Loures. Moradores irão “até ao fim” para evitar despejos

Em risco de serem despejados, moradores de três prédios em Loures juntaram-se para combater o que veem como um despejo coletivo por parte da seguradora Fidelidade. Ali à volta, as rendas já estão a aumentar, alertam

De um dia para o outro, vários moradores de três prédios em Santo António dos Cavaleiros, em Loures, começaram a receber cartas a anunciar a não renovação dos contratos de arrendamento. No início falava-se do assunto apenas casualmente, nas escadas, entre o sobe-e-desce, mas rapidamente a preocupação subiu de tom. Os moradores sentiram a necessidade de se unirem para enfrentarem o que julgam ser um “despejo coletivo”, espaçado no tempo, desencadeado pela seguradora Fidelidade. A grande maioria dos contratos terminam em 2020. E provavelmente não serão renovados. 

Em causa poderão estar pelo menos 158 famílias num total de mais de 400 pessoas, segundo números da Junta de Freguesia de Santo António dos Cavaleiros e Frielas. “Soubemos disto há 15 dias, nem tanto”, explica Ana Oliveira, de 39 anos e moradora há mais de 15 numa das torres. “Para o concelho [de Loures] é um rombo. São mais de cem famílias que se vão embora e ainda não apurámos todas”, garante. “O concelho de Loures”, explica Ana, “não tem capacidade para nos alojar a todos. Não há casas para todos.” 

A lei da oferta e da procura do mercado não perdoa e, desde que a notícia de eventuais despejos coletivos se espalhou pelo concelho, aumentaram as rendas das casas para alugar, diz Jorge Galrão, de 52 anos e morador há mais de 30 anos num dos prédios. “Só com este impacto [dos eventuais despejos], as rendas subiram de um dia para o outro 250 euros.” Já Ana não resiste a referir a gentrificação em curso. “Expulsam-nos de Lisboa para os arredores, e agora que os arredores de Lisboa estão mais desenvolvidos, como é o caso de Loures, mandam-nos ainda para mais longe”, critica. “Estão a varrer-nos para mais longe, é como se fôssemos lixo.”

Como primeiro passo, Ana e outros moradores decidiram ir de porta em porta falar com os restantes vizinhos dos três prédios para apurarem as idades, situação económica e condições dos contratos. Os dados recolhidos mostram um retrato social preocupante: “No prédio 1, mais de 70% das pessoas têm mais de 70 anos, com muita gente acamada e doente.” 

Depois da recolha de dados marcaram uma assembleia com todos os interessados para pensarem, em conjunto, formas de continuarem a viver nos prédios para além de 2020, reunião onde esteve presente um representante da Câmara de Loures e a presidente da Junta de Freguesia de Santo António dos Cavaleiros e Frielas, Glória Trindade. Para a presidente do executivo da freguesia, é “um drama em termos sociais e financeiros”. E mais: é uma “insensibilidade terrível uma organização que é bem estruturada financeiramente fazer uma coisa destas sem objetivos definidos”, disse Glória Trindade.

Questionados sobre o que pretendem, João Ascensão, de 42 anos e morador há 15, não hesita: “Independentemente do comprador dos imóveis, o que queremos é ficar cá com as mesmas rendas e novos contratos”, garantindo-lhes casas para os próximos dez anos, pelo menos. E até onde irão? “Até ao fim”, dizem, mesmo que não saibam de antemão o que isso poderá significar. “Esta luta é política e económica, e não legal. Vamos tentar levá-la até ao limite”, garante Mário Cardilha, de 62 anos e morador há mais de 20. Nas suas vozes sente-se a força de vontade de quem não quer abandonar as casas onde vivem há décadas, mas também “tristeza, angústia, desespero e falta de chão”.

Como tudo começou

Tudo parece ter começado em 2015, quando as rendas dos moradores foram atualizadas e foram redigidos novos contratos com um prazo de cinco anos, quando antes não tinham término definido. A rescisão dos contratos pela Fidelidade está em conformidade com a lei do arrendamento. Questionada pelo i, a seguradora respondeu que “tem vindo a atualizar, como o faz qualquer proprietário que gere adequadamente o seu património, os contratos de arrendamentos existentes”, tendo enviado “apenas seis cartas de oposição à renovação em contratos mais recentes” para os moradores de um dos prédios. A seguradora referiu ainda que “alguns dos destinatários das referidas cartas já nos comunicaram que pretendem sair antes do final do contrato”. 

Ana garante que esses moradores viviam no prédio há poucos anos e que agora estão a tentar retroceder. A Fidelidade pode até estar a respeitar a lei, mas o descontentamento mantém-se. “Estou aqui há 15 anos a pagar 500 euros de renda mensal. O meu apartamento é como se estivesse pago. Se sempre fui cumpridora, porque tenho de ir embora?”, desabafa. “Muitos moradores fizeram obras nos seus apartamentos. Fizeram investimentos particulares para terem conforto”, complementa. Ascensão questiona: “O slogan da seguradora é ‘Fidelidade ao lado dos portugueses e a cuidar das famílias portuguesas desde 1808’, mas a minha pergunta é: estão a proteger quem? As famílias de Loures foram esquecidas.” 

 Tentar mudar a lei do arrendamento é é outra via. “Vamos tentar resistir com formas de luta para que a Assembleia da República comece a tentar mudar a lei, para nos protegermos e para evitar que futuros casos como os nossos aconteçam”, diz Ascensão. Para os moradores, o problema começa aí: “A lei das rendas da sra. Assunção Cristas [líder do CDS-PP] veio proteger os grandes interesses e desproteger os inquilinos.” 

Em outubro de 2017, a Fidelidade anunciou que iria reconfigurar o perfil do seu portefólio imobiliário ao vender 277 imóveis em todo o país, tendo 70% uso residencial. Destes, 54% localizam-se em Lisboa, 12% no Porto e os restantes estão espalhados pelo resto do país. Só em Lisboa, anunciou, a Fidelidade tem 1700 inquilinos. A operação deverá, na sua perspetiva, arrecadar cerca de 400 milhões de euros. Em resposta ao i, a seguradora confirmou estar a “fazer a recomposição da sua carteira de ativos imobiliários”, mas que o envio das cartas de não renovação dos contratos é “independente deste processo”, enquadrando-se numa “normal gestão”. 

A opinião não é partilhada por Ana Oliveira e restantes moradores, que defendem que “este é um negócio que interessa à Fidelidade e a outras entidades. Quem lucra com isto são os grandes e quem perde somos nós, os de sempre.” Já a presidente da junta considera que “quando se manda uma carta e se diz que se tem 120 dias para entregar a chave não se está a fazer gestão nenhuma, está simplesmente a pensar colocar completamente disponível o imóvel porque é mais fácil e rentável colocá-lo vazio no mercado”. “Uma gestão normal nunca seria feita com o objetivo de vender uma torre completa a um qualquer investidor”, frisa.

União e Solidariedade

No domingo passado, os moradores convocaram uma segunda assembleia, agora na Escola Básica da Flamenga, para discutirem o avanço do processo. Em poucos minutos a escola encheu-se de dezenas de moradores e apoiantes, entre os quais associações (Habita, Associação Solidariedade, Rede de Solidariedade) e forças partidárias (PCP, BE, PS e Livre). 

Na sua intervenção, Bernardino Soares, presidente da Câmara de Loures e ex-deputado comunista, afirmou que a questão “é política e não legal”, concluindo que a “solução é irmos todos à Assembleia da República falar com o máximo de grupos parlamentares para que a alteração à lei do arrendamento avance o mais depressa possível”. 

Também Glória Trindade, presidente da junta, disse ser necessária uma solução política que pressione a Fidelidade a sentar-se à mesa, revelando que a seguradora se tem recusado a reunir-se com a autarca – posição recusada pela seguradora que, em comunicado, afirmou que “não deixará de estar disponível para ouvir os interessados”. Entretanto, a autarca reunir-se-á ainda esta semana com a secretária de Estado da Habitação, Ana Pinho, para se averiguar a disponibilidade do governo para intervir. Isabel Pires, deputada do Bloco de Esquerda, defende que o governo deve ser pressionado para se arranjar uma solução: “O governo tem de ter uma ação rápida. Estamos a falar de muitas famílias na iminência de irem para a rua sem qualquer alternativa".

Também Ana Oliveira, uma das porta–vozes dos moradores, anunciou que os moradores já pediram reuniões aos grupos parlamentares, ao governo e até ao Presidente da República, estando a aguardar por respostas. “Tudo o que for preciso será feito”, assegurou aos restantes moradores. 

Em declarações ao i, Bernardino Soares afirmou ver esta situação com “grande preocupação”, atribuindo as responsabilidades aos “efeitos da especulação que está a haver no setor imobiliário”. 

O autarca eleito pela CDU disse que toda a pressão dos moradores e da câmara será no sentido de se alterar a lei para que estas situações sejam acauteladas. E reforçou a garantia: “Vamos acompanhá-los e dar o apoio que seja possível.” Questionado pelo i, o autarca recusou qualquer contacto entre a câmara e a Fidelidade para uma eventual compra dos prédios por parte da autarquia. 

À esquerda repetem-se as críticas ao CDS. Rita Rato, deputada do PCP, considera que a situação dos moradores “é de uma injustiça profunda e traduz bem o efeito da lei das rendas da ex-ministra Cristas, a que na altura chamámos lei dos despejos”. A deputada referiu ainda que o PCP está solidário com os moradores e que o governo deve intervir para garantir o direito à habitação. O mesmo diz Isabel Pires, do BE, acrescentando que este caso demonstra as “consequências das privatizações”, visto a Fidelidade ter sido vendida durante o anterior governo à empresa chinesa Fosun. 

Uma conclusão ficou patente no plenário: os moradores querem fazer da união e da solidariedade a principal arma num processo que se prevê longo e duro psicologicamente. “A união faz a força” tornou-se, implicitamente, o lema da assembleia, algo que em processos similares, como o dos moradores da Rua dos Lagares, na Mouraria, demonstrou ser fundamental para manterem as suas casas. Resta saber se conseguirão e até quando.