria acesso, através de dois elementos do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Lisboa Ocidental (hospitais S. Francisco Xavier, Egas Moniz e Santa Cruz), às propostas apresentadas nos concursos por empresas concorrentes – informação que depois passaria ao marido, de quem era sócia. Deste modo, o casal conseguia ganhar as concessões para a exploração de diversas cafetarias, bem como o fornecimento de refeições aos referidos hospitais públicos.

Mas a dupla não ficava por aí: para aumentar as receitas, não pagava aos fornecedores. E, para os ludibriar, ia deslocando os bens das empresas para novas sociedades, pedindo a insolvência das primeiras. De seguida, reformulava os contratos já com as novas empresas. Os casos sucediam-se na barra dos tribunais sem que os juízes dessem pela marosca. Mas nessa altura o registo criminal de Manuel Cleto já não estava limpo: o empresário fora condenado a três anos de prisão, com pena suspensa, por burla qualificada.

Natércia tinha mais cautelas, pois alimentava ambições políticas (sempre fora próxima de Isaltino Morais, por exemplo, e um dos contratos suspeitos na Operação Pratos Limpos relaciona-se precisamente com serviços de catering que a Câmara de Oeiras adjudicou, em 2012, a empresas de Manuel Cleto). 

Amigo de Rui Rangel pedia dinheiro em notas

Estando já ela e o marido implicados em quatro processos judiciais por burla e abuso de confiança, Natércia Pina decidiu requisitar os serviços de Santos Martins, o seu homem de confiança para casos mais espinhosos. Vários ex-funcionários do casal ouvidos pelo SOL – e que já prestaram depoimento neste processo – conheciam há muito o advogado. «Era frequente ele ligar para o escritório a pedir dinheiro em notas, e às vezes ia lá pessoalmente», recorda um deles. «O problema era depois justificar essas saídas de dinheiro na contabilidade. Bem que pedíamos recibos e faturas ao senhor Manuel Cleto, mas nunca apareciam», recorda outro funcionário.

As relações de amizade entre Natércia Pina e o advogado datam de 2014, pelo menos, e terá sido através deste que conheceu Rui Rangel e que passou a fazer parte da rede de ‘clientes’ que o MP atribui ao juiz. 

Para não levantarem suspeitas, pouco falavam ao telemóvel e recorriam a códigos. A 26 de novembro de 2015, num email a que o SOL teve acesso, Santos Martins escreve: «Cara amiga. Mais uma vez me vejo na necessidade  de lhe pedir um grande favor. Tenho que pagar hoje uma dívida que se vem arrastando desde setembro, ao lar onde está a minha mãe, pois foi o máximo de prazo que me deram e queria evitar que a minha mãe tivesse conhecimento desta situação irregular. São 450 euros. Veja se e como pode ajudar». De seguida, o causídico enviou a Natércia as referências do cartão multibanco carregável: «O que conseguir mande, através do MB, no cartão com as referências: Entidade 21312, Ref.999752529. Muito obrigado. Bj».

Tudo indica que este cartão era só usado para situações de emergência. Geralmente era Natércia e Manuel Cleto ou o seu motorista que entregavam o capital em mãos. Só em situações limite recorriam a transferências. Este email também mostra que o advogado seria igualmente beneficiário do esquema (suspeita, aliás, partilhada pelo MP). 

Santos Martins usava conta do filho

Para camuflar a tática e fazer o branqueamento do capital, Santos Martins usava, segundo a investigação, as contas de dois familiares: a do próprio filho, Bernardo Santos Martins, e a de um afilhado ligado a negócios imobiliários, Nuno Miguel Proença Costa Ferreira. Em relação ao primeiro, foi Rita Figueira, atual companheira de Rangel, quem revelou o seu papel, numa conversa com o pai: «Todo o dinheiro do Rui está nas contas do filho de Santos Martins».

Quanto ao afilhado, o SOL teve acesso a dados esclarecedores. A 11 de julho de 2015, uma das empresas de Natércia e Manuel Cleto, com conta no Montepio, passou um cheque no valor de 2.130 euros a Nuno Miguel. E, a 14 de julho, Santos Martins, impaciente, enviou a Natércia um SMS: «Tenho o Bernardo no Banco para levantar e fazer pagamentos mas a transferência ainda não chegou. Diga-me por favor o que se passa».

O dinheiro continuou a pingar nos anos seguintes, e até telemóveis e a conta da luz do escritório na avenida de Berna usado pelo advogado eram pagos pelas empresas de Natércia Pina. A avidez por dinheiro acabaria por levá-los a cometer erros, três anos depois. Em fevereiro de 2017 os investigadores avançam para os negócios do casal e são feitas dezenas de buscas a empresas e aos hospitais com quem tinha contratos de exploração de cafetarias. Natércia e o marido são constituídos arguidos. O assunto parecia demasiado sério – e terão tentado recorrer mais uma vez aos préstimos do juiz Rui Rangel.

Rangel e amigo à beira da asfixia financeira

A 25 de maio de 2017, o magistrado, à beira da asfixia financeira, cometeu um deslize e entupiu o telemóvel de Santos Martins com mensagens que foram intercetadas pelos investigadores. O advogado tentou apaziguá-lo, dizendo que Natércia ou já pagara ou iria pagar, e que tinha «andado a juntar das receitas dos restaurantes». «Ainda é um valor considerável, 1300 euros!», adianta. Entre as exigências do juiz, encontram-se despesas como a conta de telemóveis.
Depois do almoço desse dia, às 15h09, Santos Martins envia um e-mail para uma funcionária de uma das empresas de Natércia Pina: «Lurdes, boa tarde. Peço o favor de confirmar os pagamentos à NOS que pedi à Dra. Natércia para serem feitos e de me enviar os respetivos comprovativos de pagamento». Na documentação a que o SOL teve acesso encontram-se os comprovativos de pagamento por multibanco: um no valor de 258,11 euros e o outro de 204,75 euros.

Muitas vezes Santos Martins aparecia nas empresas para levar da caixa pequenas quantias. Noutras ocasiões, dirigia-se mesmo às cafetarias dos hospitais, onde os empregados registavam na folha de caixa o dinheiro que levava consigo – o que indicia que tanto ele como Rangel estariam a atravessar uma fase de aflição financeira galopante, pois arriscavam-se desta forma apenas por ‘trocos’. 

Mas a relação entre Santos Martins e Rangel também era demonstrativa da história do logro humano. Por exemplo, em agosto desse ano de 2017, Natércia carrega o cartão de multibanco do advogado com 150 euros. Na hora, este liga ao juiz para dar conta do pagamento da empresária, mas aldraba as contas: «Ela já enviou 130 euros».