Soldado Milhões. Aníbal Augusto, cansado de guerra, emigrante português no Brasil

O Milhais, que foi Milhões, não assegurou o futuro com 18.419$40 que recebeu de uma vez, além de três ou quatro contos dispersos. A moléstia entrou-lhe pelos rebanhos e a seara não medrou em Trás-os-Montes. ‘Empenhei-me com a minha casita, como sou moço e válido, vim para cá desempenhar-me’, dizia aos 32 anos a um jornal do Rio…

Portugal sempre teve uma relação complicada com as derrotas. Não que não esteja habituado a elas, que está. Até se poderia dizer que, estando tão habituado a elas, lhes ganhou afeição. A derrota tem feito parte da nossa vida desde sempre. 

O português, em princípio, começa logo a perder quando nasce. Depois há uns que ganham. Esses, geralmente, ganham como se perdessem: vingam-se. 9 de abril de 1918: dia da Batalha de La Lys. Dos 7500 portugueses presentes no acampamento de Levantie, morreram mais de mil. Isto é: La Lys somou, num só dia, metade das baixas portuguesas na I Grande Guerra. 

Continuamos a comemorar a Batalha de La Lys como se uma vitória se tivesse tratado. De certa forma, foi mesmo uma vitória. Foi como se disséssemos: «Estávamos lá e estávamos do lado certo!» Para os franceses, ingleses e americanos as coisas não se passaram bem assim. Eles venceram a guerra; nós perdemos a Batalha de La Lys.
Voltemos à Batalha de La Lys. Há uma cena que parece tirada dos livros do Texas Jack. Lembram-se? «Entre os mortos havia um que respirava: Texas Jack».

Numa altura em que os soldados portugueses caíam como tordos, houve um que não esteve pelos ajustes: Aníbal Augusto Milhais. 

Pegou na metralhadora e começou a despejar carregadores, cobrindo a fuga dos camaradas sobreviventes. Foi tamanha a sua decisão que o comandante Ferreira do Amaral soltaria, mais tarde, uma tirada à António Silva num filme de Cotinelli Telmo: «Ò homem! Você pode chamar-se Milhais, mas vale milhões!» Ficou Milhões. Milhais, o Soldado Milhões.

O Soldado Milhões também teve uma relação muito especial com a derrota. No fundo, fez aquilo que os portugueses fazem quando se veem a perder: disparam em todas as direcções…

Aos 32 anos, o Milhões que foi do 19 de Infantaria e, depois, do 15. Torre de Espada, Cruz de Guerra de 1.ª Classe, Cruz de Guerra belga, moreno de tez como bom transmontano que era, meão de altura e valente por feitio, estava no Brasil.

A ambição tomara conta da sua alma guerreira. Dizia-se que caira na miséria, o homem que recebera, dez anos depois de La Lys, uma soma de mais de 20 contos de réis por iniciativa dos leitores de um vespertino lisboeta.

Casado com Teresa de Jesus, dois filhos por conta, a moléstia entrou-lhe nos rebanhos de ovelhas e a seara não medrou.

Não se despediu de ninguém.

Nem do seu comandante e amigo.

Rumou ao Brasil. Um sonho no erguer da asa da lareira a abandonar, como escreveria Fernando Pessoa…

De Vale da Feira, aldeia de Valongo, concelho de Murça, distrito de Vila Real, até à capital, de comboio, e bilhete de barco para o Rio de Janeiro.

O Lanzudo, como também o conheciam, fez como na guerra: «P’ra onde é que a gente há de ir? P’ra diante!!!»

De lá do Brasil mandou notícias por um jornal: «Empenhei-me com a construção da minha casita e, como sou moço e válido, quero trabalhar a fim de desempenhar-me. Outro motivo não me trouxe e outras ambições me não acompanham. Só quero trabalho, seja ele qual for, para poder voltar à minha terra, eu que fui um Soldado da Pátria e sê-lo-ei de novo se preciso fôr. Convenci-me de que os 18.419$40 que recebi de uma vez, além de três ou quatro contos dispersos, mais o que apurei da venda de um tractor agrícola que me foi oferecido, seria suficiente para me assegurar o futuro. Mas tive azar com as moléstias e as colheitas. Mas não estou aqui para pedir nada a ninguém. Que isso fique bem claro.».

Voltaria a casa.

Voltaria a Valongo que, por sua causa, se passou a chamar Valongo de Milhões.

Mas rico, nunca.