‘Aquilo que acabou não foi o império português. Foi o império euromundista’

Adriano Moreira reapareceu no último congresso do CDS e agora dá uma entrevista onde faz um balanço da vida. Onde o pai está sempre presente.

Aos 95 anos, continua a trabalhar todos os dias no seu gabinete da Academia das Ciências, onde decorreu esta entrevista, numa mesa cheia de papéis e livros. A janela dá para o liceu Passos Manuel, onde fez o ensino secundário. A família, garante, adora que continue a trabalhar. «É claro que a resistência física não é a mesma. Tive uma gravíssima infeção, apanhada numa academia aí qualquer com o ar condicionado, que é um perigo de vida, que me deixou de cama um mês e meio. O médico disse-me que tive muita sorte». Os pulmões não foram afetados, mas a recuperação da agilidade física tem sido lenta. «Graças a Deus, com a idade que tenho, não digo assim muitos disparates».

Homem de família, casou tarde, quase aos 46 anos, sobretudo por causa da forte ligação aos pais. «Eu separar-me da minha mãe e do meu pai fazia-me muita impressão. Achava que tinha de tratar de melhorar o seu conforto. Tinham feito tanto sacrifício. Eles foram sempre muito devotados. Olhe, tenho sempre o retrato do meu pai comigo [mostra a foto do pai na carteira]». Tentou manter o mesmo tipo de relação que tinha com o pai com os seus seis filhos. Sinal disso foi a mensagem pública de uma das filhas, a deputada Isabel Moreira, afirmando recentemente que o pai «era o homem da sua vida». Adriano Moreira emociona-se com a expressão: «Eu sei isso, ela fala muito francamente comigo, com diferença de opiniões, como é natural, mas o vínculo familiar é intocável».

Nascido em Grijó, no concelho de Macedo de Cavaleiros, continua a sentir-se transmontano apesar de ter passado a maior parte da sua vida em Lisboa. «A minha biblioteca vai toda para Bragança, já lá está metade», garante. E conta aquilo que lhe dizia o avô materno, o único que conheceu: «Vocês têm de emigrar destas terras, quando estiveram no meio de muita gente, nunca digam que são transmontanos. Porque os outros podem não ser e ficam envergonhados».

No último congresso do CDS foi homenageado. O que sentiu?

Naturalmente, qualquer pessoa com alguma sensibilidade e até humildade não pode deixar de se sentir tocado por, passadas dezenas de anos fora da atividade política, ser lembrado. E a intervenção naturalmente até me comoveu. Em todo o caso permitiu-me chamar a atenção para o seguinte: lembrar a tradição da democracia cristã no pensamento da unidade europeia, que no seu início teve a democracia cristã como dominante. Aquilo que me pareceu que podia ser de alguma contribuição foi lembrar o trajeto da democracia cristã na Europa e as raízes que teve em Portugal. E aquilo que quis corresponder na convocação que me fizeram foi lembrar que a matriz se mantém. É como o eixo da roda, as rodas andam, o eixo não anda e acompanha as rodas. É preciso atender à realidade e alterar as intervenções de acordo com as circunstâncias, mas manter a matriz. Isto foi o que eu disse. Claro que me lembrei também do passado dos que em Portugal acompanharam estes movimentos na altura da formação da União Europeia, mas terminei com um exemplo de uma história que o Papa Francisco conta. Era ele arcebispo de Buenos Aires e apareceu-lhe num sábado uma senhora com um menino pequenino ao colo, dizendo: ‘Senhor bispo, este meu filho está a morrer de fome, ajude-me’. E ele respondeu-lhe: ‘Olha, minha filha hoje é sábado, vem cá na segunda-feira que eu tenho-te isso resolvido’. E ela respondeu: ‘Mas o meu filho não tem fome de segunda-feira, tem fome de sábado’. É preciso tomar este exemplo em relação aos desafios. Não apenas para a Europa para o mundo, a orientação ser a de sábado, não a de segunda-feira. E acabou aí o meu discurso.

Ou seja, os problemas de hoje é precisos resolvê-los hoje…

E não esperar por segunda-feira. Mas a matriz não há que alterá-la, é o exemplo que o Papa está a dar. Eu não levava texto nenhum escrito, fui-me lembrando. E este exemplo que o Papa conta é notável.

Acha que o partido foi mantendo essa matriz ou houve alturas em que isso não aconteceu?

Sobre isso aí, já não dou opiniões. Estou convencido de que na situação atual, até pela lembrança de me convidarem para aquela cerimónia, a matriz está garantida. Agora, a adaptação da intervenção para as circunstâncias atuais exige muito estudo, muita prudência, muita determinação e muita capacidade de ter revezes.

Mas no seu discurso falou no renascimento do partido e da direção. O que queria dizer com isso?

É esta história que acabo de contar. No começo a Europa nasceu da democracia cristã. Foi isso que quis pôr em evidência, esse espírito faz parte da matriz, as circunstâncias hoje são muito diferentes, é preciso adaptar. Não fiz programas, não dei instruções, por isso, também não vou aqui ir mais longe do que fui lá.

Acha que a democracia cristã ainda tem um papel a desempenhar em Portugal? Este sábado?

Tem, neste sentido, e é a última coisa que digo neste ponto,  já notou que há altos responsáveis portugueses que chamam a atenção que é preciso não esquecer que a política está subordinada à ética e a ética europeia, já Camões deu por isso, é uma trave da identidade da Europa. É, por isso, que Camões dizia que Portugal seria a cabeça da Europa toda. Nunca conseguiu.

Queria só falar da sua experiência como líder do CDS. Foi líder em situações muito mais difíceis para o partido.

Naquele tempo, os recursos do partido eram poucos, mas acho que fazem parte da história do partido e eu não sou historiador. Façam a entrevista no partido para eles falarem sobre isso.

E a sua experiência?

A minha experiência na altura era a Europa, as matrizes, naquele momento, eram mais agitadas. Portanto, não era o eixo da roda que estava em questão, a estrada é que estava com mais obstáculos.

Falando um pouco do seu passado tendo o congresso do CDS como ponte, aí falou que morre com culpa porque a sua geração deixou uma pesada herança às gerações seguintes. Acha que pessoalmente fez tudo o que poderia fazer para que esse legado fosse mais leve?

Isso está num discurso que fiz na Assembleia da República, não é uma coisa de agora. Julgo que a expressão a culpa morreu solteira em Portugal fui eu que a inventei. E nesse discurso, o que eu disse – provavelmente até em parte pelos regimes que a Europa sofreu durante todos aqueles anos – foi que a minha geração tem que assumir que tem pelo menos culpas de omissões porque a probabilidade é que, talvez, tivesse podido andar mais depressa na organização daquilo que são dois pressupostos da carta das Nações Unidas: o mundo único, significa em paz, a terra, casa comum dos homens. Ambos os princípios são violados. Há guerra, como dizem os analistas militares, em toda a parte. Há dúvidas sobre se a Guerra Fria acabou e a autoridade dessas instituições que foram organizadas com tanta esperança está afetada. Poderíamos ou não ter posto alicerces mais fortes nessas organizações? Poderíamos ou não ter definido melhor o eixo da roda? Provavelmente sim, temos que assumir se os princípios foram notáveis a execução foi fraca. E quem era responsável? A geração a que eu pertenci e, por isso, temos que assumir que a culpa não morre solteira.

E isso também tem a ver com a história portuguesa?

Tem a ver com a história europeia em geral. Há aqui um problema curioso da evolução geral, é que os textos fundamentais onde isto foi estabelecido – o fim da guerra, a democracia cristã, paz sem vencedores, as Nações Unidas, Declaração Universal dos Direitos do Homem – foram todos escritos por mãos ocidentais. Recordo-me, eu fui delegado às Nações Unidas, que a primeira vez que vi um sikh levantar-se para usar da palavra, ele tinha uma concepção do mundo e da vida, mas o que estava a dominá-lo era um texto escrito por ocidentais. Aí começou a ser evidente para mim, e tenho escrito várias coisas sobre isso, que havia problemas novos porque as áreas culturais que até aí estavam impedidas de falar ao mundo, estavam em liberdade para falar ao mundo. Havia um plano para que isso pudesse ser harmonizado. Foi insuficiente, como se viu daí por diante. É isso que quero dizer quando digo: se criámos as instituições, se tínhamos princípios e o resultado foi este, alguma coisa falhou. É preciso assumir a responsabilidade pela falha. Por isso assumo que a minha geração provavelmente podia ter feito mais do que fez.

Apesar da sua ação governativa ter sido curta acha que fez alguma coisa para melhorar o estado…

Eu julgo que foi importante, difícil e num ambiente que não foi muito simpático sempre. Por exemplo, andam aí muito agitados com o passado da escravatura e transporte de escravos, digo o seguinte: eu não amo o meu país a benefício de inventário, portanto, assumo as coisas do passado de que não gosto. Não gosto que tenham expulsado os judeus, não gosto dos excessos da Inquisição, não gosto da escravatura, mas há uma coisa que eu gosto que é de ser português. Nós tivemos escravatura, todos tiveram. Quem acabou com a escravatura aqui foi o Marquês de Pombal. Quem acabou com a escravatura nas colónias foi o Sá da Bandeira, mas ficou alguma coisa, o indigenato. No indigenato não eram cidadãos, não estavam protegidos pela lei, até se podia duvidar se se deviam considerar portugueses. Revoguei o estatuto dos indígenas, com isso revoguei o trabalho forçado, publiquei um Código do Trabalho que o Bureau International du Travail [órgão permanente da OIT] concluiu que era o código mais avançado de África. Criei vários liceus, instituí o ensino superior em Angola e Moçambique. Isto foi em dois anos e pouco [1961-63]. Nessa altura, o presidente do Conselho disse-me, numa conversa no forte que agora está naquele estado [o forte de Santo António da Barra], ‘eu tenho cumprido a promessa de que o senhor faria as reformas todas, mas a reação está a ser de tal ordem que eu próprio não tenho a certeza de poder continuar a ser presidente do Governo, temos de mudar de política’ e eu respondi-lhe ‘acaba de mudar de ministro’.

Acha que se não tivesse rebentado a guerra em Angola as coisas teriam sido diferentes?

Ainda no outro dia estive num colóquio com estudantes – quando são estudantes, vou sempre à vontade, com os jornalistas já tenho mais cuidado [risos] – sabe a que propósito é que me puseram essa questão? Lembra-se do Presidente da Colômbia? [Juan Manuel Santos] Ganhou o prémio Nobel. Acabou com a guerra. Ele teve um princípio simples: era necessário acabar com a guerra armada e o terrorismo. Para isso, fez justiça social. E conseguiu. Eu também pensava isso. A revolta já tinha aparecido em muitos países, em muitas colónias. O único remédio era fazer justiça social. Talvez já tenha lido ou reparado que as forças armadas declararam isso quando foram para o Ultramar: ‘Estas guerras não se ganham, ganha-se tempo para a reforma’. Quem disse isto, por exemplo, foi o general Câmara Pina, chefe do Estado-Maior. Eu fiz o que me deixaram. E devo dizer-lhe que acho que ia por um bom caminho.  

Acha que podia ter mudado o curso da história?

Depois da independência de Cabo Verde, fui lá para falar sobre o dia de Camões. E quando fundaram a Universidade de São Vicente, eu fui o primeiro doutor honoris causa. Já fui convidado para ir a Angola, a várias coisas. Agora já não vou porque o médico não me deixa andar de avião [risos]. Recebi há pouco tempo um convite do Presidente de Timor para ir lá. Devem ser 20 horas de avião e o meu médico não deixa. Veio cá a Portugal o segundo Presidente de Timor, que foi o Ramos-Horta, para me trazer uma declaração de Timor. Quero dizer, aquela foi uma época difícil. Andei pelos sítios todos. Não havia segurança naquele tempo. As coisas que eu fiz, acho que foram importantes. Da última vez que fui a Angola, fizeram-me um jantar e apareceu lá um general angolano e disse-me: ‘O senhor ontem não foi’, porque tinha havido uma visita. Disse-lhe: ‘Não fui porque ia um avião pequeno‘. ‘Mas é que eu não soube’, respondeu o general. ‘Então porquê?’, perguntei eu. ‘É que eu formei-me no Liceu Adriano Moreira e queria que o senhor visse o liceu em que eu me formei’, respondeu o general. Eu pus em liberdade o Agostinho Neto. A ele nunca o vi, mas conhecia a rapariga com quem casou. Ela estava grávida e, enfim, resolvi-lhe o problema. Fui grande amigo do Eduardo Mondlane. Ele chegou a aceitar vir para professor aqui do Instituto de Medicina Tropical. Era casado com uma americana e vieram os dois. Ele teve de ir à Suíça e ela pediu-me para ir conhecer a família dele. E quando voltou disse-me: ‘A gente acredita em si, mas o senhor não vai conseguir. E o Eduardo não vem para cá que eu não deixo’, disse ela. Ele era um humanista, doutor em Antropologia. Foi chefe do partido, mas não creio que se sentisse muito à vontade com a violência. Mataram-no! 

Ao mesmo tempo que fez essas reformas, é verdade que também criou o Campo de Chão Bom (no Tarrafal) e o Campo de Missombo (em Angola)? 

Não criei coisa nenhuma. Eu acho piada a essa coisa e acho que vocês jornalistas têm culpa – também não morre solteira. Eu tenho aqui um papel. [Mostra uma fotocópia de um artigo de jornal assinado por Edmundo Pedro em que este afirma que Adriano Moreira não tem nada a ver com a reabertura do Tarrafal].

Edmundo Pedro, sim. E o de Missombo? Também não?

Não, isso foi uma coisa militar. Havia duas autoridades, o governador e o comandante militar, que coincidiam na mesma pessoa. Era uma antiga tradição que o governador fosse o comandante militar. Até acontecia que o ministro do Ultramar, que já não mandava em tropa nenhuma, tinha um oficial às ordens. [Risos] Essa história está muito mal contada, porque o que aconteceu foi que o Sarmento Rodrigues, ministro do Ultramar – eu era professor –, um dia chamou-me e disse-me: ‘Eu quero formar o sistema penal do Ultramar. O senhor quer fazer o projeto?’. Foi a primeira vez que fui ao Ultramar. Estive uns meses em África e fui às províncias todas e fiz um livro sobre O Problema Prisional do Ultramar. Ganhou o prémio desta academia [Academia das Ciências, onde decorreu a entrevista], que naquele tempo não era pequeno. Prémio esse que eu dei à minha mãe, para construir a capela da aldeia que era uma coisa que ela queria fazer. 

Oitenta contos?

Oitenta. E com esse dinheiro ela reconstruiu a capela. Ainda há uns meses me pediram para lá ir, porque fazia anos. Eu fui e estava lá a aldeia toda. Naquele tempo, não era brincadeira ganhar o prémio da Academia das Ciências e eu era muito novo ainda. O Sarmento disse-me ‘transforma-me isso numa lei’. E a síntese desse livro era, entre outras coisas, que não se deve mandar europeus cumprir penas no Ultramar. Primeiro porque vão para um ambiente que não é o deles. O sistema prisional deve procurar recuperar a sociabilidade. Deve-se fazer ao contrário. Os europeus que violem a cultura local é cá que vêm cumprir a pena. Para eles, a única coisa aconselhável eram as prisões que eram agrícolas, como há em Sintra. Isto é o que serve para gente com esta cultura e é até possível que algumas vezes sejam acompanhados pela família. Ele fez tudo no decreto que se chama ‘Reforma Penal Sarmento Rodrigues’. Passado pouco tempo de sair de ministro – ficou a reforma – sucedeu-lhe o dr. Raúl Ventura, que extinguiu o Tarrafal.

O Tarrafal sim, mas o Chão Bom continuou…

Mas isso é com a tropa. A tropa tinha um problema, o sistema prisional lá era diminuto. Agora é espantoso que haja um senhor [o jornalista António Valdemar], com graves responsabilidades políticas, que tenha levado o descaramento ao ponto de dizer que eu tinha aberto o Tarrafal. E sabe uma coisa curiosa? Eu não tinha nenhuma intimidade com ele [Edmundo Pedro]. Mas veja como ele reagiu [aponta o artigo]. Tem dúvidas? Não tem, pois não? Sabe quantos anos ele tinha quando escreveu este artigo? 

Não sei. De que ano é o artigo, 2016?

Tinha 90 e muitos, mas indignou-se e porquê? Porque ele sabia que tinha sido a minha reforma – minha não, do Sarmento Rodrigues – posta em execução por Raul Ventura, que foi quem lhe sucedeu, que fechou o Tarrafal. Devo dizer que vi o Tarrafal já depois da independência de Cabo Verde. Fui lá uma vez, porque qualquer pessoa que lá vai tem interesse em ver isso. Terrível! Devia ser muito doloroso. Eu tinha muito respeito por este homem [Edmundo Pedro]. Porquê? Este homem foi para lá com o pai, quando tinha cerca de 12 anos. Tinha uma formação superior, porque os prisioneiros todos tinham uma formação superior e ensinaram-lhe. É uma coisa fantástica! E ele não tinha raiva a ninguém. Era de uma humanidade… E foi numa fúria dele que escreveu isto. Mas não me disse nada. Eu vi isto no jornal. Aquilo que eu fiz de reformas em Angola, acho que pouca gente seria capaz de fazer. E eu só podia fazer porque não estava dependente de nada. 

Fê-lo por espírito de missão? Tendo em atenção que não era político.

Eu nunca tinha feito política em parte nenhuma. Gosto do meu país, não é benefício de inventário. Às coisas más eu digo ‘paciência’, porque eu gosto do meu país. A pessoa, quando se trata do interesse do país, está acima das divergências. Apesar de tudo, há uma coisa que não devemos pôr em evidência. Aquilo que acabou não foi o império português. Foi o império euromundista. Porque era Holanda, era a Bélgica, era a França, era a Inglaterra, éramos nós. Não há nenhum que não tenha tido guerras terríveis. A França teve piores que nós. A Inglaterra, na Índia, sabe o desastre que foi? Se lembrarmos um pouco a História de Portugal, reparamos que foi sempre um sítio de grande emigração, porque a terra era pouca, com poucos recursos e as pessoas emigravam muito. Não era só o sofrimento dos nativos, eram também as consequências que estavam a acontecer com os retornados. Depois houve grandes efeitos de desenvolvimento do país.

Franco Nogueira escreveu, para explicar porque Salazar o tinha escolhido para ministro do Ultramar, que o professor era ‘um homem novo, ideologicamente oriundo da esquerda moderada, de alta inteligência, de cultura política acima do comum e que granjeara uma fama como estudioso das questões ultramarinas’. Revê-se nesta definição?

Acho sempre generoso. O Franco Nogueira foi uma pessoa dominante no Governo durante anos e anos e tinha uma alta consideração profissional como deputado. A primeira vez que o encontrei foi nas Nações Unidas. O chefe da primeira delegação às Nações Unidas foi o professor Paulo Cunha e os professores fazem sempre esta manobra, vão saber dos melhores estudantes. Como o grande problema era a descolonização e eu escrevia livros sobre o assunto, veio ter comigo. E como assessor diplomático, dele e do embaixador, foi ter com o Franco Nogueira. A gente conheceu-se lá. Há um relatório para o Ministério em que ele escreve coisas enormes sobre mim e eu nunca publiquei isso. O Franco Nogueira também tinha essa fama de esquerda moderada.

Era da esquerda moderada?

Quando o senhor tem um regime qualquer e é partidário de reformas, passa logo a ser de esquerda. Eu acho que o nosso senhor Jesus Cristo era de esquerda. Tenho um amigo estudante que me disse, ‘andam sempre a dizer que o CDS é de direita e eu gosto é do CDS’ e eu respondi-lhe, por graça, ‘diz-lhes que és da extrema-esquerda do Papa Francisco’.

Era um reformista, portanto?

Ensinava isso nas aulas. Tive sempre o método na escola de que o professor deve expor a doutrina como se acreditasse nela. Mesmo, por exemplo, um sujeito que é antimarxista, quando ensina marxismo, deve ensinar com total exatidão. Para que, depois, os estudantes livremente escolham. Sempre tive essa atitude, depois, no fim, dizia as minhas preferências, como é evidente.

Almeida Santos escreveu que era ‘inovador o bastante para pouco depois ser corrido’. Tinha noção que estava a prazo quando assumiu o cargo?

Tinha a noção de que reações tinha das aguentar até onde pudesse. Não fui inconsciente. Era difícil um professor que estudava essas matérias ser surpreendido com as reações. Há uma história com graça do Almeida Santos, ele morreu sem saber isto que lhe vou dizer. Ele deixou um livro pronto [Gritante Justiça] e deixou um recado para que me pedissem para escrever um prefácio. Nesse prefácio pensei que primeiro tinha de contar uma história. Eu era ministro e fui a Moçambique, o governador era um grande amigo meu, o Sarmento Rodrigues, que me disse: ‘Estou aqui com um aborrecimento porque o meu comandante militar fez um processo contra o advogado Almeida Santos, dizendo que ele está comprometido com o movimento de entregar o sul do Save à África do Sul’. Eu não conhecia o Almeida Santos, mas lia o que ele escrevia, e perguntei: ‘Mas isso tem algum fundamento?’ ‘Nenhum’, respondeu. ‘Então você não ande com isso.’ ‘Mas como é que você pensa que eu posso fazer perder a face ao comandante militar?’ ‘Senhor almirante, é capaz de me trazer o processo?’ Trouxe-me o processo, eu nem o abri, escrevi assim: ‘Arquive-se’. E ‘diga ao general que recorra para o Vaticano’. Achei bem dizer isto no prefácio porque era a seriedade que lhe reconhecia nos artigos que escrevia. Ele não concordava com uma data de injustiças que havia no sistema jurídico, mas isso também eu não [risos].

Entre aqueles que eram seus críticos dentro do regime, citava-se o facto de ter estado preso?

Não, isso não citavam. A Ordem dos Advogados foi notável nisso. Estava em exercício o vice porque o presidente estava doente, no dia seguinte estavam a dar murros na mesa: ‘Que conversa é essa? Lá porque o advogado que apresentou o habeas corpus é contra o ministro vai para a cadeia! Quem mandou arquivar o processo foi o dr. Salazar. Ele apreciou a atitude da Ordem e achou que havia ali uma dignidade em questão.

Isso seria em 1947?

Por aí. Tinha 21 anos e acabado o estágio. Meti-me nisso por ordem do dono do escritório que era o António Ribeiro. Ele achava que era ligeiro, complicou tudo porque envolvia um ministro. Eu avisei o ministro, se este ato que vão praticar implicar a morte do general Godinho, isso é um crime. Eles estavam todos presos porque tinham assinado um documento em que apoiavam o Presidente da República para transformar o Governo. Foi o primeiro habeas corpus interposto em Portugal. E reconheceram que eu tinha razão profissional para fazer isso.

Quanto tempo é que ficou preso?

Um mês e tal. Foi lá que conheci o Mário Soares, fiquei amigo dele até morrer.

Foi no Aljube que o conheceu?

Foi, ele veio ter comigo e disse ‘você tem uma literatura aí muito reacionária’, eu estava a ler A Filosofia da História, do Hegel. E eu respondi-lhe: ‘Estou a fazer recurso para miguelista’. Ele riu-se muito e ficámos amigos até ele morrer. Eu fui muito amigo da mulher, também. Instituí na Academia Internacional da Cultura Portuguesa, vai ser anunciado este mês, um prémio com o nome de Maria Barroso, pelos serviços que ela prestou. Eu era um dos curadores da fundação dela, a Pro Dignitate.

Esse prémio destina-se a quê?

Para quem prestar serviços relevantes na área que foi a da Fundação Pro Dignitate.

E quando vai ser entregue?

Sai neste volume da Academia Internacional da Cultura Portuguesa, de que ela era membro. É a homenagem da academia. O prémio chama-se Pro Dignitate Maria de Jesus Barroso.

Não sendo um homem do regime, o que achava de Salazar?

Ninguém é independente da sua circunstância. E Salazar não conhecia o mundo, não viajava. Ele conhecia o mundo por conversas. Uma das coisas que lhe explicava era que o problema mais grave que vai aparecer é o racismo, vai-se agravar. ‘Sei que o senhor presidente nunca foi às colónias, mas há uma literatura de combate, muito bem escrita’, e indiquei-lhe três livros, ‘se os ler fica a par disso’. E ele disse-me esta coisa: ‘Há para aí 20 anos que não tenho tempo de ler um romance’. Emprestei-lhe os livros, não mos devolveu, espero que os tenha lido. Passado pouco tempo, concordou. Ele conhecia o mundo sobretudo pelas pessoas que recebia, era o meio de informação de que ele tinha confiança. Agora chamo-lhe outono ocidental, até escrevi um livro que se chama assim Memórias do Outono Ocidental. Isso para ele não lhe vinha imediatamente, para ele quem mandava era a Europa, a Europa era a luz do mundo. Tinha uma noção do país como o país agrário que ele conheceu e, apesar de ser altamente inteligente, os desafios tão rápidos do mundo ultrapassaram-lhe as conceções e a estabilidade. Devo salientar que foi um ato excecional, para uma pessoa que teve esta vida, aceitar que as reformas tinham de se fazer. Mas, tal como ele previra, as reformas abalaram-lhe a estrutura. Era um homem simples, de vida modesta, tinha sempre a secretária cheia de livros, lia o que podia. Quem conheceu o Portugal que eu conheci na minha origem – eu sou de uma aldeia paupérrima de Trás-os-Montes, o meu avô paterno, que eu não conheci, era empregado de moinho, como imagina, não era uma vida muito abundante. Tenho uma grande admiração pelo meu pai, ando sempre com o retrato dele. O meu pai e a minha mãe, como é que resolveram que os dois filhos, eu e uma rapariga, tinham de fazer um curso superior? Eu tenho pelo meu pai uma ternura e uma admiração enormes, e pela minha mãe também.

O seu percurso e o de Salazar acabam por ser diferentes. Os dois vêm do interior…

…mas eu cheguei cá muitos anos mais tarde.

Mas abriu-se ao mundo, enquanto ele continuou fechado.

É o homem e as suas circunstâncias, ele continuou dominado pela sua circunstância. Quando eu nasci, a autoridade na minha aldeia era a professora primária, o padre e o senhor regedor. O meu pai contava-me, quando foi fazer o exame da instrução primária, tinha que ir à vila e emprestaram-lhe umas botas de um soldado, cheias de jornais, porque os pezinhos dele eram pequeninos. A vida da aldeia era essa. Ora, o dr. Salazar é desse tempo. O meu tempo já não era esse. E a universidade estava bastante mais livre, havia professores notáveis nessa altura. Mas a geração anterior era do país agrário, analfabeto, emigrante. Hoje a juventude não percebe o que foi essa mudança porque já encontrou as coisas europeízadas, mas a minha geração não encontrou isso. E Salazar tinha uma circunstância ainda mais antiga e tinha o respeito pela estrutura tradicional do país.

Salazar chegou a pensar em si para outros voos?

Não. Mandou-me convidar mais tarde para ministro da Educação e eu disse que não. Não podia estar num Governo que fazia política ultramarina que eu achava errada.

Em que ano foi isso?

Deve ter sido aí por 1964, 65. O Supico Pinto convidou-me para ser embaixador em Roma e eu disse-lhe ‘não sei latim suficiente’ [risos]. Eu só fui para aquela função porque achei que os interesses do país exigiam isso. Em todo o caso, há uma coisa que gosto de sublinhar, de todos os países que pertenciam ao euromundismo político colonial, o único que conseguiu uma união do tipo CPLP foi Portugal. A França não conseguiu e teve um projeto do De Gaulle, que era a Euráfrica. Esse projeto falhou. De Gaulle teve um grande desgosto, a Guiné votou contra e o Diabo a quatro. O general também era teimoso. 

O que pensa hoje do lusotropicalismo?

Tem sido mal interpretado e valeu muitos ataques injustos ao Gilberto Freyre. Quando conheceu o problema português já tinha escrito Casa Grande & Senzala, já era célebre. Teve dois grandes críticos toda a vida, que foi o Fernando Cardoso e Darcy Ribeiro (que era marxista) e o Fernando Henrique Cardoso, quando foi Presidente da República, declarou o ano 2000, ano Gilberto Freyre. Darcy Ribeiro deixou dois ensaios onde diz o seguinte, ‘assim como a Itália seria outra sem Dante, a Espanha sem Cervantes e Portugal sem Camões, o Brasil seria outro sem Gilberto. Há pouco tempo surgiu um livro, que recomendo, A Doutrina da Paz Ibérica, dos juristas portugueses de Coimbra, Évora e Salamanca no século XVI a criticarem a violação dos direitos e dignidades e propriedades dos territórios dessas populações. Mas esse lusotropicalismo tem algum fundamento, está comprovado porque mais nenhum país conseguiu uma coisa como a CPLP. Conservar isto é que é o problema. O que temos? A língua. Mas não temos capacidade financeira. Precisamos é de uma diplomacia muito boa e temos muito bons diplomatas, agora é preciso que sejam ouvidos.

Acha que a CPLP conseguiu a substância que poderia ter?

Por enquanto não, mas ainda pode ter. Agora é preciso não estar descuidado. Se tiver o Governo de Timor e não for lá fazer nada para que precisam de si? Há um grande problema com os ocidentais, temos sistemas de Governo que levaram séculos, grandes sacrifícios, revoluções, etc.. Chegámos à democracia, foi isso que a gente deixou lá? Foi isso que os ingleses lá deixaram? Foi isso que os franceses lá deixaram? Não. O governador, alto-comissário, vice-rei, consoante os gostos, tinha o poder legislativo, executivo e judicial. Portanto, quando eles se apoderaram do poder foi daquele poder que se apoderaram, não do regime democrático que não tinham.

Como vê a relação de Portugal com as suas ex-províncias ultramarinas?

Tem alguns incidentes agora com Angola, mas acho que são boas. Em relação à segurança do Atlântico Sul era preciso ter bastante cuidado. A ideia mais corrente nos estrategas que conheço assenta muito no triângulo Brasil, Portugal (por causa dos arquipélagos) e Angola e nós temos segurança organizada no Atlântico Norte, fragilizada por este Presidente americano, que é sobretudo um contabilista.

Acha que o processo que está a decorrer na justiça em Portugal contra o ex-vice-presidente angolano, Manuel Vicente, poderá prejudicar as relações com Angola?

Depende do feitio deles. É um tema muito delicado. Tem que ver muito com os sistemas jurídicos. Digo-lhe, por exemplo, que tem feito mais pela unidade europeia o Tribunal Europeu, que é discreto, está a estabelecer uma espécie de estrutura jurídica global, que as declarações inflamadas das eleições. E nós temos um instrumento fundamental para a vida internacional que é o Tribunal Penal Internacional, que eu acho que está a precisar de uma revisão, com mais competência.

As exigências da construção europeia levaram a que Portugal esquecesse um pouco da sua herança africana?

Não. Em Portugal acentuou-se muito, com a evolução do mundo e as dificuldades que enfrentámos, a situação de país exógeno, um país que sofre consequências de decisões em que não toma parte. Isso exige hoje, uma atitude diferente da governação. É um país com dificuldades para obter recursos para as obrigações do Estado. A União Europeia é importante, desde que funcione, mas não deve perder as outras ligações. Nem a aliança inglesa, nem a CPLP, nem as Nações Unidas. Isso implica prestar uma atenção muito aturada à diplomacia portuguesa, temos muito bons diplomatas é preciso é dar-lhes meios.

O Brexit trará problemas para Portugal conseguir gerir essa velha aliança com a Inglaterra?

Não, isso até talvez possa aproveitar. Mas há um problema para a Europa, o Brexit implica que a maior esquadra europeia e o maior exército europeu saia. Está a segurança e a defesa autónomas da UE para serem reforçadas. A comissária de Segurança e de Defesa já declarou que precisa de um exército. A segurança europeia tem de existir, não há dúvida, tal como não há dúvida que é preciso ver com muita atenção a política deste Presidente dos Estados Unidos. Ele não olha bem para o atlantismo, olha é se a gente contribui com dinheiro suficiente. Não tenho muita confiança nele.

Escreveu em outubro que a UE está num estado de debilidade…

Este é um ano muito importante porque há eleições em muitos países, alguns deles vieram da Cortina de Ferro. Conhece algum estudo sobre a entrada deles na Europa? Tivemos países com 50 anos de vida democrática, cai o muro e entram países com 50 anos de submissão. Isto não é como deitar água benta. E aí as eleições, até por causa deste turbilhão das migrações, põem problemas muito sérios por causa do populismo. A dificuldade com que se estão a cumprir os deveres humanitários, a receber refugiados em conflito, com a conceção que eles têm de segurança, tudo isso vai estar nessas eleições. E começou na Alemanha, com a senhora Merker a perder autoridade. O Presidente francês teve aquela vitória estrondosa, passado pouco tempo a popularidade começou a descer.

Passou-se de uma euforia de fim de história, de consolidação da democracia como regime, da euforia com a construção europeia nos anos 2000 e hoje estamos perante o pessimismo face aos problemas da democracia e à crise europeia.

Olhando para a Carta das Nações Unidas – e não podemos olhar só para o que lá está escrito, temos de olhar para os pressupostos – há ali dois problemas, a igualdade de dignidade das nações não pode ser ferida pela hierarquia das nações e a carta do Conselho de Segurança esqueceu-se de pôr lá assente que essa hierarquia nunca poderia ferir a dignidade das nações. Esse é o grande conflito que temos neste tempo e daí o problema dos emergentes, dos países que procuram sobretudo equilibrar as suas finanças. Mudar a ordem do mundo leva tempo. Quantos séculos é que levámos para chegar à democracia? Vários. Desde o fim da guerra até hoje quantos anos passaram?

Mas parece que estamos a assistir a um regresso do autoritarismo.

Há uma espécie de conflito entre a realidade jurídica que se estabeleceu e a memória do passado e muitos países estão só a pensar na memória do passado. O exemplo mais clarinho é do senhor Putin quando declara, num discurso público, com a águia bicéfala na parede, os generais todos, ‘a minha fronteira de interesses é muito maior que a minha fronteira geográfica’.

Diz que quem fundou a Europa foram as democracias-cristãs, esta crise na Europa também tem a ver com o facto de as democracias cristãs terem perdido peso?

Isso é uma coisa muito comprida, mas faço-lhe uma síntese muito rápida: o credo dos valores foi ultrapassado pelo credo do mercado.

A ONU, onde esteve no final dos anos 1950 e onde diz que ‘caiu no mundo’ e que lhe deu até uma medalha nos 50 anos… É mesmo o único português a tê-la recebido?

Acho que não. Deram-me porque me interessei por Timor. Fui deputado durante muito tempo e a certa altura fui eleito presidente da comissão de Timor. Andávamos há uma data de anos a discutir com a Indonésia e eu descobri que não estávamos a conduzir bem o processo: ‘Os senhores da Indonésia invadiram um Estado independente’ – nós tínhamos feito a Revolução e dado a independência – ‘isto é com as Nações Unidas, não é connosco’. O Mário Soares chamou-me pela primeira vez ao Conselho de Estado e disse ‘explique-me lá essa coisa que você disse?’ Expliquei-lhe: ‘A Indonésia invadiu um país independente e está a cometer um genocídio’. ‘Pois tem que ir dizer isso às Nações Unidas’ e eu fui. E foi rápido. E essa condecoração diz por baixo: ‘Pelos serviços prestados a Timor, aos direitos humanos e à humanidade’.

Ficou orgulhoso de receber isso?

Olhe, eu tenho um netinho de três anos que está gravemente doente. Apanhou uma infeção dessas que se apanha nos hospitais e temos todos sofrido isso. Tem o meu nome, dei-lha. Ele é que ficou com ela.

A ONU está a passar uma das suas piores fases?

Está, porque até os países que têm direito de veto, que deviam assumir com maior responsabilidade a defesa da igualdade da dignidade das nações, não o fazem. A única pessoa que está ali a chamar a atenção é o secretário-geral e o poder do secretário-geral é o da voz. Ele está a portar-se muito bem. Deus queira que a sua voz vá ganhando autoridade. 

Na aula que deu na Universidade Católica a propósito dos cinco anos de pontificado do Papa Francisco voltou a usar uma frase que lhe parece muito cara ‘o poder da palavra pode vencer a palavra do poder’. Ainda continua a acreditar que a palavra tem poder?

O poder da palavra pode vencer a palavra do poder. Tenho aí um grupo de estudantes que quer que eu fale com eles sobre o Mandela, o Mandela só teve o poder da palavra. Foi metido na cadeia jovem e foi com a voz que ele conseguiu.