O livro como objeto decorativo

De início, pareceu-me quase uma heresia. Mas, à medida que ia compondo as velhas lombadas para produzirem um belo efeito na estante, este pensamento foi-se transformando em evidência: os livros são objetos com um alto valor decorativo. 

Haverá coisa mais bonita do que uma biblioteca com as estantes bem recheadas? Inversamente, uma casa sem livros à vista será sempre uma casa despida e pobre do ponto de vista estético e até do conforto.

Mas vamos com calma. Reconhecer esse valor decorativo não é o mesmo que dizer que a função dos livros começa e acaba aí, nada disso. Aliás, sempre me pareceram caricatos aqueles decoradores ou ‘patos-bravos’ que vão a um alfarrabista e pedem livros ao metro para darem um verniz de cultura às suas salas de estar. Pouco lhes importa se são livros técnicos, romances, tratados de medicina ou manuais de engenharia civil completamente obsoletos. Pouco lhes importa se são em francês, em alemão, em latim ou em coreano – ninguém os vai abrir, e ainda menos ler, portanto… Desde que tenham belas encadernações, cumprem o seu papel na perfeição.

Esta ideia de comprar livros ‘para inglês ver’ traz-me à memória, de resto, uma passagem deliciosa do livro ‘Amor Mundi: Days of Bombardment and Martial Law in Belgrade’, do autor e cineasta sérvio Dušan Veličković. «Recordo um episódio semelhante da minha infância, quando Lenine entrou repentinamente em nossa casa. Foi no início da década de cinquenta, na época em que o meu pai se filiou no Partido Comunista. Então, entraram em nossa casa trinta e cinco volumes com uma grossa encadernação de pele, com um relevo que representava uma cara dentro de um círculo. Até às escuras, bastava passar com os dedos pela capa para reconhecer a cabeça calva e o queixo pontiagudo daquela figura. Mas Lenine não vinha para ser lido. As suas obras completas ficavam para ser vistas e expostas em lugar de destaque na nossa sala».

Naquele caso, os 35 volumes da obra completa de Lenine cumpriam uma função exclusivamente decorativa. Mas seria a mesma coisa se, em vez dos livros reais, estivesse lá apenas uma fachada oca, um autocolante a imitar um livro ou uma lombada sem o miolo?

Claro que não. Oapelo decorativo do livro impresso é indissociável de haver milhares e milhares de letrinhas escritas por detrás daquela lombada. E, claro, o facto de a qualquer momento se poder pegar naquelas palavras adormecidas e ressuscitá-las através da leitura faz parte do encanto.