Ministério Público não acata decisão de juiz

Em causa está o debate instrutório do processo que envolve as companhias aéreas TAP e Sonair e a petrolífera angolana Sonangol. PGR já foi obrigada a intervir.

Ministério Público não acata decisão de juiz

O caso que envolve ex-administradores da TAP, a transportadora angolana Sonair, responsáveis da Sonangol e um alegado esquema de lavagem de dinheiro parece ter chegado a um impasse. Tudo por causa do braço-de-ferro entre o Ministério Público e o juiz de instrução criminal (JIC) Ivo Rosa, do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), relativo a peças processuais. Ivo Rosa ainda não marcou a audiência porque o MP recusa-se a enviar o processo de averiguações que deu origem ao processo. A Procuradoria-Geral da República (PGR) já foi obrigada a intervir e acabou por dar razão ao JIC.

Na base do problema está um processo de averiguação preventiva que deu origem a este inquérito, no qual está em causa um esquema de branqueamento de capitais envolvendo uma suposta prestação de serviços da TAP à Sonair, uma subsidiária da Sonangol, permitindo à petrolífera angolana colocar dinheiro em Portugal. Os montantes eram pagos pela Sonair à TAP, que tinha depois de pagar uma comissão de 74% à Worldair, uma empresa de consultoria que, segundo o MP, servia de intermediário no branqueamento. Três advogados ligados à Worldair e quatro funcionários da TAP estão acusados dos crimes de corrupção ativa, falsificação de documentos e branqueamento.

Procurador recusa pedido do juiz

O juiz Ivo Rosa exigiu uma cópia integral do processo de averiguações, mas o procurador Carlos Casimiro Nunes recusou-se a cedê-la. O MP alega a «impossibilidade prática de enviar certidão completa dos autos por permitir a identificação dos funcionários das entidades a quem foram prestadas informações e que as transmitiram ao MP», recordando ainda o «princípio da autonomia, com a separação entre as duas magistraturas que tem como corolário a impossibilidade de um juiz dar ordens ao MP». Nesta resposta, enviada ao juiz do TCIC em fevereiro deste ano, o procurador termina num tom de ameaça, dizendo que, caso seja dado acesso a quaisquer dados deste processo que permitam identificar as pessoas que forneceram as informações, «o MP terá, por imposição legal, de instaurar processo penal».

Esta posição do MP não agradou ao JIC nem aos arguidos, que se mostraram insatisfeitos com a insistência do procurador em não ceder os dados solicitados pelo tribunal e, consequentemente, atrasar as diligências agendadas. «A junção daquela documentação se reveste de manifesta importância para o cabal apuramento da verdade», argumenta a defesa de Miguel Coelho, representante da Worldair e o homem que o MP acredita ser o cérebro por detrás do esquema de passagem de dinheiro através da TAP.
 
Divergências entre magistrados

No final do mês passado, como resposta à insistência do MP, o JIC recordou que «as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas (incluindo o MP) e prevalecem sobre quaisquer outras autoridades», acusando o representante do Estado de estar a recorrer a «expedientes meramente dilatórios (…) para não fazer cumprir a decisão judicial» – Ivo Rosa referia-se ao pedido de recusa do juiz, que acabou por ser rejeitado pelo Tribunal da Relação. Por isso, o juiz decidiu fazer o pedido diretamente a Amadeu Guerra, diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP).

A 6 de março, o procurador-geral adjunto deu razão ao MP, alegando que existe uma «proibição absoluta» de revelar todos os elementos que constam neste processo de averiguação preventiva. «Enquanto diretor do DCIAP e como pessoa singular, estou vinculado ao dever de segredo», escreve Amadeu Guerra.

 A resposta não caiu bem ao JIC, que realçou o facto de os tribunais «apenas deverem obediência à Constituição e à Lei, sendo que as decisões judiciais são obrigatórias e prevalecem sobre quaisquer outras autoridades, incluindo o MP». Ivo Rosa explica que nunca foi pedido que se revelasse a identidade de quem forneceu as informações que deram origem ao processo em causa, exigindo apenas a junção do mesmo excluindo estes elementos. Assim, o juiz decidiu ‘chamar à conversa’ a Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, para que se chegasse a uma conclusão.
 

Procuradora chamada a arbitrar o processo

Questionada sobre o teor desta decisão, a PGR confirmou ao SOL que «entendeu não ser possível a junção aos autos de cópia integral do procedimento de branqueamento de capitais que estava em causa». No entanto, acabou por dar razão ao JIC ao permitir a junção de certidão desse procedimento, excluindo apenas «todos os dados identificativos de quem procedeu à comunicação de operação suspeita e prestou ou forneceu, no cumprimento dos seus deveres funcionais e legais, voluntariamente ou a solicitação do MP, informações e outros elementos que naquele procedimento foram integrados», o que corresponde ao que tinha sido decidido pelo tribunal, bem como «eventuais despachos e outros elementos que contenham dados identificativos de factos que não foram aportados ao inquérito» e «dados que estejam a coberto de outros segredos com relevância jurídica». O MP terá agora de cumprir esta decisão.
 Mas este braço-de-ferro acabou por atrasar o início do debate instrutório, que continua sem data para arrancar, até que o MP faça chegar ao TCIC a documentação exigida pelo juiz.

Esquema montado por advogado português 

O processo de averiguação preventiva arrancou em 2010, tratando-se de uma fase prévia a um processo-crime, que serve para saber se existem ou não indícios suficientes para abrir um inquérito – neste caso, só foi convertido em processo-crime em 2013. O TCIC exige assim saber tudo o que foi averiguado até àquele ano e que terá dado origem à abertura do inquérito.

Neste processo de averiguações foram analisadas as transferências suspeitas realizadas pela Worldair. Para além de trabalhar com empresas como a TAP, a Sonair e a Lufthansa, esta consultora tinha também acordos com várias empresas offshore representadas por Miguel Coelho, que é também o responsável pela Worldair em Portugal. 

Foram feitas transferências elevadas para algumas destas empresas, justificadas pelo advogado português como se tratando de dividendos. No entanto, a justificação não agradou aos investigadores: Miguel Coelho afirmou que a Worldair é detida apenas pela Kundun Holding Limited, da qual também é beneficiário. Ora, «uma entidade só paga dividendos à entidade que detém o seu capital social», argumentam os investigadores do MP, posição que não é assumida pelas restantes empresas para as quais foram transferidos elevados montantes. Questionado sobre a identidade dos beneficiários efetivos destas empresas estrangeiras, o advogado português não deu qualquer resposta. O MP suspeita que sejam cidadãos angolanos com ligações à Sonangol.

 Assim, as suspeitas de branqueamento levaram a uma investigação mais profunda, que resultou neste processo-crime. Segundo a acusação, consultada pelo SOL, entre os anos de 2008 e 2009 foi montado um esquema de circulação de capitais entre Angola e Portugal «tendo a sua origem sem saídas de capital das empresas Sonangol e Sonair, ficando a grande maioria dessas quantias monetárias (ou outros bens, nomeadamente através da conversão em imóveis) na propriedade de pessoas ligadas» à petrolífera angolana.

Para isso, a Worldair intermediava uma alegada prestação de serviços pela TAP à Sonair, nomeadamente trabalhos na área mecânica, cobrando uma elevada comissão pelo seu trabalho (mais de 74% do valor acordado no contrato estabelecido entre a transportadora portuguesa e a Sonair). Esse dinheiro era depois posto a circular com recurso a offshores, proporcionando o branqueamento. Note-se que a Worldair só passou a trabalhar formalmente para a Sonair já depois de a TAP a ter contratado como intermediária do negócio.

Acusação confirma lavagem

A TAP «não prestou qualquer serviço de manutenção à Sonair» e a transportadora angolana «nunca exigiu a prática de qualquer trabalho de manutenção de motores de aeronaves», lê-se no despacho de acusação. Ao todo, a companhia aérea portuguesa recebeu cerca de 25 milhões de euros sem que tenham sido prestados quaisquer serviços. Destes, 18 milhões correspondiam às comissões da Worldair pelos alegados serviços de consultoria, mas a TAP apenas pagou e emitiu faturas de 9,9 milhões de euros, cessando os pagamentos na sequência das investigações levadas a cabo pelas autoridades e da realização de auditorias internas relacionadas com este contrato. 

Reconhecendo não ter prestado quaisquer serviços aquando da vigência deste contrato, a companhia portuguesa prontificou-se a prestar os serviços à transportadora angolana «no valor do respetivo crédito», de dez milhões de euros. Recorde-se que, na altura em que este contrato foi realizado, a TAP era detida exclusivamente por capitais públicos.