No Intenso Agora. “A nostalgia é profundamente reacionária”

João Moreira Salles esteve em Lisboa a propósito da estreia do seu último filme, construído a partir de imagens de arquivo das convulsões políticas que marcaram a década de 1960, da França do Maio de 68 à China em plena Revolução Cultural

“No Intenso Agora” é título para este filme sobre Paris, sobre Praga e sobre a China em 1968, sobre o início e o fim de uma utopia, como poderia ser para um filme sobre o Brasil de hoje, de 2013 a #MarielleFica. Ou tudo isto pode ser um filme só. E na verdade não será sobre 1968 apenas o mais recente filme de João Moreira Salles, realizador brasileiro, além de jornalista e fundador da “piauí”. Mesmo que inadvertidamente. Porque não foi sequer político o princípio de “No Intenso Agora”, explica-nos em conversa no Cinema Ideal, em Lisboa, dias depois de, ali ao lado, o Camões se ter enchido numa manifestação de apoio a Marielle Franco. Foi uma viagem ao encontro das memórias da sua mãe, depois de há quase dez anos ter descoberto duas latas de filmagens amadoras em 16 mm de uma viagem que ela fez à China em 1966, em plena Revolução Cultural. Daí partiu para Paris, para Praga, para o Brasil dessa época a partir de outras imagens de arquivo, para um filme que não é nostalgia, reivindica, mas o seu contrário.

Este filme parte das filmagens da sua mãe que encontrou e a que depois juntou uma série de imagens de arquivo, e o que é interessante aqui é a forma como algo tão pessoal se torna muito político quase naturalmente. Aquela imagem que vemos no início, de uma criança a dar os primeiros passos ao lado da babá, que desaparece do quadro, a lembrar-nos que tudo é político mesmo, é paradigmática. 

O filme partiu das imagens da minha mãe que encontrei quando estava a fazer o meu filme anterior, “Santiago” [2007]. Precisava de imagens familiares para aquele filme, saí procurando e encontrei essas duas latas de 16 mm que eram as imagens que a minha mãe tinha feito na China. Não usei no “Santiago”, mas ficaram na minha cabeça e mais tarde encontrei um relato que ela escreveu sobre a viagem que é lido ao longo do filme. 

Numa reportagem para a revista “O Cruzeiro”. Já sabia da reportagem ou só a descobriu depois das latas?

Não, não sabia. Na verdade é uma entrevista que ela escreveu para uma revista americana, em inglês, depois traduzida para português, não sei se por ela ou não, e publicada. E juntando esse relato dela e essas imagens, aquilo ficou na minha cabeça e começou de facto como um filme muito pessoal – e um filme pessoal no qual eu queria refletir sobre a capacidade que minha mãe teve naquele momento de estar inteiramente alinhada com a vida, feliz, comovida com o mundo, e como ela perdeu isso depois. A minha mãe foi ficando muito melancólica e perdeu essa capacidade de se interessar pelo mundo. O filme começava com isso, com uma tentativa de entender esse processo: como é que você perde essa competência de ser feliz. Daí comecei a ler muito sobre a Revolução Cultural e sobre aquele período, e bati com um relato de um militante maoista francês, Robert Linhart, que vai à China no mesmo período que a minha mãe por outras razões, por razões políticas. E ele escreve uma carta para a mulher na época dizendo: “Cheguei no paraíso, cheguei no nosso sonho, e o futuro do mundo será isso.” Robert Linhart, em 1968, dois anos depois da viagem da minha mãe, vai ter um engajamento na primeira semana, se desengaja na segunda semana e depois de maio sofre um baque psicológico terrível, uma incapacidade de falar inclusive. Passa quase dois ou três anos sem falar, sem dizer bom dia, boa noite, etc. 

Começou a perceber que era um sentimento generalizado?

Isso me chamou a atenção porque, no mesmo período e por outras razões, você tem uma dinâmica parecida, de alguém completamente imerso na beleza das coisas e do mundo, apaixonado, e que depois que essa paixão passa é incapaz de se recuperar e de dar sentido à vida. E comecei a ler os outros relatos das outras pessoas que acompanharam o Maio de 68 e a mesma coisa acontece na maioria desses relatos.

A utopia e a desilusão com o seu fim?

A intensidade vivida na sua força máxima que é impossível de se manter. Esse grau de energia não se mantém, perde potência, e aí você se vê desencantado depois de ter vivido aquilo tudo. E aí vem a dificuldade: como é que se segue adiante? O filme nasceu disso, então migrar do pessoal para o político é quase natural. Mas devo dizer, com toda a franqueza, que essa transição do pessoal para o político, que de facto é um dos motores do filme, funciona para determinadas pessoas e não funciona para outras. Para pessoas que querem ver na relação entre o material da minha mãe na China e o material de Maio e até o da Checoslováquia uma conexão estritamente política, para essas pessoas, o filme fracassa. Não é a política que os une, é outro tipo de coisa, é essa questão a que chamo existencial, por falta de termo melhor. O você passar por um momento de paixão – paixão política, estética, erótica, amorosa, o que seja – e ter dificuldade de seguir adiante quando isso passa, quando isso reflui. Tem um poema deslumbrante do Carlos Drummond de Andrade, “A Máquina do Mundo”, que é lindo: a máquina se abre, durante alguns momentos você é conectado com uma coisa que é maior do que você, você se torna o infinito. Se você lê ou conversa com as pessoas que viveram o Maio de 68, ou 2013 no Brasil, a sensação descrita é essa: eu não sou mais eu, eu sou eu e a multidão, sou eu e a humanidade, eu e a História, sou um oceano.

Mas isso não deixa de ser política.

É política também, mas não é política stricto sensu. Então, quando sou chamado a apresentar o filme e a responder a perguntas no final, nunca sei direito que plateia vou encontrar. E, estranhamente, essas coisas são meio coletivas. Ou o filme funciona muito bem, e funciona bem para a plateia inteira, ou não funciona de todo, e não funciona de todo para a plateia inteira.

Não terá a ver com o contexto político e histórico dos lugares em que o apresenta?

Pode ser, pode ter a ver com isso, pode ter a ver com uma coisa meio misteriosa, subtil, um certo sentimento que silenciosamente se espalha por uma plateia… Não sei o que é, mas o filme é de facto percebido de forma diferente em função do lugar onde está sendo exibido. 

Pelas conversas que tive com quem já viu o filme, parece-me que aqui teve algum impacto.

As pessoas que viveram processos parecidos tendem a se relacionar bem com o filme. Quem viveu 13 [protestos de junho de 2013 no Brasil, desencadeados pelo aumento do preço dos transportes públicos], quem viveu os Indignados na Espanha, o pessoal do Occupy, na Argentina o pessoal que se engajou no processo político dos anos Kirchner, essas pessoas meio que se reconhecem na tela, nessa beleza do engajamento, a felicidade do engajamento, e como é difícil depois que isso acaba.

E este caminho que deu ao filme, que a partir da China vai dar sobretudo a Paris em 68 – são mais as imagens de França do que do Brasil nesse período -, veio também de uma tentativa de reencontrar um passado de que não se recorda, da infância em Paris? Porque vivia lá nesses anos, criança, depois de o seu pai ter deixado o Brasil com o golpe de Estado que depôs João Goulart, em 1964.

Acho que sempre tem um pouco disso. 

Mais do que ir atrás dessa possível explicação para o estado melancólico em que diz que mergulhou a sua mãe?

Num primeiro momento foi mais isso mas, num segundo momento, algumas outras coisas, como viver vicariamente aquilo que não pude viver de facto porque tinha três anos.

É muito estranho percebermos que fomos contemporâneos de acontecimentos tão determinantes dos quais não temos memória, não é?

É estranho. É estranho mesmo. E você quer entender um pouco as circunstâncias do tempo em que você nasceu, não é? Tem isso, sim, tem toda a razão. No caso específico do “No Intenso Agora”, dez anos antes eu fiz “Santiago”, e fiz em parte porque queria falar da casa onde cresci, queria falar da minha própria infância e juventude, e queria falar do meu pai, porque a casa, que é um personagem do filme, foi feita por ele, que já não era vivo. O Santiago [o mordomo] trabalhava para ele, e hoje, olhando para trás, acho que [mais do que sobre Santiago] esse é um filme sobre o pai. “No Intenso Agora” é um filme sobre a mãe. A mãe que para mim é uma mãe cujo sentimento que mais me marca, porque foi o que mais conheci, é o da melancolia. Então, a melancolia também vem naturalmente de esse ser um filme sobre ela. E é um filme no qual, por ter passado tanto tempo pensando sobre ela, tentando reconstituir o estado de espírito dela naquele momento, me aproximei dela, apesar de não estar mais viva. Quando ela morreu, em 88, a minha relação com ela, que tinha sido muito próxima quando eu era criança, era muito distante. A gente foi-se afastando e era uma relação muito distante, e ela sofreu muito no fim da vida – tinha uma depressão muito grande da qual não conseguiu nunca se curar -, e acho que o filme foi uma maneira de recuperar um pouco a memória da minha mãe e a presença dela. Então, quando você pergunta se o filme é voltar atrás para recuperar o passado, é. Mas um passado que não é necessariamente o Maio de 68 francês. É essencialmente a minha mãe. E a memória dela. 

Sobre essa questão do que fazer depois da luta de que falava, temos isso um pouco aqui. Temos, por exemplo, vários políticos que ocuparam cargos importantes que hoje são de direita e que pertenciam no período pós-revolucionário a movimentos de extrema-esquerda. Será isto alguma espécie de consequência de um cinismo que vem da tal melancolia?

[Risos] O cinismo não precisa necessariamente de ser medido por uma transição ideológica. Também no Brasil, muitas pessoas que estiveram na origem do PT [Partido dos Trabalhadores], quando chegaram ao poder, se tornaram cínicas também, sem abandonar o campo da esquerda. E tem pessoas que fazem essa transição política…

Que não são necessariamente cínicas.

Acho que o Cohn-Bendit [uma das vozes do Maio de 68] é um pouco assim. É atacado pelos seus antigos companheiros de militância na França porque fez um percurso que não foi para a direita, mas se afastou dos dogmas da juventude dele, passou a ser crítico dos dogmas. Vai-se meter na luta ambiental, se torna um social-democrata, e nada pior para alguém da esquerda dura do que um social-democrata. Mais vale ser de direita, social-democrata não está em lugar nenhum. Mas o Cohn-Bendit se torna social-democrata por convicção, porque acha que, dadas as condições do mundo, esse é o melhor sistema. Nem toda a mudança é boa, depende da direção dela, mas acho que não mudar também é grave.

Quando vem de uma ausência de questionamento.

Exatamente. E de não querer constatar também que a História anda e que as lutas mudam. As questões e as relações de força mudam, e você precisa se ir adaptando. Só não muda de ideias quem não as tem. Não sei se essa é dele, mas essas boas frases geralmente eram do Churchill. Acho que as pessoas que mudam são aquelas que não se suicidam. Tem toda uma sequência de suicídios no filme, e acho que as que se suicidam são as essencialmente nostálgicas.

Incapazes de aceitar o choque com a realidade.

As que não aceitam que há outras razões para se ser feliz, outras lutas nas quais se engajar. Tenho insistido muito nisso porque cada vez me convenço mais que a nostalgia é profundamente reacionária. É uma tentativa de projetar para o futuro aquilo que pertence ao passado e, nesse sentido, ela não avança, ela recua. É reacionária nesse sentido. Admiro os que não são nostálgicos. O meu filme não é um elogio da nostalgia, é uma crítica da nostalgia porque a nostalgia leva à morte, à imobilidade, à tristeza, a um abrandamento da luta política, porque você não quer novas lutas, você quer lutar as velhas, que já não fazem sentido.

O que senti ao ver o filme foi uma projeção para o futuro, para a frente. E em relação a essa mudança de tempos e de circunstâncias políticas de que fala, não deixa de ser interessante o paralelismo que encontramos com a atualidade. E não só aquele que já fez com os protestos de 2013 e com outros. O desencantamento que temos na parte final do filme pode ser muito parecido com o que se vive hoje no Brasil. A História repete-se.

Isso. Quando comecei a fazer o filme, o Brasil estava muito bem. 

Aliás, a História repete-se e parece que não aprendemos nada com ela.

O germe do que viria a ser o nosso tombo estava gestado, mas pouca gente percebia. 

E o filme estreia hoje [22 de março] aqui no Ideal, quando há três dias, a esta hora, decorria um protesto de solidariedade com Marielle Franco mesmo aqui ao lado, no Largo Camões.

De brasileiros?

Brasileiros e portugueses. E temos no filme o velório do estudante Edson Luís, morto justamente pela polícia militar num restaurante do Rio de Janeiro, em 1968.

O velório da Marielle aconteceu no mesmo lugar que o dele, ali na assembleia [pausa]. O filme estreou em Berlim no ano passado, mas não tinha sido visto por ninguém. Foi a primeira vez que uma plateia viu o filme e eu não tinha ideia de como ela ia reagir, uma plateia alemã. E houve a sessão de perguntas e respostas, e um brasileiro que estava na plateia fez uma pergunta – a primeira pergunta de um brasileiro sobre o filme -, e era sobre se o filme era sobre 2013 e se era contra o Temer. Eu respondi muito sinceramente que não, uma vez que tinha começado a montar o filme em outubro de 2012. O filme estava crescendo a 7%, quase taxa chinesa de crescimento. E aí, ele: “Mas veio 2013, isso mudou o teu filme?” Eu parei para pensar porque era uma questão na qual não tinha pensado, e disse: “Muito sinceramente, não.” É quase o contrário. O facto de estar olhando o Maio de 68 e aqueles eventos me fez olhar para 2013 com os olhos do Maio de 68 e ver em 2013 elementos paralelos muito, muito claros: a espontaneidade, a horizontalidade do movimento, sem líder, sem ninguém à frente do processo, essa ideia de não ter programa, de não se saber direito o que eles querem, que é a entrevista do Cohn-Bendit com Sartre [no filme] dizendo “não temos programa”. E a ideia de que, se isso por um lado era maravilhosamente fértil, por outro lado essas energias se dissipam muito rapidamente, como aliás observou Sartre. Então, na época, olhando para 2013, eu via aquilo já com um certo olhar melancólico.

A adivinhar o final.

Um olhar de quem sabe que toda aquela energia rapidamente se vai dissipar. O que de facto aconteceu.

Dissipa-se mas há coisas que ficam, e isso está também presente no filme: “As mulheres já não querem mais ir para casa, os homossexuais não querem mais se esconder, os operários já não sentem mais a obrigação de tirar a boina.”

Um exemplo muito concreto é o #MarielleFica. A Marielle representa – representa ainda, porque está viva como símbolo – uma nova força política que está viva desde o começo de Lula, mas principalmente desde 2013, quando saíram às ruas pessoas que nunca tiveram a consciência de que podiam ter uma voz, de que podiam dizer, reivindicar, ser atores políticos – periferia, movimento negro, movimento LGBT, etc. E, de novo, Maio é uma lição para isso. O filme tem aquela cena extraordinária do garçon falando. Aquela potência de voz de quem nunca falou na vida e ali fala, esse direito a ter a palavra, acho que é um efeito de 2013. E esse efeito veio dar para esses grupos a capacidade de se articularem politicamente, de serem mais assertivos, e isso modificará o Brasil não a curto prazo, mas a longo prazo. Então, você tem toda a razão quando diz que tem coisas que ficam. A sociedade francesa mudou, e mudou radicalmente, por causa de 68. Agora, mudou lentamente. Não mudou da noite para o dia. A sensação de derrota vem daqueles que viveram aquilo e acreditaram que a mudança estava ali na esquina. Não estava. Era preciso percorrer quilómetros, centenas de quilómetros, até chegar a uma França modificada. Mas ela se modifica com Maio, como o Brasil se modifica com 2013.