Dois Mercúrios negros voando com asas nos pés

Houve um Bolt antes de nascer Bolt: chamava-se Guilherme Espírito Santo e foi tão bom avançado–centro (no Benfica) como atleta. Algo que o jamaicano ainda vai ter de provar

A notícia pode ser curiosa, mas não espantou o mundo: na passada semana, Usain Bolt, o Homem Mais Rápido do Planeta, passou dois dias em sessões de treinos com a equipa principal do Borússia de Dortmund. Bolt nunca escondeu a sua paixão pelo futebol, ainda por cima agora que abandonou a competição. Por mais de uma vez foi visto em Old Trafford; por mais de uma vez declarou que gostaria de jogar no Manchester United.

Enquanto os jornais se entretêm com estes episódios com o seu quê de caricato, ficamos sem perceber se o jamaicano tem verdadeiramente jeito para correr com uma bola colada aos pés.

Seja como for, do alto da sua prosápia, Bolt foi dizendo para quem o quis ouvir: “Foi uma experiência fantástica treinar–me com o Borússia de Dortmund e fazer parte da equipa. Foram todos muito simpáticos e fizeram-me sentir em casa. Poder receber conselhos profissionais, dicas de treino muito úteis e jogar com jogadores fantásticos tornou tudo ainda mais especial. O Borússia de Dortmund é um dos melhores clubes do mundo, conhecido por desenvolver alguns dos melhores jovens talentos do planeta, e vou usar tudo o que aprendi para melhorar as minhas capacidades. Acreditem que isto é só o principio da minha caminhada no futebol.”

Será? Todos nós temos direito àquilo que a justiça chama dúvida razoável.

Guilherme! Vai assim com ponto de exclamação. Guilherme de Santa Graça Espírito Santo. Nascido em Lisboa no dia 30 de outubro de 1919. Foi Usain Bolt muito antes de nascer Usain Bolt em Trelawny, no dia 28 de agosto de 1986.

Espírito Santo foi um dos grandes jogadores da história do Benfica e do futebol português.

Mais: Espírito Santo foi um dos grandes atletas da história do Benfica e do atletismo português.

Duas vezes campeão nacional de salto em altura (1938 e 1940) com o recorde de 1,88 m; duas vezes campeão nacional de salto em comprimento (1939 e 1940) com o recorde de 6,89 m; duas vezes campeão nacional de triplo salto (1938 e 1939) com o recorde de 14,015 m.

Pois. E também quatro vezes campeão nacional pelo Benfica em futebol (1936-37, 1937-38, 1944-45 e 1949-50), vencendo duas Taças de Portugal (1939-40, 1943-44 e 1948-49), além um título de campeão de Lisboa (1939-40).

Guilherme Espírito Santo era insaciável. É essa a palavra correta: insaciável!

E, ao mesmo tempo, uma espécie de eternização da mocidade.

Guilherme Espírito Santo era um daqueles negros plásticos, “imperadores etíopes de rancho”, como diria Nelson Rodrigues, negro de se perfilar impávido na frente de Mansa Moussa, o rei de Tombuctu, a cidade das ruas pavimentadas a ouro.

Pinchava como um Mercúrio negro de asas nos pés. Voando em sombra escura sobre obstáculos que ignorava. 

Precisava de espaços. Os espaços da sua África da infância, ele que por simples acaso nasceu em Lisboa.

O espaço do campo de futebol e o espaço do salto.

Salto em altura; salto em comprimento; triplo salto.

“Fui mordido por um macaco”, explicava ele a elasticidade inquieta.

Dia 5 de dezembro de 1937.

Espírito Santo iria ser abençoado por um momento espontaneamente divino, mas ainda não o sabia.

Campo das Amoreiras. O adversário era o Casa Pia: gansos de camisolas pretas.

E a lenda negra de Espírito Santo!

A vitória dos encarnados foi bruta, incontestável: 13 a 1!

Espírito Santo parecia enlouquecido.

Uma sede de golos.

Uma incapacidade de respeitar a lei da gravidade. No salto, no sprint, na insubmissa vontade do golo.

Ao intervalo estava apenas 2-1, acreditem. Marcou Espírito Santo, claro está! Os dois.

Depois, em 45 minutos, marcou mais sete.

Nove-golos-nove.

Dançava sobre os adversário derrotados com os pés em fogo de um bailado de Falla, disparando mortíferos remates quase todos imparáveis.

E nós, aqui, à espera que Usain Bolt, A Bala, faça uma proeza igual… Se for algum dia capaz.