Astronomia. Uma viagem no tempo (quase) até ao princípio do universo

David Sobral, investigador português em Lancaster, coordenou equipa que acaba de elaborar um dos maiores mapas tridimensionais do universo na sua infância. Uma espécie de viagem no tempo a partir de telescópios no Havai e em La Palma.

No início… houve a descoberta da CR7 – uma galáxia dos primórdios do universo detetada a 13 mil milhões de anos-luz da Terra e assim chamada pelas suas “coordenadas” no céu (COSMOS e Redshift 7), mas também numa alusão a Cristiano Ronaldo, para ver se as coisas da ciência se tornavam apelativas para mais gente, lembra David Sobral. Isto foi em 2015 e, agora, uma equipa liderada pelo astrofísico português está de volta, desta feita com um mapa tridimensional com 4 mil galáxias, vizinhas no espaço-tempo da CR7. Depois de ano e meio de trabalho, apresentam hoje em Liverpool um dos maiores mapas tridimensionais dos primeiros tempos do universo. 

David Sobral, astrofísico de 32 anos – desde 2016 a dar aulas na Universidade de Lancaster, no Reino Unido –, ajuda a perceber a novidade. 

A partir da técnica que usaram para descobrir a CR7, quando ainda estava no Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA), lançaram-se num projeto de fundo: mapear todo um segmento do universo identificado como COSMOS num intervalo de tempo de 3 mil milhões de anos. “É como se imaginássemos nove luas cheias juntas numa área mais ou menos quadrada”, explica ao i o investigador, remetendo para a direção da constelação do Sextante, próxima da mais popular constelação de Leão. Através de filtros aplicados nos telescópios Subaru, no Havai, e Isaac Newton, em La Palma, nas Canárias, obtiveram imagens em profundidade para se concentrarem num intervalo entre 11 mil e 13 mil milhões de anos-luz, fazendo fotografias em 16 períodos diferentes, as mais antigas de quando o universo tinha apenas 800 milhões de anos. É como que uma “viagem no tempo com 16 paragens”, resume David Sobral. Não é a primeira vez que se observam objetos celestes tão longínquos/antigos, nos primórdios no universo, mas é inédito cartografar uma área tão grande quanto este campo COSMOS. “É a primeira vez que se faz um mapa com esta dimensão. Já se tinha recuado, mas em áreas mais pequenas – algumas 10 mil vezes mais pequenas.”

Regresso ao passado Para que serve um mapa assim? David Sobral explica que, com estas observações – que agora passam a estar disponíveis a toda a comunidade científica –, é possível compreender melhor os primeiros estados de galáxias como a nossa, quando estavam “entre ser galáxias-bebé e galáxias-criança”, descomplica. 

Uma das conclusões é que, nestes primórdios da sua formação, as galáxias são bastante mais pequenas e tendem a expandir-se de dentro para fora. “Algumas são muito mais pequenas, até 30 vezes mais, e muito mais compactas”, diz o investigador. Mas há alguns sinais que permitem prever o futuro: as mais brilhantes vão ser mais massivas a prazo. As menos tendem a “acabar” como galáxias perto da nossa conhecida Nuvens de Magalhães, mais pobres em metais.

Na infância teriam ainda pouco oxigénio e pouco carbono e, mesmo que existam planetas, serão muito menos do que na fase adulta, como aquela em que se encontra a Via Láctea. E vida? “Em princípio, não”, sorri David Sobral. “Se pensarmos que a vida na Terra começou há 4 a 5 mil milhões de anos, recuámos muito para além disso. Na nossa galáxia, se fosse vista na mesma altura, o Sol ainda demoraria milhares de milhões de anos a formar-se”, diz. Ideia que está fora de questão, a menos que hoje haja investigadores do outro lado do universo a fazer essas observações. 
Para a Terra enviar uma sonda tão longe, a viagem demoraria milhões de anos-luz – e o envio de informação outros tantos. Por outro lado, se a viagem fosse instantânea, olharíamos sempre para o presente. “E eu ia para o desemprego”, remata David. 

Resta assim espreitar o passado e perceber, galáxia a galáxia, e em diferentes janelas temporais, o que muda. “Vamos poder ter máquinas do tempo cada vez mais afinadas e podemos andar de época em época a perceber o que foi mudando, o que vai responder a perguntas e criar perguntas novas.” E quanto mais se sabe, mais o estarmos aqui e agora parece um golpe de sorte? “É espetacular termos a oportunidade de tentarmos perceber o que aconteceu. Às vezes não temos noção do quanto progredimos e que dá para ligar os pontos.”

O ovo ou a galinha

Ana Afonso, estudante de doutoramento no Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA), é outro nome português no projeto, cujos resultados serão apresentados na Semana Europeia de Astronomia e Ciências Espaciais. Aos 31 anos, está a especializar-se em morfologia das galáxias. 

O seu papel foi validar alguns dados e estudar a forma das galáxias que identificaram. “É muito interessante ver como galáxias como a nossa mantêm a sua forma inalterada nos primeiros três mil milhões de anos”, diz ao i. Algumas janelas temporais que analisaram coincidem com picos de formação de estrelas, o que pode ajudar a perceber algo que, para os astrofísicos, ainda é do género “o que veio primeiro, o ovo ou a galinha”, resume. “Ainda não é muito claro se as galáxias surgem de um conjunto de estrelas ou de material que dá origem a estas estrelas.”

Recuar um pouco mais, até ao momento do Big Bang, há 13,7 mil milhões de anos-luz, é um objetivo da equipa, mas por agora os filtros que usam não permitem ir tão longe. Continuar a estudar as galáxias que identificaram e já observaram com recurso ao telescópio espacial Hubble é outro objetivo do projeto, batizado de “SC4K”, e cujos resultados estão disponíveis na revista científica “Montly Notices of the Royal Astronomical Society”. 

Quanto a este ser, em grande medida, mais um contributo luso para a astrofísica, nem tudo são rosas, mas a chave é andar para a frente. “Gosto de pensar que, em ciência, a nacionalidade, seja em descobertas ou capacidade de liderança, não importa, mas é sempre importante mostrar que um país como Portugal consegue fazer tão bem ou melhor que outros”, diz David Sobral, frisando que uma das preocupações do projeto foi demonstrar que é possível fazer uma grande base de observações sem financiamento específico: com o envolvimento de estudantes de doutoramento e até alunos de secundário e candidatando-se a tempo de observação nos telescópios, mas sobretudo com muito trabalho. Ana Afonso sublinha que há cada vez mais portugueses a dar cartas nesta área, mesmo que nem todos consigam ainda ficar no país, como também será, em princípio, o seu caso. “Estou a acabar o doutoramento e terei de fazer as malas.” Viena e Marselha são alguns dos destinos a que se candidatou.