‘Fui crime. Serei poesia’

“Ser poesia é ser capaz de ver o mundo de forma mais bela, é demonstrar maior sensibilidade, é interpretar o mundo numa perspetiva única e particular”

Esta afirmação, pintada na garagem da minha amiga Fábia (que me enviou a fotografia), declara: «Fui crime. Serei poesia».

Efetivamente, pintar nas paredes constitui crime, daí que esta pintura comece por ser um crime. Mas ambiciona ir mais além, almeja ser poesia, ser algo mais belo.

É possível encontrar esta afirmação em vários locais, em Lisboa. E a sua intenção é, possivelmente, a de chamar a atenção para um crime que acaba por tornar as ruas mais poéticas, quando as frases pintadas nos levam a refletir e provocam um leve sorriso, de quem se identifica com o que está escrito, contrariando o vaticínio de Manuel António Pina, quando declarou: «A poesia vai acabar, os poetas / vão ser colocados em lugares mais úteis». 

Ser poesia é ser capaz de ver o mundo de forma mais bela, é demonstrar maior sensibilidade, é interpretar o mundo numa perspetiva única e particular. E o poeta é, muitas vezes, aquele que, como afirma João Miranda em O Homem que Inventa Setembros, a propósito de uma personagem: «com uma sensibilidade extrema, descobria na vida clarões de beleza, suposições de harmonias, razões de sorrisos que o faziam viver num plano de irrealidade ao mesmo tempo satisfeita e angustiada».

O poeta é, pois, assim, aquele que oscila entre a satisfação e a angústia de ver a realidade através de um filtro de irrealidade, que é capaz de verter esta mesma realidade em palavras, conjugadas em harmonia, que criam uma outra realidade, alternativa, mais bela, esteticamente mais elaborada. Ou, como diz Luís Filipe de Castro Mendes: «Quase sempre a angústia / instaura a luz por dentro das palavras / e lhes rouba os sentidos. / Quase sempre é o medo / que nos conduz à poesia».

É esta realidade alternativa, esta poesia que nos ajuda a ver o mundo com outros olhos, a ver a vida e o mundo que nos rodeia transformados em cânticos à vida. Diz Edmund de Waal, em A Lebre de Olhos de Âmbar, que a avó «gostava de poesia, desse mundo de coisas duras, vivas, transmutadas em cânticos». E também Marlene Ferraz, em As Falsas Memórias de Manoel Luz, afirma: «Um poema serve tanto ao homem como um teorema mas dispensa a explicação lógica. A poesia fala das coisas mais importantes sem a limitação da regra da evidência verificável». E acrescenta: «A poesia leva-nos ao invisível da maior verdade».

E é, no fundo, efetivamente, isto que a poesia faz – transmuta o mundo em cânticos, dando-lhe uma nova leitura, uma nova interpretação, um novo olhar, levando-nos ao invisível de todas as coisas. É através da poesia que podemos sonhar que o mundo é diferente, é através da poesia que as pessoas sonham.

Maria Eugénia Leitão

Escrito em parceria com o blogue da Letrário, Translation Services