Guardas-noturnos. Os homens que protegem as ruas sem ninguém dar por isso

Patrulham as ruas, casas e carros durante a madrugada. São cerca de 300 espalhados todo o país e dizem que podiam ser mais, se fossem abertos concursos. O i acompanhou dois guardas-noturnos para entender como é a vida destes homens que protegem as ruas sem que ninguém dê conta. Previnem assaltos e também entregam medicamentos.

Sexta-feira, 23h30. Perto do shopping dos Olivais, em Lisboa, a rua está deserta. Do outro lado do passeio está um homem com um carro identificado com umas placas amarelas que o denunciam imediatamente: é guarda-noturno. Fernando Rodrigues, presidente da Associação Nacional de Guardas-Noturnos, tem 64 anos e está fardado e equipado com um bastão e algemas. Começa mais uma noite de trabalho e o início do turno é sempre igual: Fernando vai à esquadra saber que ocorrências relevantes houve na zona e assina a folha de presença na PSP. Depois regressa à rua e faz a ronda, madrugada fora, na sua zona, neste caso Olivais Sul. 

“Sempre gostei de trabalhar de noite e sempre gostei do risco”, explica ao i Fernando, ao volante do seu carro particular que à noite se transforma em carro de serviço. Não é novo nestas andanças: há 33 anos que é guarda-noturno, tempo suficiente para já ter visto um pouco de tudo. “Já tive uma arma igual à minha apontada a mim a metro e meio”, lembra. É uma das suas histórias mais perigosas. Um indivíduo tinha acabado de agredir um polícia e roubado a arma deste, e pouco tempo depois fez um assalto à mão armada. Fernando foi informado da ocorrência na esquadra, mas ainda não se conhecia o autor do crime. Estava a fazer a ronda quando, ao passar no sítio da agressão, se deparou com um suspeito que tinha uma coisa na mão e o abordou. “Conhecia-o e normalmente ele não costumava usar nem uma navalha. Começou a fugir e achei esquisito, fui atrás dele”, descreve. 


Bruno Gonçalves

Quando chegaram a uma zona mais escura, o suspeito virou-se para trás e disse-lhe para pôr as mãos no ar, momento em que reparou que ele lhe estava a apontar uma arma. “Tentei evitar que ele disparasse. Nesse dia andava com um colega e ele aponta a arma para o meu colega. Ficámos na expetativa de ver o que ele ia fazer. Entretanto, ele carrega no gatilho, apontando para o meu colega, e não sai bala nenhuma. Aponta a arma para mim e faz o disparo também.” Não saiu qualquer bala porque a patilha de segurança estava ativada – foi o que os salvou. Começaram uma autêntica perseguição e, já mais à frente, conseguiram apanhá-lo.

Os tempos, hoje, são outros. Fernando vigia casas e carros, mas para além disso também faz outro tipo de serviços. Os clientes têm o contacto dos guardas e, para além de estes passarem várias vezes por noite, se a pessoa precisar de ajuda pode sempre ligar. “Vamos supor que chega aqui uma pessoa e vê um ambiente meio esquisito: pode telefonar–me, venho até ao local, a pessoa estaciona o seu carro e acompanho-a até à porta.” A compra e entrega de medicamentos é outra valência comum. Quando há uma emergência e “a pessoa não tem condições de ir à farmácia, telefona-nos, nós vamos buscar a receita médica e depois vamos entregar o medicamento”, explica Fernando.
Atuam em diferentes situações e não são só os contribuintes – como tratam os clientes – que usufruem dos serviços dos guardas-noturnos. Fernando já ajudou pessoas que encontrou na rua desorientadas, a meio da noite. “Eram para aí três da manhã e encontrei uma senhora idosa, de camisa de noite, que não se lembrava de onde morava”, recorda, completando que andou com ela a pé, a tocar de porta em porta, até encontrar a casa certa. Fernando recorda ainda uma altura em que naquela zona havia muitas roturas na canalização. Eram os guardas-noturnos que ligavam à EPAL para que as pessoas, na manhã seguinte, tivessem água.

“É preciso gostar, senão não dá”

Trabalham em colaboração com a PSP e a GNR, mas as licenças de guarda-noturno são emitidas pelas câmaras e os custos da profissão são todos pagos do seu bolso. “É preciso gostar disto, senão não dá. Isto, monetariamente, da forma que está, não dá para pagar a despesa”, desabafa Fernando.

Em termos de segurança, o cenário já esteve bem pior, pelo menos nos Olivais Sul, testemunha o guarda-noturno. “Quando vim para aqui, isto era mesmo mau, não era só fama. Entretanto, a criminalidade desceu muito – se andamos cá é exatamente com esse intuito.”

Jorge Marques também é guarda-noturno. Tem 61 anos e já está no ramo há 23. O ponto de encontro são as bombas de gasolina na Parede, passa pouco das 23h30 de uma segunda-feira. Tal como o colega, Jorge trabalha devidamente identificado, fardado e com as algemas e o bastão pendurados à cintura. “Fiquei desempregado e através de conhecimentos pedi ajuda para encontrar trabalho”, recorda. Foi assim que surgiu a oportunidade de ser guarda-noturno. Acabou por tomar-lhe o gosto e foi ficando pelo ramo da segurança. 


Bruno Gonçalves

Tal como Fernando, Jorge faz todo o tipo de serviços, desde acompanhamento dos contribuintes até casa, entrega de medicamentos ou até mesmo ajudar alguém desorientado no meio da rua. “Durante a noite encontramos pessoas de idade, com Alzheimer, que saem de casa e estão perdidas. Muitas vezes conseguimos entregá-las à família”, diz.
Mas, apesar do trabalho de proximidade, a sensação é que a clientela não tem aumentado. “No meu caso concreto não tenho muitos clientes”, partilha Jorge, considerando que isso se deve ao facto de as pessoas não estarem informadas o suficiente sobre a profissão.

Ação fora do carro

Já perto da meia–noite, Jorge estaciona o carro para ir patrulhar o perímetro de um colégio. Ao chegar, o portão está entreaberto. O guarda-noturno pega numa lanterna pequena e passa a zona a pente fino. Procura por janelas abertas, portas mal fechadas, tudo o que lhe pareça suspeito. Acaba por encontrar uma janela aberta e tenta fechá-la. A experiência é, muitas vezes, uma ajuda útil. Enquanto dá mais uma volta, Jorge conta que o último assalto que aconteceu naquele sítio foi feito por um aluno à sala de professores. O estudante roubou apenas o computador de uma professora.
Jorge volta para o carro e segue caminho. Anda por sítios escuros e conta que os apoios são poucos. Pequenas mudanças iriam ajudar a profissão, argumenta, como “a isenção do cinto de segurança” enquanto estão a trabalhar. Ou poderem reter o cartão de cidadão para que o suspeito não fuja enquanto estão à espera das autoridades. 


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Cada vez menos profissionais

Carlos Tendeiro, presidente da Associação Socioprofissional de Guardas-Noturnos, reconhece que os apoios à profissão são escassos e que cada vez há menos pessoas a exercer a profissão. “Estima-se que existam perto de 300 profissionais espalhados um pouco por todo o país”, incluindo a ilha da Madeira.

A “falta de vontade política” é apontada como a razão para a decadência da profissão. Também Fernando Rodrigues reconhece que a profissão é um recurso mal aproveitado. “Acabamos por ser uma mais-valia, mas muitas vezes não somos aproveitados”, refere, acrescentando que existem zonas onde os guardas têm saído da profissão devido ao limite de idade. “As câmaras não abrem concursos” e por isso é que há cada vez menos profissionais.

Está escrito na lei que os guardas-noturnos exercem uma atividade subsidiária e complementar à das forças de segurança do Estado, vigiando as ruas das suas áreas como forma de proteção de pessoas e bens, tendo de prestar auxílio a quem dele careça ou o solicite, bem como auxiliar as forças e serviços de segurança do Estado e proteção civil sempre que solicitado, sendo um serviço de interesse público distinto do serviço de segurança privada. O acesso à profissão deverá ser regulamentado em breve. Para já, Fernando questiona-se: “Está escrito na lei que fazemos um trabalho de interesse público. Então, se é de interesse público, o que é que nós temos?”, reconhecendo que não têm nada e que são obrigados a “pagar tudo” para sustentar a profissão. Carlos Tendeiro também reconhece que a profissão está a morrer, mas sublinha que se ainda existem guardas-noturnos é devido à população, que os quer ver nas ruas. São as pessoas a única garantia de subsistência. 


Bruno Gonçalves