Quando a ciência roubou à arte o primado na visão do fim do mundo

Enquanto a ciência acompanha de perto a extinção das espécies, mesmo a arte mais fútil pode tornar-se inestimável como último olhar sobre o Planeta azul

Hoje, já não somos apenas seres a quem a morte dá cerco isoladamente. Há algo de mais decisivo e aterrador a impor-se no horizonte das nossas expectativas de vida. Se nenhuma era deixou de entreter cenários de danação, se as previsões de catástrofe mais mirabolantes emprestaram fôlego a sumptuosas experiências estéticas, não há como contornar o facto de aos sonhos e toda a ficção restarem poucas forças depois de noites mal dormidas, a cabeça cheia de pesadelos.

As mais afáveis mentiras que nos contamos não sabem já o que fazer para amenizar os contornos da verdade. Nas últimas décadas, a ciência parece ter subtraído à arte os seus privilégios no que toca a previsões apocalípticas, mas, na frieza das suas observações, nunca adoptou aquele grau de mediação estética que permite estebelcer uma negociação com quem recebe a notícia. O fim do mundo é actualmente uma hipótese tão clara que nos embriaga até ao estupor.

Na primeira década deste século, quando a revista “Science” publicou o primeiro de uma série de estudos que, partindo da análise de centenas de fontes, têm reincidido na conclusão de que estamos à beira de um episódio de extinção em massa da vida nos oceanos, a notícia, que ciclicamente reemerge, não faz mais do que produzir um efeito de suspensão da crença no calafrio que a realidade nos serve. Já não vivemos sintonizados com o decurso dos eventos cruciais do nosso tempo. Vivemos hoje expulsos da realidade.

À medida que se ultrapassava aquele ponto crítico em que deixou de ser possível negociar condições com o ciclo destrutivo em que embarcámos, a realidade foi-se-nos tornando estranha, até insolente. Quando hoje nos sentimos vulneráveis aos efeitos de uma era dominada pela pós-verdade, isso devia ser encarado como indício de uma transformação mais profunda na forma como aderimos, ou não, a noções inconvenientes. Como uma geração pirralha e estragada de mimos que de uma vez por todas atirasse o prato da sopa ao chão e gritasse: “Nem mais uma colher para estas bocas!”

Este fenómeno de suspensão da crença em provas confirmáveis não começou no plano político, mas está em linha com uma forma de condicionamento da atenção e da consciência para que a sociedade como um todo se agarre a uma dúvida que abdicou de um certo grau de razoabilidade para se tornar uma estratégia de negação e alienação. E isto foi incutido ao longo das últimas décadas, à medida que se impunha a sociedade da informação, de forma a filtrar as notícias catastróficas, prevenindo um choque ao nível dos fatores de produção e lucro da sociedade industrial. Esta foi uma máquina projetada para acelerar até ao infinito. A criação de um animal utópico, que não se preocupou em incorporar um botão que a desligasse.

Hoje, falar em fim do mundo serve apenas para premir aquele botão que neutraliza a capacidade de reação das pessoas. Só os nossos pesadelos nos são fiéis. É no sono que já todos nos apercebemos da inquietação dos pássaros. Revoadas anunciando que a concatenação de desastres naturais é um aviso claro. É intimamente que ouvimos o concerto desse terrível prenúncio, como uma música longínqua, que a noite traz até nós. Este é o grande paradoxo do nosso tempo. O facto de estarmos mais despertos quando dormimos, quando os sonhos nos dizem o que nos espera, por essas serem as únicas horas do dia em que não estamos sufocados pela pressão da atividade produtiva, pelo conteúdo aspiracional de um estilo de vida que exerce sobre nós uma pressão terrível no sentido de encenarmos uma imagem de sucesso, documentando e celebrando – em sintonia com as celebridades que dão rosto ao capitalismo – nas redes sociais a nossa conformação com os ideais consumistas. 

De resto, como António Guerreiro notou comentando um extensíssimo artigo do astrofísico Raul Cerveira Lima, “Deixar a Noite Ser Noite”, que ocupou algumas páginas do suplemento de domingo do “Público”, em 2017, “impedir que a noite seja noite tem sido o desígnio alcançado com grande eficiência pelo capitalismo contemporâneo. Dessa conquista, tratou um ensaísta e crítico de arte americano, chamado Jonathan Crary, num livro de 2013 intitulado ‘24/7. Late Capitalism and the Ends of Sleep’. Crary descreve e analisa este mundo que permanece em funcionamento vinte e quatro horas durante os sete dias da semana, para que a produção e o consumo não tenham interrupções. Para conquistar o tempo inútil do sono, para erradicar o shabbath e impor um tempo homogéneo sem feriados nem dias festivos, impôs à noite luzes cada vez mais fortes. A extinção da noite é um fenómeno das grandes metrópoles, como Nova Iorque, difundido como uma tendência universal.”

Qualquer verdade cujo conteúdo hoje ponha em causa os nossos desejos, ambições e projetos é sentida como “uma imposição violenta/ uma cutilada atroz porque atrozmente desleal”. A morte devia ser a menor das nossas preocupações num tempo em que cerca de um terço das espécies comestíveis de peixes no mar declinaram em mais de 90%. E o problema não se liga meramente a uma escassez de peixes para nos matar o apetite. Muitas destas espécies marítimas são responsáveis por filtrar as toxinas das águas e preservar a integridade das linhas costeiras. O próprio aspeto azul que o planeta tem, se visto do espaço, pode tornar-se uma velha memória, se as espécies que impedem a proliferação de algas como aquela que produz a chamada maré vermelha sucumbirem. O pior é se formos a última geração que viu o mundo como ele foi desde tempos imemoriais.

Perto disto, a questão da nossa mortalidade torna-se simplesmente fútil. Desde logo porque teremos posto em causa a própria ideia de transmissão de um legado de séculos – cultural e societal. Devíamos, talvez, pesar cada gesto nosso, cada ação, como condenados, e perceber que a arte que produzimos e tomamos muitas vezes por redundante, estéril e inconsequente, será encarada com uma insuportável nostalgia pelas gerações que se seguirem. Uma memória de tudo o que se perdeu disputada por aqueles que irão recriminar-nos, olhando para as coisas que fizemos, não tanto com inveja do nosso talento, mas sobretudo por termos sido os últimos a gozar a vida num planeta cuja abundância durante séculos se explicou como sendo a dádiva de um ser todo-poderoso, e benevolente.