Quarto com vista sobre o Tejo

Ninguém pode ser tratado assim. Nem os doentes, sejam crianças, idosos ou de meia idade, podem não ter cuidados dignos. Nem os extraordinários profissionais como os que temos, médicos, enfermeiros e auxiliares, podem ser obrigados a trabalhar em condições desumanas e degradantes.

Entrou ao fim da manhã nas urgências de Otorrinolaringologia do Hospital Egas Moniz, na Junqueira, entre Belém e Alcântara. Vinha amparada pela filha, sem dizer palavra, sofrimento estampado no rosto marcado por mais de seis décadas de dura vida, corpo franzino, mãos a tremer e pés a arrastar.

A enfermeira amparava-a também agora, do outro lado, e as duas, filha e enfermeira, acomodam-na na cadeira que haveria de ser seu poiso de tratamento durante toda aquela tarde de quinta-feira.

Ao lado da cadeira onde eu já estava, e haveria de ficar até à noite, também em tratamento e a aguardar vaga na enfermaria onde haveria de ser internado.

Aquelas urgências não tinham um lugar vago, os médicos não paravam, enfermeiros muito menos, auxiliares também não.

Olhando em redor, porém, tudo parecia controlado, organizado, sem ninguém por acudir ou deixado à sua sorte.

Sorte a minha, certamente, no meio do infortúnio da doença ter ido ali calhar, naquela quinta-feira, àquela hora.

Naquelas horas recordei-me da primeira vez que entrei no Egas Moniz, faz agora precisamente 40 anos.

Vim à capital de propósito para ser operado pelo Dr. Robles de Oliveira, que tinha consultório em Vila Franca de Xira, com o seu colega Simões Vieira, que tirara Medicina em Coimbra no curso de minha Mãe (nas malhas que a vida tece, veio a dar-se a coincidência de a filha de Robles de Oliveira, Teresa, vir a ser minha colega, e amiga, na Faculdade de Direito de Lisboa, do primeiro ao último ano, e, depois, no Expresso e no SOL).

Lembro-me bem da vinda à cidade, com minha Mãe, para tirar um quisto. E do Hospital Egas Moniz, cujas instalações me impressionaram.

Era um edifício espetacular, com uma localização soberba, corredores e quartos alinhados e uma vista deslumbrante sobre o Tejo. E o Instituto de Medicina Tropical ali ao lado, com a Feira Internacional de Lisboa (hoje Centro de Congressos da AIP) e a Cordoaria Nacional em frente.

40 anos depois, confesso que ainda me impressiona. Já não me parece enorme, mas impressiona.

E impressiona-me pela dimensão da obra, pela qualidade, de tudo.

Como podem aquelas camas durar tanto tempo? E como será possível ainda funcionarem tão bem com tanto uso?
E as mesas de apoio? Que servem de armário, prateleira, dão para comer e até de apoio e suporte na leitura (basta meia volta num mero arco de ferro que tranca no batente e o tampo guinda-se em inclinação ideal para suportar o livro, a revista, o jornal ou o tablet – que também lá fica bem, apesar de quem inventou tão simples mesinha estar muito longe de imaginar o que tal seria). Simples, mas muito práticas e extraordinariamente duradouras.

E tudo se encaixa e se reduz ao mínimo espaço possível, que os quartos não são grandes, nem precisam de o ser, mas são confortáveis e, sobretudo, têm uma vista absolutamente deslumbrante.

O que mais me impressiona no Egas Moniz, já me tinha impressionado faz 40 anos, é o que tem por subjacente a sua localização. Porque não há melhor. «Se vai cá ficar, aproveite a vista. É linda, sobretudo lá no oitavo andar», recomenda-me a auxiliar já com avançada idade.

É linda, de facto, aquela vista.

Quem trata e cuida da saúde de outrem merece-a. Quem com o infortúnio de estar doente, obviamente, também.

Porque faz bem à alma.

Ora, vai para mais de um século (Abril de 1902) que D. Carlos mandou instalar no edifício da Cordoaria Nacional o Hospital Colonial (para civis e militares que regressassem do ultramar com infeções ou doenças ditas tropicais) e a Escola de Medicina Tropical. Anos mais tarde, o Estado adquiriu, mesmo ali ao lado, a Quinta do Saldanha, na Junqueira, onde foram construídas e sucessivamente ampliadas e modernizadas, desde 1925 até 1970, as atuais instalações.

Ou seja, faz meio século quase sem investimento em infraestruturas!!!

Aquelas horas nas urgências de otorrinolaringologia e de oftalmologia do Egas Moniz foram uma experiência verdadeiramente extraordinária. Como os dias seguintes de internamento.

A equipa de médicos de urgência, todos jovens, impecável. A equipa de enfermeiros e de auxiliares, de jovens, menos jovens e já não jovens, incansável.

Os relatos dos últimos dias do caos nas urgências do Hospital da Maia ou na unidade de pediatria do S. João do Porto e de outras unidades hospitalares do Serviço Nacional de Saúde não tem nada a ver com esta realidade. Mas podiam ter. O quadro de médicos e de enfermeiros está abaixo do limite (por baixas de médicos, enfermeiros e auxiliares esgotados) e a ordem, ao que parece, é de não substituição por falta de cabimentação orçamental.

«Somos duas para 34 doentes, toda a noite. Não é fácil. E há situações em que não é mesmo possível atender a todos», lamenta uma enfermeira.

Alberto Pereira, também enfermeiro, caminhante, aproveita a hora de almoço para se inspirar no banco que dá para a copa da árvore mais bonita do jardim do Hospital. «Já lá comecei três livros». Depois dos seus Poemas com Alzheimer. Alberto tem um novo livro de poesia – Viagem à Demência dos Pássaros – selecionado para os finalistas do prémio literário Glória de Sant’ Anna 2018.

O meu parceiro de quarto, por coincidência também de nome Alberto, um sexagenário com uma massa na garganta que lhe dificulta a respiração e impede a ingestão de alimentos,  elogia quase tanto os dotes de escrita do seu homónimo como a atenção, cuidados e profissionalismo do pessoal clínico e não clínico do Egas Moniz.

O sol já nasceu e o bar/esplanada no edifício da frente já deve estar a abrir. Escapamo-nos os dois para tomar um cafezinho. Chove. Abrimos dois sacos para nos servirem de impermeáveis. O que vale um cafezinho pela manhã…

Combinamos os dois não falar do outro vício comum que ambos temos agora de vencer. E não abrimos a boca. «Sim, porque mais vale sairmos daqui num saco aberto do que num saco fechado». Rimos.

Sem graça nenhuma é o estado do SNS – uma das mais extraordinárias funções do Estado –, que não pode, de jeito algum, deteriorar-se.

Haja rigor, exigência e mão de ferro, sobretudo com os lóbis (em particular, do equipamento) mas cuide-se do SNS. Situações como as das urgências da Maia ou da pediatria do S. João são inaceitáveis.

Ninguém pode ser tratado assim. 

Nem os doentes, sejam crianças, idosos ou de meia idade, podem não ter cuidados dignos. Nem os extraordinários profissionais como os que temos, médicos, enfermeiros e auxiliares, podem ser obrigados a trabalhar em condições desumanas e degradantes.

Haja saúde!!! E dinheiro onde não pode faltar, porque é básico e essencial.