Filipa Martins: ‘Fui ao pedopsiquiatra e receitaram-me livros’

Esta conversa é sobre o último livro da escritora Filipa Martins. Na Memória dos Rouxinóis defende-se, em romance, a tese que é preciso esquecer para nos libertarmos. Uma tese que de alguma forma vimos a descobrir que está ligada à própria história familiar da autora. 

Uma família em que avó enviuvou aos 27 anos, com cinco filhos, depois do assassinato do marido. Em que a mãe começou a trabalhar numa fábrica em criança, mas que conseguiu reinventar-se e dar um futuro melhor às duas filhas. Como é possível cortar com o peso do passado e progredir? As memórias prendem-nos mas também nos encantam. Talvez por isso Filipa Martins ainda não ganhou coragem de escrever sobre o que nos conta. 

Qual foi o primeiro livro que se lembra de ter lido?

O Robinson Crusoé que me foi dado por uma professora primária. Depois lembro-me de ler vários livros que chegavam a casa pela minha irmã, nós temos seis anos de diferença. E assim comecei a ler livros que muitas vezes não eram supostamente para a minha idade.

Como por exemplo?

O O Diário de Anne Frank, Os Filhos da Droga, O Mundo de Sofia.

O último é clean, não é assim tão pesado. Se me lembro é uma viagem ao mundo da filosofia com uma criança.

Sim, mas estamos a falar numa altura que eu era uma criança que estava a entrar para o primeiro ciclo. Eram leituras desafiantes e que me obrigavam alguma introspeção. No caso de O Diário de Anne Frank criou até um episódio, que visto à distância tem alguma graça, mas que teve consequências familiares na altura. A minha mãe era uma mãe muito presente e dentro das suas limitações de tempo, porque estava a trabalhar e a estudar ao mesmo tempo. Ela uma vez encontrou um diário escrito por mim, eu estava na primária e achou preocupante, porque mostrava um tendência muito depressiva e levou-me a um pedopsiquiatra. A conclusão foi muito simples: eu estava a tentar terminar O Diário de Anne Frank e a dar-lhe um final diferente. Essa ida ao pedopsiquiatra foi importante porque ele receitou-me livros. E a partir dai eu li uma série de clássicos mais ou menos infantis: O Velho e o Mar, O Meu Pé da Laranja Lima, O Deus das Moscas.

Esse último não é propriamente um livro infantil.

Sim, mas na altura li esses livros de uma determinada forma, mais superficial e mais atenta à narrativa e depois voltei a muita dessas obras para as entender de uma outra maneira.

Acha que a literatura ajudou a construir quem é?

Certamente. Serei um produto de várias coisas, mas sou certamente um substrato daquilo que li. Acho que há duas ou três coisas que marcam o meu percurso. Tenho absoluta certeza que devo muito ao que li. 

A quê que deve mais, para além do diário que pretendeu completar.

Umas das principais coisas que a literatura me permitiu foi trabalhar a capacidade de alteridade. Perceber os outros, colocar-me no seu lugar e entender a complexidade do seu pensamento. A literatura trabalha a nossa capacidade de tolerância. Ou seja, compreendermos as personagens permite-nos entender melhor as pessoas no seu dia a dia. E isso torna-te uma pessoa mais inteligente. 

Essa ideia da tolerância como fruto da literatura leva-nos ao corolário de que os ditadores não leem romances?

Quer apenas dizer que, como leitora, o facto de ler, permite-me colocar-me nos sapatos de muitas pessoas e aprender coisas. Por exemplo, consegue-se perceber a forma como a literatura e a filosofia se podem juntar quando lê, por exemplo, Borges; consegue-se perceber a importância da forma e da palavra e como se consegue juntar realidade e fantasia, quando se lê Gabriel García Márquez, e isso amplia os nossos horizontes enquanto pessoas. Por exemplo, com Gogol consegue-se perceber, isso utilizo como escritora, como é que usando pessoas normais se consegue contar as melhores histórias. 

Mas há pessoas normais?

As pessoas normais no sentido das pessoas comuns. Ele escolhe como heróis as pessoas que não se destacaram em nada de especial. Cada escritor dá-nos elementos que nos ajudam a construir a nossa personalidade. Sou muito existencialista, não me vejo programada e determinada por nenhuma origem. E vejo isso na minha família e da forma como cresci, a capacidade que uma pessoa tem de se criar, transformar e recriar continuamente. A minha família não era uma família em que o livro tivesse importância. Se houvesse um determinismo familiar ou genético eu provavelmente não seria uma escritora.

Quando decidiu passar de leitora para escritora?

Não houve uma decisão. Essa vontade já estava latente a partir do momento em que leio O Diário de Anne Frank e quero-lhe dar um final diferente. Outro exercício que fazia era buscar diferentes parágrafos de vários autores e tentar relacioná-los com textos meus: juntava Kafka com Camus e escrevia um texto a juntar esse dois autores.

Uma barata a dizer: ‘Hoje, a minha mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem’. (risos)

(Risos) Juntei O Estrangeiro e O Processo, havia nos dois uma dimensão judicial.

Como acabava o seu Diário de Anne Frank? Havia um final feliz? Ela vingava-se? Casava e tinha filhos?

Ela mandou o Pedro às urtigas. A minha Anne Frank acabava com aquela paixão platónica que tinha desenvolvido pelo rapaz do sótão. Podemos dizer que foi um final muito pós-modernista. Ela compreendeu melhor a situação e com isso quebrou o encantamento.

Escreveu o seu primeiro livro antes de ser jornalista.

Sim, estava na faculdade. O Elogio do Passeio Público foi escrito em três meses, com o objetivo de participar num concurso literário. Foi no último ano de faculdade. Dou muito valor à edição e na altura tinha um professor de português com quem trocava impressões sobre o livro que estava em andamento. Fizemos uma aposta que se eu vencesse o Prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores ele teria de dar o livro como obra de leitura obrigatória nas aulas. Assim aconteceu. Cheguei a ir falar até com as turmas. Foi obra obrigatória durante dois anos, para o primeiro ano do curso de jornalismo. Eles faziam perguntas muito interessantes, como por que razão é que as personagens não tinham nome? Qual a razão porque morreu ‘o nosso homem’, que é uma personagem do livro. 

Este livro é uma espécie de análise do ambiente concentracionário da ditadura?

Acho que os meus livros têm um impulso político mas não são ideológicos. O que não quer dizer que não tenham uma intenção. É óbvio que, por exemplo, eu escolher um homossexual para personagem, como o faço no último livro, é uma escolha política à luz do Portugal de hoje. No caso do Elogio do Passeio Público, nunca é identificada uma data, mas todo o ambiente remete para uma espécie de fantasia do Estado Novo. Percebe-se que está em Lisboa, perto da década de 50. Em que há manifestações reprimidas, há apreensões de livros. Mas tudo isso é contado por personagens anónimas, tão anónimas que não têm nome e servem para mostrar melhor uma época, do que se a mostrasse pelas suas personagens históricas. 

Recentemente colaborou num guião com personagens históricas…

Três, a Vera Lagoa, a Natália Correia e a Snu Abecassis. Chama-se Três Mulheres remete-nos para os anos 60 e 70 e acaba quando a Primavera Marcelista começa a espalhar a sua desilusão. Mais uma vez é a vida da elite boémia e cultural da época. Tem-se alguns momentos políticos fortes, nomeadamente um que funciona como uma espécie de coluna vertebral da série: o julgamento da Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica [organizada pela Natália Correia] e publicada pelo Ribeiro de Melo, e depois há questões óbvias, como a ida dos homens para a guerra, o facto das mulheres ficarem.

São também mulheres que se afirmam numa sociedade totalmente patriarcal.

Todas elas são mulheres que não se pretendem cingir ao papel que lhes queriam dar.

É nessa altura que se dá uma grande revolução sexual no mundo, em que simultaneamente aparece a pílula e dá-se por todo o mundo a explosão estudantil e dos jovens em 1968.

A Snu Abecassis publicou até um livro sobre a pílula. Em Portugal, tanto uma coisa como a outra foram feitas dentro de casa. Vivíamos num regime ditatorial e tínhamos tido muitos momentos de repressão nas universidades, como na crise de 62, associado com a Guerra Colonial e a repressão muito dura, fez com que os ecos do Maio de 68 chegassem de uma forma mais ténue cá. Mas o mesmo não terá acontecido com a mudança no papel da mulher. A guerra levou a uma maior incorporação das mulheres no mercado de trabalho.

Nasceu depois do 25 de Abril

É verdade. Nasci com o FMI cá.

Acha que ser mulher foi algo que a prejudicou ou beneficiou?

Acho que não foi indiferente. Sou jornalista, se olhar para a estrutura das redações, apesar da maior parte dos licenciados em jornalismo serem mulheres e a maior parte dos jornalistas serem também mulheres, a esmagadora maioria dos cargos de direção são assumidos por homens. A estratificação dos lugares de poder é um resultado de políticas de décadas. Se a geração da minha mãe e da minha avó só chegaram muito tarde ao ensino superior, vai demorar tempo a chegarmos aos lugares de poder. 

Como vê movimentos como o #metoo e as manifestações contra o assédio sexual?

São movimentos absolutamente necessários. Naturalmente, há um efeito pendular, pode até haver excessos para corrigir uma situação degradante que se perpetua há muito tempo. Mas a verdade é que se um corpo físico estiver habituado a um único movimento, que foi durante séculos a subalternização das mulheres, para que haja uma correção tem de haver um efeito pendular e um movimento de força muito superior. Para corrigir o que foi feito é preciso que haja movimentos como o #metoo, julgamentos em praça pública, denúncias de casos que aconteceram há 20 ou 30 anos, acabar com carreiras de pessoas, para que daqui a 10 ou 15 anos, na geração da minha filha, isso não aconteça.

É interessante verificar-se que essas denúncias de assédio e abuso são transversais a toda a sociedade

As questões de discriminação de género não são de classe social. Quando em Portugal uma mulher não podia sair do país sem autorização do pai ou do marido, isso mostra que essa discriminação era transversal. Na verdade, olho para a minha família e acho que muitas vezes do ponto de vista da circulação e liberdade sexual, às vezes as mulheres dos estratos mais baixos até podiam ter uma maior liberdade.

Porquê?

Constato isso pela minha família. A minha avó materna casou muito cedo e enviuvou muito jovem. Desde muito nova, aos 27 anos, teve que ser chefe de família, sem saber ler nem escrever, tinha na altura cinco filhos, e foi trabalhar para as minas de carvão, e não sabia quem era o pai dela, nem a mãe. Ela desde muito cedo, com as dificuldades inerentes de uma viúva, órfã e mãe de cinco filhos, teve que escolher o seu caminho. Ela era de Fujaco, uma aldeia perto de São Pedro do Sul, uma das aldeias que começaram a surgir à volta das minas. O marido dela era capataz e foi assassinado. 

Uma história e peras, nunca escreveu sobre ela?

Esta história não. Nunca escrevi sobre a minha família. Acho que ele foi assassinado por aparentemente ter apanhado alguém a desviar minério. E a minha avó , que era supostamente a mulher mais rica da aldeia porque tinha um minimercado, quando o marido dela, que não era o meu avô, morreu, percebeu que estava cheia de dívidas. Ela própria teve que ir trabalhar para a mina, com 27 anos e cinco filhos. E aí recebeu as represálias do contexto, não só da pobreza extrema, como da vulnerabilidade de uma mulher num trabalho muito duro e de homens. A minha avó já morreu, morreu com Alzheimer, e foi sempre muito reservada a falar sobre a sua vida. 

Mas de que maneira ela era mais livre do que as pessoas mais ricas?

Ela não tinha um dono. Não tinha o pendor sobre ela de um marido. Mas talvez tivesse o condicionamento da Igreja, talvez por isso tenha pegado nos filhos e ido para Lisboa. Mas também era produto do seu meio social. Casou uma filha de 16 anos, a conselho do padre da aldeia, com um rapaz de Lisboa, porque lhe tinham dito que o rapaz ‘tinha o melhor dela’. E por isso devia casar. Na altura, não havia possibilidade de telefonar a todo o momento, fê-lo porque recebeu uma carta e aí assinou de cruz o casamento da minha tia, por influencia do padre. 

A sua mãe, quando a família veio para Lisboa, começa a trabalhar aos 12 anos, não é?

A minha avó veio trabalhar para casa de pessoas em Lisboa, tinha a minha mãe cinco anos, que ficava em casa a tomar conta dos irmãos mais novos. Eles viviam num bairro ilegal em Alfornelos, que entretanto foi derrubado para ser construído a chamada Colina do Sol. A minha mãe começou a trabalhar aos 12 anos, no primeiro dia de trabalho caiu da pendura do elétrico e esfolou os joelhos. Subiu as meias para disfarças. Mas depois passou o dia a apanhar alfinetes de joelhos, porque as crianças, como eram mais pequenas e tinham mãos e braços pequenos eram usadas para ficar por debaixo das máquinas de cozer para apanhar alfinetes. Trabalhou muitos anos, cerca de 18 anos. Até a segunda geração de patrões ter falido a fábrica. Esteve fechada em greve na fábrica durante duas semanas para exigir que os donos da empresa pagassem à Segurança Social a parte dos trabalhadores que estava em falta. E os trabalhadores conseguiram isso. 

Como saiu tão reacionária e beta com essa vida (risos)?

Isso é uma pergunta? (risos). Isso é um juízo de valor, não sei se o jornalismo permite isso.

Sim, sim, isto é uma conversa.

Então não concordo nada. Não sou nem reacionária nem beta.

Esse tom de voz meio anasalado e afetado já havia em casa? Normalmente essas camadas sociais não foram mandatárias da juventude de Passos Coelho.

Não acho nada disso em mim (risos). Está a falar de política. Para mim esquerda e direita fazem muito pouco sentido. E fazem cada vez menos sentido. O meu pai era sindicalista da UGT, a minha mãe nunca teve nenhuma ligação política e sindical, e tem uma história de vida extraordinária. E uma das principais coisas que me ensinou foi a lição pelo exemplo: dependes principalmente de ti para mudares a tua condição. É através do trabalho que podes mudar a tua vida e das pessoas que te são queridas. Uma das principais lições que ela me deu foi a incapacidade de guardar rancores. É normal pessoas que têm uma vida dura, como ela teve, ficarem rancorosas ou acharem que os outros lhes devem algo, porque foi sujeitada a situações muito complicadas na vida. E ela nunca fez isso.

Não acha que a sociedade deve algo à sua mãe porque a colocou em situações de grande injustiça?

Acho que o Estado deve proteger aqueles que à partida têm menos capacidade de autoproteção. E obviamente que a sociedade felizmente evoluiu muito. A minha geração foi a primeira da minha família que teve acesso ao ensino superior. A minha mãe estudou a trabalhar, e tirou o 12.º ano, quando estava grávida de mim. Mas ensinou-me que apesar do seu ponto de partida conseguiu mudar e recriar-se. Independentemente daquilo que a sociedade te dá, o teu esforço é fundamental.
Não sou militante de nenhum partido. Não sou nem de esquerda, nem de direita. Para dar um exemplo, nas últimas autárquicas votei em três partidos diferentes. O quê que me influência no momento da escolha? É fazer uma análise o quê que do ponto de vista da sociedade é necessário naquele momento. E que políticas devem ser tomadas. E tendo em conta os dois partidos que têm governado, a tua escolha é absolutamente limitada. E muitas vezes é uma questão de criar contrapoderes. É necessário criar condições para que haja escolhas ponderadas. Eu faço uma decisão racional do meu voto porque sei que é necessário existirem forças contrárias. Sou uma pessoa pouco ideológica. Acho que as ideologias tão muito próximo das utopias, e elas tornam-se rapidamente distopias. Sou pragmática.

Não será tecnocrática? Não acredita que sonhar com algo melhor nos faça ultrapassar as barreiras da realidade? Foi preciso séculos de gente a sonhar com o fim da escravatura e gente como Rosa Parks que não aceitou a realidade, para se diminuir a discriminação racial, por exemplo. 

Acho que optar por soluções racionais a nível da sociedade permite-nos obter melhores resultados. E muitas vezes os sonhos irreais tornam-se pesadelos. 

Indo ao seu livro, a tese, não fazendo spoilers, é que é preciso esquecer e perder a memória para evoluir.

Sempre trabalhei a questão da memória. Nos primeiros livros tratava-se de uma memória mais histórica e nestes dois últimos, nomeadamente neste, A Memória dos Rouxinois, a memória biográfica dos protagonistas da história. Aqui o que faço é criar um equilíbrio entre memória e esquecimento. Na literatura e em geral, a memória sempre foi considerada o bem mais precioso da humanidade: o que nos separa dos animais, projetar o futuro, recordar as coisas. Mas do ponto vista clínico há tantas vantagens em esquecer como em lembrar. É tão nefasto ter uma hiper-memória como ter Alzheimer. Isso ao nível das pessoas como das nações. Portugal sofreu durante séculos de andar a recordar a época dourada dos Descobrimentos. Estivemos presos naquela altura sem sermos capazes de nos reinventar. Em relação à nossa memória pessoal, é importante que sejamos capazes de esquecer para evoluir e conseguirmos obliterar memórias que são tão marcantes que nos prendem. O esquecimento pode ser metafórico, pode ser muitas vezes não sobrevalorizar as coisas. Como a minha mãe que nunca se sentiu diminuída e limitada pelo seu passado, e sempre trabalhou sobre ele.