O eremita saiu do casulo

Kim Jong-un foi a Pequim de mão aberta, para selar uma amizade crucial num momento de risco para a sua liderança.

O eremita saiu do casulo

Vezes há que um comboio verde listado de amarelo na estação central de Pequim é sinal de um passo diplomático inesperado e com consequências possivelmente transformadoras. Esse sinal avistou-se na segunda-feira, dia em que a visita de Kim Jong-un a Pequim apenas existia sob forma de rumor. O comboio sugeria-a, é verdade, mas a prudência, não. O engenho verde, blindado e pesadíssimo, uma viatura inconfundível, está reservado apenas à fina flor da diplomacia norte-coreana. Foi nele que KimJong-il viajou até Pequim e Vladivostoque, no extremo oriente russo, por exemplo. Avistá-lo no centro de Pequim é sinal certo de que alguém muito importante viajara no seu interior. O mais jovem Kim, contudo, não havia até esta semana saído uma única vez do casulo norte-coreano que governa de forma absoluta desde o inverno de 2011. Tão-pouco se havia encontrado com outro chefe de Estado. Uma visita de Kim ao centro do poder asiático seria uma novidade exótica, e, por isso, na segunda-feira especulava-se sobretudo que quem chegara de comboio a Pequim fora a influente irmã do ditador. Ou o chefe do seu exército. 

Kim, no entanto, somou esta semana uma nova surpresa ao rol já impressionante de novidades dos últimos meses. O ditador norte-coreano fez uma visita surpresa ao líder chinês que sustenta, cada vez com menos vontade, o seu frágil regime. Em dois dias de encontros e compromissos protocolares, Xi Jinping e Kim Jong-un discutiram frente a frente, pela primeira vez, os seus próximos passos. Jantaram com as respetivas mulheres, assistiram a um espetáculo e a aulas sobre a arte do chá. Pelo caminho foram fotografados em apertos de mão que a momentos pareciam travar-se entre pai e filho. Xi, que é uns 30 anos mais velho que Kim, acumulou nos últimos anos um poder até há pouco tempo inimaginável na China pós-Mao. O Partido Comunista introduziu já a sua doutrina na Constituição e há semanas aboliu o limite de dois mandatos, abrindo as portas, em teoria, a uma presidência vitalícia. Kim, por sua vez, herdou o poder que maneja em casa e depende da boa vontade chinesa para o continuar a fazer. Nove em cada dez produtos que a Coreia do Norte vende ao exterior são comprados pela China. E se a sua elite vive ainda desafogada, deve-o a uma torneira de bens de luxo que Xi ainda tem mais ou menos aberta. 

Kim foi a Pequim de mão aberta. O ditador norte-coreano prepara-se para os mais importantes dias da sua vida de líder supremo e não quer arriscar-se a ter do outro lado da fronteira uma China indisposta a conceder-lhe o peso diplomático que não possui por si só. Pyongyang confirmou ontem que Kim e o líder sul-coreano se vão encontrar no dia 27 de abril na Casa da Paz, um edifício situado ligeiramente a Sul do paralelo 38. O encontro não será inédito. Líderes sul e norte-coreanos já se reuniram depois da trégua e divisão da península. A reunião que Kim Jong-un pretende fazer depois de se encontrar com Moon Jae-in, sim, pode revelar-se histórica. Donald Trump e o jovem líder norte-coreano pretendem reunir-se em breve, talvez já em maio, para discutirem as novas etapas de apaziguamento. Oencontro é de alto risco. O Presidente norte-americano vem repetindo a ideia de que o líder norte-coreano está disposto a abrir mão das suas armas nucleares e mísseis intercontinentais devido às severas sanções que enfrenta. Kim, por sua vez, e como reafirmou em Pequim, fala da «desnuclearização da península». Existe aqui uma grande diferença. O fim das armas nucleares norte-coreanas, parece dizer Kim, só acontecerá com o fim dos mísseis nucleares americanos na Ásia. Washington dificilmente o aceitará. 

Irmão mais velho

Kim procura primeiro sarar as feridas com o Governo chinês, que há décadas atua como uma espécie de irmão mais velho de um regime que considera uma relíquia da sua própria experiência maoista. Pequim, porém, vem perdendo paciência com Pyongyang. A China não pretende que o regime dos Kim caia, sobretudo por não desejar que em seu lugar surja um sistema alinhado com o Ocidente e que pela fronteira cruzem milhões de imigrantes norte-coreanos esfomeados de um dia para o outro. Pequim, acima de tudo, não deseja a instabilidade. E por isso também não aceita que ojovem Kim tenha em pouco mais de seis anos desenvolvido um arsenal nuclear e balístico em várias ordens de grandeza superior ao que o seu pai possuía. Xi, que no ano passado viu explodir a mais poderosa bomba nuclear norte-coreana de que há memória no mesmo dia em que inaugurava uma cimeira dos BRICS, fez questão de relembrar a Kim que quem manobra de facto o poder na Ásia é a China e não a Coreia do Norte. «As gerações mais velhas de líderes destes dois países confiaram e apoiaram-se mutuamente, e redigiram um belo capítulo na História das relações internacionais», afirmou Xi no comunicado oficial da presidência chinesa. 

Xi Jinping tem razões para admoestar o ditador norte-coreano. A campanha diplomática de apaziguamento que pode desaguar num encontro histórico entre os líderes americano e norte-coreano conduziu-se largamente longe do olhar do Presidente chinês, que, coincidentemente, esforça-se por controlar o máximo número de alavancas de poder na sua região. Ao longo da diplomacia de bastidores nos Jogos Olímpicos de Inverno, Xi foi um espetador de plateia. Com a visita desta semana a Pequim, Kim inclui oficiosamente o Presidente chinês no núcleo das negociações que se avizinham. Mas o jovem ditador ainda não curou todas as feridas com a liderança chinesa. A sua primeira deslocação para fora do país foi classificada porPequim como uma «visita não oficial», uma nítida farpa na vaidade de Kim. «Foi ‘não oficial’ provavelmente porque Xi está ainda zangado e frustrado com o facto de Kim ter demonstrado uma total falta de respeito em relação aos seus interesses pessoais e aos da China. Kim ainda está de castigo.»

O irmão mais velho, contudo, não ficará muito mais tempo zangado com o mais novo. A Coreia do Norte dá sinais de que os encontros prometidos não são apenas castelos de areia. A confirmação, ontem, da reunião com o Presidente sul-coreano, demonstra-o. A visita a Pequim, também. Dar um passo atrás na campanha de apaziguamento significava agora uma nova ofensa a Pequim, que, assim que Kim Jong-un abandonou o país, contactou o Presidente norte-americano dizendo que os preparativos estão no caminho certo. Donald Trump, que aceitou impulsivamente o convite norte-coreano há umas semanas, para surpresa e terror do seu próprio Governo, festejou as notícias. «Recebi na noite passada uma mensagem de Xi Jinping, da China, na qual me dizia que o encontro com Kim Jong-un correu muito bem e que ele está ansioso por se encontrar comigo», lançou o Presidente norte-americano no Twitter. 

Não há analista, politólogo ou Governo capaz de discernir com nitidez as intenções do regime norte-coreano. A abertura diplomática parece ainda a muitos um engodo destinado a comprar tempo e, possivelmente, reduzir o peso de algumas sanções. O New York Times, por exemplo, noticiava esta semana que o regime norte-coreano se prepara para pôr em funcionamento um novo reator nuclear – Pyongyang diz que se destina à produção de energia elétrica. Existem leituras concorrentes, menos céticas. segundo as quais a Coreia do Norte, vendo-se com um arsenal capaz de atemorizar o mundo, está disposta a abrir a porta a um multilateralismo que beneficie um reino eremita e falido. O sonho americano de uma Coreia do Norte sem armas nucleares, todavia, parece, por enquanto, apenas isso.