MNE. Afinal não doeu nada

PS defende manutenção “da relação com a Rússia”. MNE avisa que não se preveem mais sanções e que os esforços serão focados “na sociedade civil”. Ao i, Santos Silva diz que “se a Rússia provar que não tem nenhuma responsabilidade, ótimo”. Na geringonça concorda-se: erro da guerra do Iraque não é para repetir

Não houve balde de água fria, mas houve banho de café quente. Apesar de o muro de Berlim já não estar de pé, Ocidente e Leste, direita e esquerda, chocaram, não de frente mas de lado, ontem, na audição conjunta de Augusto Santos Silva às comissões parlamentares de Negócios Estrangeiros, Assuntos Europeus e Defesa. Nos primeiros dez minutos, o resultado foi bélico e desequilibrado: o deputado António Filipe, do PCP, ia sentar-se e o deputado Pedro Mota Sares, do CDS, acabou encharcado em cafeína. 

O democrata-cristão, que transportava, solidário, três copinhos com café para os colegas consigo sentados, viu-se obrigado a ir trocar de fato após o relatado embate com António Filipe. Se, em 1989, o Partido Comunista perdeu a Guerra Fria, em 2018, saiu assim mais vencedor. O ministro dos Negócios Estrangeiros, por sua vez, mostrou-se disponível a rever essa e outras histórias. A história, antes com “H”, foi, além do pragmatismo, a justificação mais vezes apresentada para a sua decisão em análise – a não expulsão de diplomatas russos em solidariedade com o ataque químico ocorrido no Reino Unido. Para Santos Silva, hoje, as relações internacionais já não se baseiam na bipolaridade de “Ocidente” contra “Leste”, sendo, por outro lado, num contexto multipolar que as valências de Portugal “como construtor de pontes” mais se destacam. 

Mas, indo à vaca fria depois do tal café quente, o que disse realmente Santos Silva sobre a crise diplomática com a Rússia? Duas horas de coisas. E começou por uma carta. O ministro, contrariamente à véspera, na comissão de Economia, não se coibiu de dar explicações sobre o controverso tema e corrigiu até o atraso – dos 26 minutos do dia anterior para somente meia dúzia ontem. A carta que citou, do seu homólogo britânico Boris Johnson, revelava agradecimentos “à solidariedade” portuguesa e compreensão “da gravidade da medida tomada” [a chamada do embaixador português a Lisboa e o cessar de comunicações entre os chefes de missão]. 

De acordo com Santos Silva, nenhum aliado lhe manifestou qualquer “desconforto” com o facto de Portugal não ter alinhado com a Nato, os Estados Unidos da América e mais de metade da União Europeia na expulsão de diplomatas russos após o envenenamento do ex-espião Sergei Skripal, em Salisbury. “Foi uma decisão racional, bem recebida pelas autoridades britânicas”, garantiu Santos Silva, com a carta de Boris como argumento. “I do not for a moment underestimate the gravity of the decision which you have taken. I have deeply apreciated your actions and your solidarity with the United Kingdom”, reza o documento que, apurou o i, chegou às Necessidades no dia 29 do mês passado, quinta-feira. Santos Silva defendeu ainda a sua opção – de não expulsar diplomatas russos mas chamar o embaixador português – na medida em que lhe permite preservar “todos os graus de liberdade” perante novos desenvolvimentos, assim como manter os serviços consulares ao dispor dos portugueses registados na embaixada portuguesa em Moscovo. 

Prosseguindo a desdramatização, Santos Silva salientou que países como a Alemanha e a França, que expulsaram diplomatas russos em solidariedade com o Reino Unido, não pararam, no caso alemão, o futuro gaseoduto acordado com Moscovo, ou, no caso francês, a ida de Macron ao Forum Económico em São Petersburgo, este verão. 

O MNE aprofundou a clarificação da sua decisão, não descartando a chegada de “novos elementos” de informação ou até novas respostas da Federação Russa. Ao i, viria depois a esclarecer: “Não nos compete a nós dizer à Rússia o que é que a Rússia há-de fazer. A Rússia já se manifestou disponível para colaborar no quadro da Organização das Armas Químicas, tendo pedido, aliás, uma reunião” que decorreu ontem. “A Rússia diz que não tem nenhuma responsabilidade. Se a Rússia provar o que diz, seria ótimo. Vamos ver”, concluiu o ministro, que admite também haver “explicações plausíveis alternativas que não foram ainda dadas” por Moscovo.

 O PSD manifestou o seu desacordo, declarando a tomada de posição do governo como um “isolamento” do país face ao nosso “mais antigo aliado”, tendo-se quebrado “um consenso de 40 anos” no que à União Europeia e à Nato diz respeito. O social-democrata Carlos Gonçalves recordou ainda a tentativa de recrutamento de um agente dos serviços secretos nacionais (SIS) por parte da Rússia (em 2014) e as alegadas “fake news” sobre a contaminação da Base das Lajes – preocupação levantada, noutra sessão da comissão de Negócios Estrangeiros, também pelo Partido Socialista. 
 “Não estamos bem acompanhados pela Grécia, pela Bulgária”, e demais países enumerados que não se juntaram à iniciativa ocidental contra o Kremlin, considerou Gonçalves. Santos Silva, tranquilo, voltou a desdramatizar. O desacordo com a oposição, para o MNE, resume-se “à forma” e não “à substância”, dizendo que o “alinhamento estratégico” ainda consta entre os partidos do antigo arco de governação. “Eu acredito no Reino Unido. Eu acredito nos nossos aliados”, foi sublinhando o ministro, ao longo de toda a sessão, dizendo, no fundo, que está tudo bem – ou melhor: tudo como antes estava. 

Mas a política externa portuguesa, para Santos Silva, não fica pelo eixo euro-transatlântico: “A CPLP e as comunidades portuguesas” espalhadas pelo mundo (nomeadamente, “no Atlântico sul” e de “África à América Latina”) também são prioridade e pesaram na decisão mais cautelosa do MNE face à crise diplomática com a Rússia. “Foi justamente porque eu me recusei aceitar que a política externa portuguesa se confina aos dois primeiros vetores (União Europeia e Nato) que, sem nos pôr em causa, propus ao governo que adotasse uma medida que também responderia ao terceiro e ao quarto vetor (a CPLP e as comunidades portuguesas), respondeu o ministro ao PSD. 

Esquerda não faz voz grossa à Rússia Paulo Pisco, que falaria depois pelo PS, não apenas saudou a cautela do governo como a elevou. O deputado referiu uma notícia recente, que dá conta que um laboratório britânico “não conseguiu determinar a origem” do gás químico que envenenou Sergei Skripal, e afirmou que “não devemos abandonar a ideia de construir uma parceria com a Rússia”, mantendo Portugal uma postura “não confrontacional” e de “construtor de pontes”. “Há um desvio de um consenso, mas é do PSD”, acusou Pisco. 

O Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, por sua vez, partilharam um receio. Pedro Filipe Soares chamou-lhe “a tática do rebanho” e António Filipe chamou-lhe “Maria vai com as outras”. Ambos se referiam, em jeito de advertência, ao alinhamento português com os EUA e a maioria da Europa na invasão do Iraque, em 2003. Os dois partidos que suportam o executivo minoritário, nesse sentido, tornaram a apreciar a autonomia demonstrada agora pelo governo português na crise com a Rússia e carregaram baterias contra a cimeira nas Lajes em que José Manuel Durão Barroso foi anfitrião. Os deputados socialistas sorriram perante a crítica; Santos Silva chegou a mencionar diretamente esse tempo (”2003”) e essa circunstância (”Já decidimos apenas porque outros decidiam”), mas nunca Barroso. O BE e o PCP coincidiram também nas críticas aos Estados Unidos da América, colocando a potência norte-americana no mesmo patamar negativo que a Federação Russa. O Bloco acusando Donald Trump de também partilhar “fake news” e os comunistas, em questão ao ministro, sobre a credibilidade do atual presidente americano.  

Augusto Santos Silva tranquilizou a esquerda, revelando que na preparação da reunião dos ministros europeus dos Negócios Estrangeiros (dia 16 deste mês) não está previsto o reforço de sanções à Rússia, mas sim um reforço dos laços entre as sociedades civis. “Estamos mais a pensar não em novas sanções, mas em reforço dos contactos ao nível das sociedades civis”, diria depois, já em resposta ao CDS-PP. Questionado pelo líder parlamentar dos centristas, Nuno Magalhães, sobre um eventual reforço das informações  sobre a responsabilidade russa no ataque de Salisbury, o ministro revelou que as informações são ainda as mesmas que constavam nas conclusões do Conselho Europeu (de 22 de março): “Alta probabilidade” de, de facto, a responsabilidade russa existir. 

“Se nós dizemos que é altamente provável, não dizemos que é certo”, concedeu Santos Silva”, não negando, todavia, “a probabilidade alta”.