Manuel Reis. O homem que mudou a noite de Portugal

Manuel Reis tocou uma imensidão de gente, primeiro no Frágil, uma revolução nos anos 80, refúgio da liberdade; símbolo depois transposto para a beira-rio do Lux. Morreu aos 71 anos e, na hora da despedida, muitos recordam o homem que não dava entrevistas, desde a genialidade como empresário ao afeto do ser humano

Aquele 15 de junho de 1982 no número 126 da rua da Atalaia, Bairro Alto, marcou o início da noite lisboeta como já não vimos mas que hoje conhecemos. Culpa dele, mérito dele – Manuel Reis, nome que se confunde com este mapa de Lisboa para que olhamos. Depois do Frágil veio o Lux, vieram milhares de noites e de vidas cruzadas, de festas únicas que marcaram gerações. Uma das mais recentes dessas celebrações icónicas – e ainda assim já há foi há dois anos, em janeiro de 2016 – foi uma comemoração à vida de David Bowie. E foi a Bowie que ontem, um dia após a morte de Manuel Reis – que partiu no domingo, aos 71 anos -, que a sua equipa do Lux foi buscar palavras para o agradecimento. “A equipa do Lux Frágil agradece a todos as palavras bonitas, sinceras e gratas que a morte do Manel trouxe. Quem tocou, desta forma, a vida de tantos fica para sempre no meio deles. No meio de nós. Entre muitas outras coisas, o Manel ensinou-nos que, com festa, com generosidade e com os outros, as coisas são melhores. Somos melhores. Vamos lembrar isso para sempre e trabalhar nisso como sempre. Porque a nossa vida – a tal que “é toda para diante” – foi, é e será melhor por causa dele. Obrigado Manel e agora, como mandaste: “Let’s Dance!” 

Manuel Reis não dava entrevistas. As páginas dos jornais não conhecem as memórias de infância de um Algarve virgem, onde nasceu na Guia, em 1946, de onde veio com 16 anos, ou dos tempos em que trabalhou como comissário de terra da TAP. Como empresário da noite, a sua vida cruzou-se com uma imensidão de gente que gostava de dançar, de música e, acima de tudo, daquela atmosfera vivida nos refúgios que Manuel criou e onde as memórias desses clientes e amigos se atropelam para, no fim, chegarem a uma definição comum: liberdade. Sobre ele, recordam um homem discreto, extremamente simpático, alguém que concretizava a utopia servindo-se de um faro especial para as novas tendências.

“Era um tipo que tinha muita inteligência e bom gosto. Mas, ao mesmo tempo, era muito humilde. Há uns meses encontrei-o na Bica do Sapato, mas pareceu-me bem. Não me apercebi que estava doente. Sempre foi muito discreto e elegante. Gostava dele”, diz João Soares ao i, sublinhando que, de Manuel Reis, guardará a memória “grata e amiga”.

Já Elísio Summavielle, presidente do Centro Cultural de Belém, telefonou a Manuel Reis há cerca de um mês. A ideia era desafiá-lo para organizar a grande festa dos 25 anos do CCB, neste verão. Elísio sentiu a voz de Manuel Reis fraca, Manuel Reis disse que andava com “algumas maleitas”. Mas combinaram que se iriam encontrar em abril. “Foi um homem que marcou profundamente Lisboa, a movida dos anos 80 no Bairro Alto. Nunca foi vaidoso, sempre afável. Gostava muito dele. Era um autodidata, um homem que se fez a si próprio, um tipo com muito gosto”. O Frágil foi um dos “escritórios” de Elísio Summavielle durante as décadas 80-90. Na altura de Lisboa Capital da Cultura, em 1994, Elísio, que era responsável da organização de Lisboa/94 e Manuel Reis fizeram várias festas e concertos em conjunto, nomeadamente a comemoração dos 20 anos do 25 de Abril, com a “Noite Branca” num Bairro Alto inundado de cravos vermelhos e o primeiro concerto de Pedro Abrunhosa, depois de ter lançado o seu primeiro disco, no Alto de Santa Catarina.

“Saudades é o que sinto”, diz Elísio Summavielle, que ainda se lembra de António Variações cortar o cabelo a clientes no Frágil. “O Frágil era mais rebelde na sua essência, o Lux passou a ser uma espécie de catedral da noite por onde passavam todas as feiras de vaidades”.

A bandeira do Frágil Também Vicente Jorge Silva nota a discrição do empresário. “Era um homem tímido que falava muito pouco. Mas era muito simpático e era sempre agradável falar com ele. Tinha uma grande intuição e faro, mas não se exibia”, diz. O jornalista e fundador do “Público” conheceu melhor o Frágil do que o Lux e diz que foi o espaço da rua da Atalaia a mudar o paradigma do Bairro Alto “do lado provinciano para o cosmopolita”.

 “Ele foi muito inovador e o Frágil foi a bandeira dele. Não era como o Snob para pessoas mais macambúzias. Ali havia um elemento de prazer que era estimulante. Não sei porque ia lá, mas a verdade é que ia sempre lá ter. O Frágil fazia parte do circuito da minha vida. Era um ritual. O trabalho consumia muitas energias e aquilo era um momento relaxante. Havia encontros ocasionais, mas também me lembro de ir lá sozinho. Era um pequeno teatro, até de grandes vaidades. As pessoas que não foram ao Frágil terão dificuldade em perceber o que Lisboa é hoje. Também havia uma grande mistura de gerações. E todo este espetáculo de um novo tempo teve um grande contributo do Manuel Reis”, diz o jornalista. 

José Paulo Martins Gomes foi sócio de Manuel Reis nessa primeira aventura que viria a tornar-se num local com aura própria. “O Manuel Reis era muito à frente. Também tinha negócios com móveis e tudo em que tocava era elite”. Ao i, conta como era o Bairro naquela altura. “Para se ter uma ideia do tempo do Frágil, as modelos não casavam com futebolistas. O Frágil foi o princípio da mudança porque era o sítio dos artistas. Era um espaço reservado, elitista para caraças”. E um sítio onde, numa altura em que a orientação sexual ainda era tabu, os homossexuais eram bem recebidos. “Agora, aceita-se muito mais a comunidade gay, mas na altura era ali que estavam mais à-vontade”. E, lembra, onde o mundo da moda, que começava a firmar-se, também convergia. “Até quando começa a ModaLisboa tudo se encontra no Frágil. Por exemplo, alguns dos estilistas que naquela altura ainda não vendiam nada de jeito encontravam-se no Frágil. Eram os primórdios”.

Lugares únicos Os rituais começavam logo à entrada. Nunca em tempo ou outro local o papel de porteira teve tal importância numa estrutura empresarial. Fazia parte da encenação, arte que Reis tanto acarinhava. Coube a Anamar. Contam-nos como, de uma janela, decidia quem entrava. Mas foi Margarida Martins – à data, conhecida por Guida Gorda – que ficou indelevelmente ligada ao espaço e a Manuel Reis que, “para além de um amigo, foi um Mestre”, escreveu nas redes sociais. 

A presidente da junta de Freguesia de Arroios e ex-presidente da Abraço chegou a posar nua para um convite de aniversário do espaço e, como contou numa entrevista publicada no “SOL”, voltava a fazê-lo. “Ai, voltava! Acho lindo! Só não estava à espera é que o Presidente da República [Mário Soares] me dissesse que tinha em casa os dois postais, frente e verso… (risos) O Frágil deu-me isto tudo”. E o que era tudo? “Um lugar onde qualquer coisa virava um acontecimento, onde tudo era especial”. Culpa de “Manuel Reis, um homem que investiu na cultura em Portugal”. “Passava-se tudo ali: eu fiz um casamento à porta do Frágil. E ainda estão casados. E têm dois filhos!”, explicava então.

Foi o próprio Manuel Reis, que já tinha um antiquário na mesma rua, quem decorou o espaço – uma antiga padaria – com colunas douradas e cortinas de veludo bordeaux. E o Frágil virou símbolo de um tempo, de uma forma de estar: ali se fizeram exposições, por ali se reuniram artistas, intelectuais, realizadores, pintores: Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis [que Manuel Reis depois convidou para decorar o espaço], Al Berto, Miguel Esteves Cardoso, Helena Vasconcelos, Clara Ferreira Alves, Manuel Mozos, João Botelho, Catarina Portas….

Mas, pese embora o elitismo associado à entrada nos espaços, o proprietário tinha igual trato para todos e era extremamente correto para os clientes, fornecedores e funcionários. Diogo Saraiva e Sousa, um dos fornecedores que o acompanhou desde o Frágil, até ao Lux – que abriu portas a 28 de setembro de 1998 -, como nos restaurantes Pap’Açorda e Bica do Sapato e, mais recentemente, no Rive Rouge, corrobora essa característica. Tornaram-se amigos. “Era uma pessoa muito correta com todos, de clientes a fornecedores. No mundo da noite foi um privilégio poder trabalhar com ele”, disse ao i.

Casas de artes Esse entrosamento, o das casas de Manuel Reis com as artes, seria uma linha comum a todos os projetos. Joana Vasconcelos também foi porteira no Lux onde, em início de carreira, expôs “a Noiva”, em 2001, um candelabro feito de tampões. Ontem, a artista recordava nas redes sociais o “apoio fundamental do empresário”, a quem agradeceu por “todas as danças”. “Foi com Manuel Reis que aprendemos que não temos de ficar na sombra do nosso canto, que não somos um país periférico, que temos tanto para brilhar”, escreveu a artista plástica.

As despedidas virtuais sucederam-se e os remetentes plasmam bem a diversidade cultural das pessoas que Manuel Reis marcou. 

Pela transversalidade da prosa, destacamos a de Bernardo Futscher Pereira, embaixador de Portugal em Dublin: “Devo-te imenso Manel, tantas horas de puro prazer musical no Frágil, tantos bifes e tantas mousses de chocolate no Pap’Acorda, tantas festas deslumbrantes de passagem de ano, tantas peças fantásticas na Loja da Atalaia, tanta beleza, tanto trabalho, tanta imaginação para transformar as noites sórdidas do Jamaica no esplendor do Frágil e do Lux. Devo-te eu e devem-te os meus filhos, habitués do Lux, e tantos dos meus amigos que te acompanharam ao longo de toda a vida, artistas, DJs, gente da poesia e da moda, do cinema e dos jornais, que reunias à tua volta. Eras Leão, na mais alta expressão do signo: um verdadeiro rei da noite, generoso, artista, pensando tudo em grande e realizando melhor ainda que pensando, sempre rodeado de uma corte fiel de que eu me orgulhei de fazer parte.”

O corpo de Manuel Reis está, desde ontem, no Teatro Thalia. E o adeus não está arredado do simbolismo. Um homem que, sem viver das artes, construiu-lhes casas, despede-se num espaço singular, esse teatro das Laranjeiras, erigido pelo conde de Farrobo, onde as festas, por serem tão épicas, viraram expressão: “forrobodó”. Manuel Reis teria gostado do mundanismo. 

Com Ana Sá Lopes