Terroristas que jogavam ao pião

Abdesselam Tazi e Hicham El Hanafi chegaram a Portugal em 2013 e conseguiram o estatuto de refugiados. Durante quase um ano viveram num quarto em Aveiro, alugado por 100 euros a uma septuagenária. O MP acusou Tazi de recrutar jovens marroquinos para o Daesh. Hicham, detido em França, foi um deles. 

Abdesselam Tazi e Hicham El Hanafi saíam todas as noites entre as 21 e as 23 horas. Foi assim durante quase um ano, de meados de 2014 a junho de 2015. À septuagenária que lhes alugou um quarto em Aveiro, diziam que iam andar – faz bem à saúde – ou às compras. Reformada, com o 4.º ano de escolaridade e uma reforma de 340 euros, a mulher cobrava-lhes 100 euros de renda para ajudar nas contas. Quando foi abordada por Tazi, que se apresentou como Salim, disse-lhe que o quarto só tinha uma cama. O homem sugeriu-lhe que pusesse dois colchões no chão, já que teria um amigo a viver com ele. Durante semanas, cuidou-lhes da roupa – ambos vestiam à ocidental mas traziam regularmente para lavar sacos com túnicas compridas até aos pés, «como os padres». E a certa altura instalou internet, para que usassem o computador.

A história de Tazi, de 64 anos, acusado na semana passada de terrorismo pelo Ministério Público, era que estaria a estudar línguas para ser tradutor. E a mulher chegou a vê-lo com livros na mesa da cozinha. Hicham El Hanafi, de 27 anos – que a portuguesa tratava por Xan – trabalharia em casa de um homem rico em Marrocos que tinha um filho em Lisboa. Tinham sapatilhas e gostavam de jogar futebol, mas também de jogar ao pião – cada um tinha o seu. Diziam que queriam ficar em Portugal, um país de paz. E arranjar namoradas. Falavam muito em Alá.

A morada em Aveiro terá sido o local onde viveram mais tempo no país, com algumas ausências pontuais. Saíram um dia às 5h30, sem pensar em despedir-se e deixando alguns bens para trás. As autoridades portugueses depressa entrariam no seu encalce, alertadas no fim de julho de 2015 pelos canais de cooperação institucional. O alerta era que Abdesselam Tazi, nascido em Fez, ex-polícia, descrito como muçulmano muito devoto, opositor da monarquia marroquina e manipulador, com ligação à causa jihadista – protagonizada pelo autoproclamado Estado Islâmico – estaria em território nacional. A suspeita, que a investigação viria a corroborar, era que aqui se dedicaria ao Islão e à radicalização e recrutamento para a jihad na Síria, com vista ao aumento do exército de ‘foreign fighters’.

O inquérito do Ministério Público, que na semana passada culminou na acusação contra Abdesselam Tazi – em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Monsanto desde março de 2017 – seria instaurado no verão de 2015, iniciando-se um conjunto de diligências que incluíram vigilância e escutas telefónicas – num processo hoje com 21 volumes, que o SOL consultou.

A acusação determina que Abdesselam Tazi e Hicham El Hanafi – detido preventivamente em França a 20 de novembro de 2016 por envolvimento na preparação de um atentado terrorista – deram entrada em Portugal em setembro de 2013, num voo proveniente de Bissau. Tazi trazia um passaporte falso, uma das muitas falsificações que lhe são imputadas. Como não tinha visto válido, foi-lhe recusada a entrada no país, mas solicitou o estatuto de refugiado, o que lhe valeria uma autorização de residência válida até 2019. Segundo a acusação, Hicham também se apresentou com um passaporte marroquino falso e um cartão de residência romeno, indica a acusação, mas seguindo as orientações de Tazi também pediu asilo em Portugal, sendo-lhe concedido o estatuto de refugiado e autorização de residência também até 2019.

A perseguição política seria o motivo para a concessão do estatuto. Para o MP, Abdesselam Tazi «sabia perfeitamente que a sua conduta violava as regras estabelecidas para a entrada de cidadãos estrangeiros no Espaço Schengen, tendo agido com o expresso propósito de violar as regras de emigração estabelecidas no Estado Português».

Recrutador e recruta

A convicção do Ministério Público é que Abdesselam Tazi, depois de aderir ao Daesh, começou a financiar viagens de jovens marroquinos para Portugal, que recrutava para aderirem à luta da organização terrorista. O testemunho de jovens identificados no decurso do processo, entre os quais o irmão de Hicham, contribuiu para a tese. Mas entre as diferentes diligências realizadas, a investigação encontrou vários indícios de que o homem estudava textos ligados ao radicalismo islâmico e incitadores de violência, nomeadamente online. Entre documentos manuscritos pelo arguido, lê-se ainda na acusação, foram encontrados excertos do Corão como «o profeta, estimula os fiéis ao combate. Se entre vós houvesse vinte perseverantes, venceriam duzentos, e se houvesse cem, venceriam mil dos incrédulos».

Tazi terá passado por um processo de radicalização em 2011 que incluiu uma viagem à Turquia. Já Hicham, cujo processo foi autonomizado e se encontra sob investigação, aderiu à fé islâmica em 2011 mas, em Marrocos, «levava uma vida normal para jovens da sua idade, totalmente desligada da ideologia extremista», entende o MP. Trabalhava num restaurante, bebia álcool e tinha namoradas.

Em meados de 2013, quando começou a conviver com Abdesselam Tazi, terá começado a receber a doutrinação radical, acredita o MP, aceitando então viajar com o marroquino com idade para ser seu pai para a Europa. Para a investigação, a doutrinação de Hicham foi «o primeiro passo de um plano de recrutamento deste para a causa jihadista e para a sua integração na organização terrorista Daesh». 

A acusação adianta que em meados de 2014, sob orientação de Tazi, Hicham esteve dois meses na Síria a receber treino militar dado por grupos terroristas, sendo então instruído a regressar à Europa para recrutar novos combatentes para a jihad.

Da Bobadela para Aveiro

Em Portugal, antes de rumarem a Aveiro, começaram por ficar instalados no Centro de Acolhimento de Refugiados na Bobadela. Em novembro de 2013, começaram a ser apoiados pela Segurança Social de Aveiro e Tazi foi colocado na Fundação CESDA, por cinco meses.

Seguiu-se o quarto partilhado em casa da mulher portuguesa, que foi contactada para tal por um conhecido seu, agente imobiliário e oficial de justiça, no sentido de alojar os marroquinos.

Tazi passaria depois uma temporada num parque de campismo em Olhão, seguindo-se o arrendamento de outro quarto em Aveiro e alguns períodos entre 2015 e 2016 em que as autoridades perderam o rasto a ambos, até ser emitido um mandado de detenção contra de Abdesselam no fim de 2016.

De 2013 até ao momento da prisão preventiva, a tese da acusação é que a principal atividade desenvolvida pelo marroquino seria auxiliar e financiar a deslocação de jovens marroquinos para a Portugal, ajudá-los a conseguir asilo e depois seduzi-los a integrar o Daesh, como acontecera com Hicham, em visitas ao Centro Português para Refugiados.

Para o MP, o modus operandi passaria por identificar cidadãos marroquinos que queriam viajar para Europa para arranjar trabalho, organizar uma viagem para um país terceiro com escala num país do espaço Schengen, como era o caso de Portugal. Aí chegados, tinham instruções para pedir o estatuto de asilo, alegando que eram refugiados perseguidos em Marrocos por razões políticas. «Durante o período de permanência em território nacional, em que aguardavam pela decisão das autoridades quanto à concessão do estatuto, prestava-lhes a assistência e apoio, convidava-os para irem a sua casa, pagava viagens e alimentação, dando início ao processo de doutrinação». Um dos atrativos para a adesão ao Estado Islâmico era o pagamento mensal de 1800 dólares, por integrarem as fileiras da organização.

São vários os jovens marroquinos identificados no processo e faturas atestam compras de telemóveis de centenas de euros, tablets, artigos desportivos e sapatos, que depois eram vendidos para financiar viagens. Tazi usaria para tal cartões de crédito emitidos em países como a Alemanha com identidades falsas, entre as quais a de um homem que conheceu na fundação CESDA, em Aveiro, e que viria a dar pela falta do seu passaporte. Tentativas de radicalização por parte de Tazi e Hicham foram relatadas às autoridades por alguns dos indivíduos. 

Já Tazi, em diferentes cartas que escreveu já da prisão para os magistrados do MP, o procurador da República, João Melo, o diretor do DCIAP, Amadeu Guerra, e até para a então ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, disse serem denúncias infundadas movidas por indivíduos envolvidos no tráfico de droga. Insiste não ter nada a ver com terrorismo, dizendo-se vítima de uma mentira.

Uma das últimas cartas em que reclama a inocência foi dirigida à investigadora da PJ ligada ao processo, em dezembro do ano passado, a desejar-lhe também um feliz Natal. Está acusado dos crimes de adesão a organização terrorista internacional, falsificação com vista ao terrorismo, uso de documento falso com vista ao financiamento do terrorismo, recrutamento para o terrorismo e financiamento do terrorismo.

Alerta terrorista no 13 de maio de 2017

No processo, lê-se que um dos homens identificados no âmbito do inquérito fez soar os alarmes aquando da visita do Papa Francisco para o Centenário das Aparições de Fátima, a 13 de maio do ano passado, sendo que por esta altura já havia outro inquérito a decorrer. O facto de o Papa Francisco ser um alvo assumido do Daesh fazia temer o pior. Sendo as comemorações em Fátima um local onde iriam concentrar-se milhares de pessoas, a chegada a Portugal deste indivíduo aumentava consideravelmente a probabilidade de se poder verificar um atentando terrorista, constituindo uma verdadeira ameaça à segurança interna.

Nesse sentido, os investigadores solicitaram controlo apertado sobre o suspeito, quer nas suas movimentações no país quer nos contactos que viessem a ser estabelecidos. No âmbito do inquérito, não são descritos outros elementos. Esta não terá sido a única medida preventiva das autoridades aquando da visita de Francisco. O SOL noticiou em julho do ano passado como um cidadão marroquino casado com uma bombeira portuguesa era suspeito de ter planeado um atentado para o Papa na visita a Fátima, acabando por ser expulso do país.