‘Não é possível manter a paz com uma fronteira’

Vinte anos depois do Acordo de Sexta-Feira Santa, a professora Margareth O’Callaghan garante que as negociações do Brexit estão a pôr demasiada pressão na paz norte-irlandesa.

O Acordo de Sexta-Feira Santa, que pôs fim a 30 anos de conflitos violentos entre independentistas e lealistas na Irlanda do Norte, assinalou esta semana 20 anos e se as suas bases continuam sólidas, a saída do Reino Unido da União Europeia está a pôr à prova essa solidez, ameaçando voltar a desestabilizar uma ilha dividida que se habituara a estar separada no papel, mas unida na prática, numa Europa com livre circulação e sem fronteiras visíveis para atrapalhar.

«O Brexit está a pôr muita pressão no acordo», explica ao SOL Margareth O’Callaghan, investigadora do Centro para a Política Irlandesa da Universidade de Belfast. Para a professora «não é possível manter a paz atual na Irlanda do Norte com uma fronteira» real a dividir as duas Irlandas.

«Uma fronteira física óbvia seria um desastre» para a paz. «Na atualidade, quase nem se nota que se está a cruzar uma fronteira. Não tem praticamente visibilidade», afirma, mas o mesmo já não se poderá dizer do que virá aí, num futuro pós-Brexit, se Londres e Bruxelas não conseguirem chegar a acordo sobre a situação particular da Irlanda do Norte neste contexto.

Cinco ex-ministros britânicos para a Irlanda do Norte assinaram esta semana uma carta aberta publicada no jornal The Times a alertar para os perigos que uma fronteira irlandesa poderá trazer para a paz na ilha.

«Impor uma fronteira rígida entre o norte e o sul em resultado do Brexit romperia este acordo, perturbaria os equilíbrios políticos que lhe estão subjacentes e anularia o consentimento popular que o sanciona», lê-se na carta que mereceu o apoio de Peter Mandelson, John Reid, Paul Murphy, Peter Hain e Shaun Woodward, políticos do Labour que serviram no Governo britânico como ministros para a Irlanda do Norte.

Margaret O’Callaghan concorda com a ideia expressa na missiva, não considerando que se trata de uma pressão política para forçar uma fronteira mais simbólica que efetiva. Apenas uma constatação do perigo que esta negociação pode trazer.

A professora da Universidade de Belfast é muito crítica quanto ao papel que o Partido Unionista Democrático (DUP) está a desempenhar atualmente como garante da maioria que Theresa May precisa para governar no Reino Unido. E da dificuldade que isso traz à negociação da saída da União Europeia (UE). Porque, por exemplo, um futuro onde a Irlanda do Norte e o Reino Unido tenham formas de relacionamento diferentes com a UE é muito mais complicado com o atual peso do DUP em Londres: «Penso que os unionistas se oporiam muito a essa solução».

Arlene Foster, a líder do DUP , que é favorável ao Brexit, afirmou-o no congresso anual do partido, no final de novembro: «Não apoiaremos nenhum acordo que crie barreiras ao comércio entre a Irlanda do Norte e o resto do Reino Unido ou qualquer sugestão de que a Irlanda do Norte, ao contrário do resto do Reino Unido, terá que espelhar os regulamentos europeus».

Para Margareth O’Callaghan, o poder obtido pelo DUP nas eleições britânicas de junho do ano passado veio perturbar todo o processo do Brexit em relação à Irlanda do Norte. O facto de Theresa May ter ficado dependente, para governar em maioria, dos deputados do DUP, deu a este partido «uma quantidade vergonhosa» de poder nas decisões sobre o futuro da Irlanda do Norte, refere a professora.

«Como é que o Governo britânico pode ser um garante do Acordo de Sexta-Feira Santa se depende de um dos ‘lados’ para governar?», pergunta a investigadora, que atualmente está a escrever um livro sobre a política na literatura irlandesa.

Margareth O’Callaghan critica David Trimble, presidente do DUP e antigo primeiro-ministro da Irlanda do Norte, que acusou esta semana o atual Governo irlandês de contribuir para acirrar ânimos na Irlanda do Norte ao insistir num estatuto diferente para o território depois do Brexit. «A única coisa que poderá provocar os paramilitares lealistas são as coisas parvas que o atual Governo irlandês diz sobre a fronteira e a questão constitucional».

«O Governo irlandês não anda a dizer coisas parvas» e «Trimble pode ser visto como estando a incitar à ação tanto como está a alertar para isso», afirma a professora irlandesa, para quem o que está a acontecer hoje é que o equilíbrio de poderes entre os unionistas protestantes e os católicos pró-irlandeses foi alterado. «Mas isso não dura para sempre», lembra.

O que acontece é que as negociações entre o Reino Unido e a UE arrastam-se, num progresso muito lento, sem que o Governo de Theresa May apresente uma alternativa para a questão da fronteira irlandesa. Isto a um ano da concretização do Brexit.

«Estou preocupada. Muito preocupada. A declaração de David Davis [o ministro britânico para o Brexit acusou o Sinn Fein de estar a a influenciar a posição do Governo irlandês e a dificultar as negociações com a UE] é tão errada como muito preocupante», afirma a investigadora.

A professora da Universidade de Belfast diz ainda que a tensão atualmente existente «não é sobre a religião», apesar da divisão histórica entre pró-britânicos protestantes e os independentistas católicos. «Foi sempre sobre igualdade e duas identidades nacionais – britânica e irlandesa. Um legado do longo domínio britânico na Irlanda».