Guião para demonizar os media…

Costa poderia ter aproveitado o debate para lamentar ‘a péssima qualidade’ de muitos políticos.

Reconfortado com os números das sondagens, que inevitavelmente favorecem o PS, o primeiro-ministro resolveu fazer um exercício de estilo e surpreender o Parlamento no debate quinzenal ao afirmar que «um dos maiores problemas do país é a péssima qualidade da nossa informação». Disse-o a pretexto dos incêndios florestais do Verão passado, antecipando-se à divulgação do relatório demolidor  da Comissão Independente, cujo teor não lhe seria estranho.
A sobranceria de António Costa visou ‘castigar’ os media numa matéria muito sensível – quando deveria estar-lhes grato pela assumida discrição com que trataram as suas memoráveis férias nas Baleares, voltando as costas ao rescaldo trágico de Pedrógão Grande e ao inopinado roubo de armas em Tancos. 
Tivesse ele sido apanhado de surpresa pelos acontecimentos e esperar-se-ia – em consonância com a mais elementar noção de serviço público – vê-lo de volta no primeiro avião, juntando-se ao voluntarismo do Presidente da República.

Mas não. Costa continuou impavidamente a banhos, sem ser incomodado pelos jornalistas, cujas direções editoriais fingiram não saber onde ficava o seu retiro em Palma de Maiorca. 
Infelizmente, este foi um episódio que não abonou a «qualidade da nossa informação», que ficou sentada, sem confrontar o primeiro-ministro com as suas responsabilidades. 
Porém, numa pirueta, António Costa veio alegar que a informação «só desperta para o problema no meio da tragédia e esquece-se habitualmente do problema na hora certa de prevenir que a tragédia possa vir a ocorrer». 

O discurso revela, no mínimo, uma preocupante falta de memória, quando se sabe que a prevenção foi algo que nunca lhe passou pela cabeça, quer enquanto ministro da Administração Interna (criticado, mais tarde, por Ascenso Simões, seu ex-secretário de Estado, numa tese académica sobre ‘A Defesa da Floresta’), quer enquanto primeiro-ministro. Nesta qualidade, além de ter sido imprudente ao mudar a maioria dos comandos na Proteção Civil à beira do Verão, não tomou medidas cautelares para que a tragédia de Pedrógão não se repetisse em Outubro, como sucedeu.
Poderá imaginar-se o que diriam Catarina Martins, Jerónimo de Sousa ou o próprio António Costa se as terríveis ocorrências que encheram de luto e de perplexidade o país tivessem acontecido durante o Governo de Passos Coelho. E o que teriam gritado nas ruas se o primeiro-ministro se ausentasse sem cuidar do drama das famílias dos sinistrados, ou do caso surreal de Tancos.
Seguramente, o registo não seria meigo. Assim, os bloquistas ficaram mansos e quedos, sem exibirem o menor incómodo, enquanto o PCP sacudiu o desconforto com um comunicado surreal: «O primeiro-ministro e o Governo decidem da sua agenda, o PCP decide da sua».  

A realidade, porém, é que as ’fugas’ de Costa são reincidentes. Quem não se lembra da sua inabalável partida para uma viagem à Índia, quando Mário Soares já agonizava no hospital, sabendo-se que a sua vida estava por um fio?
Costa falhou presencialmente o «imenso adeus» a Mário Soares, apesar de este ter sido o pai-fundador do PS e figura incontornável da luta pela democracia pós-25 de Abril. E bastava ter adiado a visita – ou interrompê-la mal se soube da sua morte, aliás esperada.
Num caso como noutro o primeiro-ministro revelou uma estranha insensibilidade.
Ora, a maioria dos media pode ser suspeita de seguidismo doentio, seja dos atos do Governo ou das deslocações presidenciais, consagrando-lhes um ‘tempo de antena’ absurdo e acrítico. Pode também ter exagerado na cobertura dos incêndios ou na abordagem das vítimas. Mas, de um modo geral, os media cumpriram o seu papel – e voltaram ao fazê-lo ao divulgarem, há semanas, o essencial de um relatório do LNEC que denunciava os riscos da falta de manutenção da ponte sobre o Tejo (com mérito para a revista Visão) ou quando exibiram as estruturas apodrecidas dos sinos de Mafra, ameaçando derrocada.

Os media, principalmente os jornais, estão na mó de baixo e fazem o que podem para sobreviver. O excesso de concentração expô-los à manipulação do poder político, que já nem precisa de imitar Sócrates para os ‘domesticar’. 
A imprensa, descontadas algumas raridades, está de rastos. E as televisões lutam desesperadamente para travar a erosão das audiências. 
António Costa poderia ter aproveitado o debate quinzenal para lamentar «a péssima qualidade» de uma boa parte dos atores políticos, deputados incluídos – a começar pela bancada socialista -, que entram mudos e saem calados. E acertava em cheio.
Mas não. Lembrou-se do guião para demonizar os media. Que fazem o favor de escrutiná-lo pouco, poupando-o a embaraços…