Miranda Calha. ‘O PS apoiar a recandidatura de Marcelo é uma questão natural’

Mantem algumas críticas à Defesa, mas elogia António Costa. Para o mais antigo deputado do Parlamento, o trabalho do primeiro-ministro torna inconcebível não ter maioria em 2019.

Júlio Miranda Calha é eleito para a Assembleia da República  desde a Constituinte, ainda que tenha ocasionalmente suspendido o mandato para servir como secretário de Estado. Já passou pelas pastas do Desporto (com vitória olímpica relatada nesta conversa), da Administração Regional e também da Defesa. Hoje, é vice-presidente da Comissão Parlamentar dessa última área, onde deixa também algumas críticas a este Governo. Para 2019, prefere falar de maioria absoluta a falar em Bloco Central ou ‘geringonça’, mas entre os dois males venha o primeiro. A seu ver, «dificilmente»  Mário Soares, teria feito uma solução do género. E reconhece que o apoio indireto que o PSD deu ao fundador do PS para o segundo mandato presidencial pode ser correspondido, desta feita para o segundo mandato de Marcelo Rebelo de Sousa. 

O homem que fez a reforma agrária de descapotável e sofreu um atentado às portas de casa prefere falar de futuro a relembrar o passado e gosta de uma boa discussão sobre atualidade. Não tem data para sair da política como não tinha planos para «ir ficando». Quando o SOL lhe perguntou por um horizonte respondeu com uma só palavra: Europa. Como destino de futuro comum.

Portugal deveria ter expulsado diplomatas russos ou fez bem em ficar de fora da maior ação concertada do Ocidente contra Moscovo desde a queda do Muro?

Pessoalmente, eu acompanharia aquilo que foi o sentido de solidariedade afirmado por esses países em relação ao Reino Unido. Posso compreender que haja algum tipo de interrogação sobre a maneira como o processo está apresentado – aliás, nós hoje sabemos que ainda não há uma exposição forte em termos de provas sobre esta matéria. Mas de qualquer modo houve ali um sinal muito interessante, que foi um sinal de solidariedade dos países da NATO ao Reino Unido. Eu acho que esse sinal… escapou-nos.

Há um paralelo entre esse sinal ter ‘escapado’ a Portugal e a entrada tardia na PESCO [cooperação de defesa europeia] que, na altura, o senhor deputado criticou? Estamos outra vez ‘fora do pelotão’?

Como se costuma dizer, não há duas oportunidades para se causar uma boa primeira impressão… Com esse caso que referiu [da PESCO], eu, na altura, fiquei estupefacto que Portugal não estivesse na linha da frente em relação a essa matéria. A nossa identidade e o nosso passado correspondem a uma presença sempre ativa e liderante em todos esses processos. Tudo aquilo me deixou um pouco estupefacto pela maneira como se passou… Ficarmos na corda bamba, ligados a dois ou três países menos alinhados. E, atenção, não é uma questão de serem países menores – porque cada país é um país -, mas ficarmos ligados a países cujas opções não eram as normais em termos da nossa democracia, deixou-me muito surpreendido. Afastou-nos um pouco daquilo que era o nosso pensamento sobre esta matéria. E estas são matérias que exigem um pensamento efectivo, coerente, ou não conseguimos dar uma perspetiva de futuro ao país. Você pergunta-me: de que lado é que nós estamos? E eu respondo-lhe: nós estamos do lado ocidental. Não tenho dúvidas sobre isso. E não podemos colocar em causa esse lado ocidental.

Ao não expulsar diplomatas russos voltámos a não estar do lado certo?

A questão não se pode resumir a expulsar ou não expulsar diplomatas russos. É preciso antes perguntar: qual é atitude a ter num contexto destes? Queremos ou não estar ao lado dos nossos aliados?

Este relativo recuo em relação à proximidade habitual aos nossos aliados dever-se-á a quê?

Eu não quero dar explicações sobre algo que não sou eu que tenho de explicar… Para mim, o importante é que fica essencialmente a constatação de um facto. Não gostei da situação em termos da PESCO e confesso que coloco interrogações em relação a esta situação de agora [face a Moscovo]. Há expressões de sinais que nos apontam a outro sítio. Nestas leituras é evidente que os sinais não nos colocam bem naquele que é o nosso posicionamento estratégico. As coisas aconteceram e aconteceram dessa maneira… Às vezes, há explicações muito sofisticadas, mas não há nada como os sinais dados. E os sinais são estes. E os sinais deixam-me algo perplexo. A questão da expulsão de diplomatas russos [pelos nossos aliados] até pode não ter sido a solução melhor, mas era possível ter proporcionado um sinal mais claro da nosso posição. Não só chamar o embaixador [português] de lá, mas também chamar o embaixador [russo] cá. É fundamental mostrar que o nosso lado é o lado dos nossos aliados. Esta primeira prova deu um sinal contrário àquilo que nós queremos, àquilo que nós somos. Era preciso uma prova inequívoca.

Receia que hoje os nossos aliados olhem para Portugal como um ponto de interrogação na arena internacional?

Pois… pode acontecer isso… E não seria positivo.

Sendo um europeísta convicto, como é que viu a ascensão de Emmanuel Macron em França?

Foi um momento muito interessante, que colocou diversas correntes de opinião em confronto. O resultado de Emmanuel Macron foi extraordinário porque ele confrontou as teorias ligadas à direita e não teve medo de nenhum de afrontá-las em vez de absorvê-las, como aconteceu com alguns partidos europeus, ao tentarem manter os seus votos. Macron, pelo contrário, teve a coragem de enfrentar essas correntes de opinião de forma decidida e direta. Isso é muito importante para a afirmação da Europa. Sobretudo, mostrou que a divisão entre direita e esquerda não existe: o que existe, neste momento, são personalidades que em cada circunstância conseguem incluir dentro de si as boas ideias para o futuro da sua sociedade. Mário Soares também tinha esse lado extraordinário.

Se eu lhe perguntar se é de esquerda não me diz que sim?

Não digo nem que sim nem que não, digo que sou de centro-esquerda, que é aquilo que é normal [risos]. O PS é um partido popular, não é um partido populista. Agrega os diversos setores da sociedade. Foi assim que se afirmou e é essa a sua cultura.

Quando o Governo atual fez um ano, deixou três preocupações: a primeira sobre o maniqueísmo, a segunda sobre a inércia e a terceira sobre o radicalismo. Mantém essas preocupações?

Devo dizer-lhe que não tenho razões para manter essas preocupações. Ainda ontem o ministro das Finanças deu uma entrevista em que afirmava qual era o caminho a seguir. Nós tivemos bons resultados em termos económicos, grandes resultados financeiros e isso mostra que estamos no caminho certo. Há reações contrárias a esse caminho, claro, o que terá a ver com a proximidade às eleições do próximo ano. Este é um caminho que foi positivo, ainda que algo no fio da navalha, mas a verdade é que se encontrou um equilíbrio suficiente para manter os nossos compromissos europeus e, ao mesmo tempo, atender a carências sociais que urgia resolver. Se houve necessidade de tomar medidas de austeridade no passado, o certo é que elas foram brutais e isso criou dificuldades nas pessoas. Ter corrigido isso foi importante. Manter o equilíbrio é essencial para o futuro. Vamos ver como reagem outras forças sobre isso…

Está a falar das forças políticas que suportam o Governo?

Estou a falar de todas as forças políticas.

Se entre 2011 e 2015 tivesse havido uma solução de Governo semelhante à de outros governos que o sr. deputado integrou, como um Bloco Central, a “brutalidade” das medidas de austeridade teria sido menor?

É provável que sim… O nosso Governo (em 83) foi um governo patriótico. Teve de lidar com uma situação de resgate numa altura em que não estávamos ainda na Europa. Foi muito difícil, mas conseguiu-se. Foi importante assumir-se a responsabilidade. Hoje é um período diferente, uma situação diversa com outro tipo de visões. As coisas aconteceram dentro do que era possível e não tenho uma visão negativa do Bloco Central.

Seria contra essa solução em 2019? Entre uma nova ‘geringonça’ e o regresso ao Bloco Central, o que preferiria?

Ah, isso é óbvio. Eu estaria mais próximo de uma solução com o Partido Social Democrata. Não tem nada que saber [risos].

E já pensava assim em 2015, quando se formou a ‘geringonça’?

Em 2015 foi a solução que se encontrou. Ponto final. Eu não sei o que sairá das eleições de 2019, mas creio que será, em grande medida, uma ratificação desta solução de Governo. Não concebo que não tenhamos maioria absoluta. Governámos bem, funcionámos bem.

Há pouco disse-me que os assuntos de Defesa são debatidos de ‘forma leviana’. Estava a falar da gestão do dossier de Tancos pelo ministro Azeredo Lopes?

O que eu quero dizer é que há muitos casos na área da Defesa e que isso não é positivo para a área da Defesa. Eu apreciaria um tratamento mais institucional desses casos. Quanto mais prestigiadas forem as nossas Forças Armadas melhor estará a nossa democracia.

As eleições de 2019 são uma oportunidade para reformular o Executivo hoje em funções?

No geral, creio que se aplica aquela norma mais popular: em equipa que ganha, não se mexe… Dependerá de quem conduza o processo. António Costa tem conseguido equilibrar cada situação que surge. Tem conseguido manter um rumo. Isso é importante.

Se o PS tivesse ganho as legislativas em 2015 e sido Governo sem precisar da ‘geringonça’, teria governado de maneira muito diferente da que governou?

Eu penso que não.

Fundou o PS no distrito de Portalegre depois do 25 de Abril. Nestes anos todos de Parlamento, não tem nenhum grande arrependimento?

Não me lembro de me ver nessa posição… Geralmente, senti-me bastante confortável com o trabalho que fui fazendo.

Dizem-me que, quando foi governador civil, fez a reforma agrária de descapotável. Não é mito?

Não é, não [risos]. Houve uma altura em que tive um descapotável. Uma vez, fui mesmo confrontado com isso: ‘Então, você, como é que é? Que é isto de ter uma viatura assim?’.

E o sr. deputado respondeu?

Olhe, disse-lhe a verdade. Que o ganhei com o meu trabalho.

Ainda tem o descapotável?

Ainda tive durante algum tempo, mas entretanto sofreu dois desastres e tive de libertar-me dele…

Desastres a ver com a reforma agrária?

Não, não. Deixei-me dormir! [risos]. Foi há muitos anos. 

Não estava a fugir a comunistas, então?

Não, dessa vez não. Mas quem me fez a pergunta sobre o carro foi um comunista.

Quão diferente está o distrito hoje?

Sociologicamente, hoje tem uma base socialista grande, que antes não tinha.

Podemos dizer que hoje é mais fácil ser de centro-esquerda no Alentejo?

É evidente que sim. Na altura, em 1975, foi difícil. Havia uma pressão muito grande.

Qual foi a situação mais tensa que viveu nesse tempo?

Ao lado de minha casa, nuns contentores do lixo que lá tínhamos, puseram umas bombas. Aquilo rebentou e a rua ficou cheia de vidros.

A sua visão mais ocidental deriva dessas experiências?

Não. Acho que acreditaria nas mesmas coisas. Vou-me sempre adaptando, vou entendendo os tempos, mas há sempre o essencial: a democracia e o pluralismo. Às vezes olho para aquilo que se passa hoje com o Francisco Assis e com o Sérgio Sousa Pinto e penso que não havia razões para ser assim.

Está a dizer que há pessoas que foram demasiado afastadas do Partido Socialista.

Isso. O Francisco Assis e outros, que não o mereciam. O partido sempre contou com a pluralidade dentro de si. Essa pluralidade é uma mais-valia da nossa dimensão política. Há uma maioria e respeita-se essa maioria, mas tem de poder haver diferença. Há pessoas que deram – e dão – um contributo muito importante para o Partido Socialista. Custa-me ver que sejam afastados assim. Não se pode colocar alguém em causa pela sua opinião. Isso não é positivo para esta casa.

Não me respondeu há pouco sobre algum arrependimento que tenha destes anos todos. Responde-me se perguntar sobre a maior alegria que teve?

Estar no Governo e ver resultados dá uma grande satisfação. Quando vi o Carlos Lopes ganhar a medalha de ouro nos Estados Unidos foi um momento único. Testemunhar aquilo de perto. Foi o resultado de muito trabalho e é bom quando isso acontece na política. Foi um momento que nunca mais esqueci.

Foi a secretaria de Estado que lhe deu mais gozo, a do Desporto?

Sim, acho que podemos dizer que sim. Lembro-me de estarmos na partida da nossa equipa olímpica e o dr. Mário Soares dizer: ‘Então, se isto correr bem, quando voltarem, assamos um boi.’ Quando voltámos com a medalha de ouro, assámos um boi no palácio de São Bento. Foi um belo momento e uma promessa cumprida. O seu chefe de redação [António Ribeiro Ferreira]  é capaz de se lembrar [risos].

Qual é a maior herança que Mário Soares deixa?

A ideia de Europa, de liberdade, de democracia, de pluralismo.

Mário Soares teria feito uma ‘geringonça’?

Não sei. Dificilmente. É preciso olhar para o passado de Mário Soares, estudar o seu percurso. Recorde-se que ele barrou uma hipótese semelhante no tempo do PRD, preferindo eleições.

Contou-me o seu melhor momento. E o pior momento, tem um?

[Pausa] Eu esqueço esses momentos…

Dizia-me que nunca planeou fazer carreira política.

É. Foi acontecendo…

Acha que seria possível fazer um percurso tão duradouro quanto o seu, de mais de 40 anos, na política de hoje?

Não sei. Talvez. Eu comecei muito novo. Houve a oportunidade na altura e avancei.

E ainda não pensa sair da política?

Ainda é como quando entrei, vai acontecendo…

Tem sido feito um paralelo entre a presidência de proximidade de Marcelo Rebelo de Sousa e a presidência de Mário Soares. Seria contra-natura o PS apoiar a recandidatura do atual Presidente?

Eu acho que não. Tenho visto bem a sua Presidência. Recordo-me, numa altura em que Mário Soares estava a fazer a transição do primeiro para o segundo mandato, que o PSD não apresentou ninguém nessas eleições presidenciais. É uma questão natural.

Não o preocupa o futuro do PS, com uma nova geração marcadamente mais à esquerda, por exemplo, que o sr. deputado?

Preocupa-me o futuro do país. Isso é que me preocupa. Um político governa para as eleições, um estadista governa para as novas gerações. É importante que as novas gerações entendam o que pretendem para o futuro do país. A junção entre aquilo que o país é e aquilo que se quer que o país seja é, normalmente, uma boa base para decidir políticas. Não interessa só ganhar as eleições, interessa saber o que queremos para o país.

O Miranda Calha é, de certo modo, o último dos ‘gamistas’, não é verdade?

Eu não sei se isso existiu [risos]. Mas, de facto, fui amigo do dr. Jaime Gama.