Soldado Milhões. O herói que nunca quis ser

No mês do centenário da batalha de La Lys, chega às salas o filme em que Gonçalo Galvão Teles e Jorge Paixão da Costa recordam a história de Aníbal Augusto Milhais. O soldado raso feito lenda, redenção possível para o desastre da participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial

Se de filmes de guerra ou de ação quase não reza a história do cinema português, daí não veio problema para Gonçalo Galvão Teles e Jorge Paixão da Costa. Nem para a Ukbar Filmes de Pandora da Cunha Teles, que ainda recentemente estreou em Portugal “Comboio de Sal e Açúcar”, de Licínio Azevedo, num western moçambicano em tempos de guerra feito em coprodução internacional a querer abrir caminho para “Soldado Milhões”, que chega às salas no mês em que se completam cem anos da batalha que marcou a participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial. La Lys. De onde Milhais, o agricultor de Murça, voltou Milhões, o único soldado raso português alguma vez condecorado com a Ordem Militar da Torre e Espada.

A história faz-se mais que conhecida por estes dias. Sozinho na frente de batalha quando portugueses e escoceses batiam em retirada, enfrentou sozinho duas ofensivas das tropas alemãs, munido apenas de uma Lewis, metralhadora automática desenhada nos Estados Unidos e popularizada entre os aliados nas trincheiras. Já a do filme começou há vários anos, numa conversa entre Jorge Paixão da Costa e José Jorge Letria, que contava ao realizador a história desse soldado feito lenda, redenção possível para a sangrenta participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial, ao lado das forças aliadas.

“O cinema português é limitado em termos de financiamento e de distribuição, mas acredito que há espaço para tudo”, diz Gonçalo Galvão Teles, com Jorge Paixão da Costa correalizador de “Soldado Milhões”, ao mesmo tempo que admite a “grande dose de risco” na decisão de partir para um filme de guerra que não poupa em cenas de disparos de metralhadoras e explosões, que obrigaram a recorrer a efeitos especiais. “Obviamente houve um grau de risco enorme. E uma coragem, sobretudo dos produtores, para enfrentar esse risco. Eu sabia que era possível, mas sabia que poderia resultar um pouco aquém”, reconhece para explicar que uma das suas preocupações foi integrar a equipa que seria responsável pelos efeitos no processo desde o início. “Fizemos muitas coisas mecânicas e devo dizer que ainda na montagem do filme [sem os efeitos] já acreditava nele. Uma coisa que aprendi com uma professora que tive é que, a partir do momento em que se põe um filme cá fora, o orçamento deixa de ter importância. Não há desculpas.”

Mas não será de trincheiras e balas apenas que se há de coser a história deste Milhões (1895-1970) que depois da guerra e das condecorações máximas regressou à terra – e à miséria. Medalhas nunca mataram a fome. Primeira República, Portugal no estado de sítio em que o vemos logo na partida do Corpo Expedicionário Português de Lisboa para a Flandres, numa das primeiras cenas do filme, e das promessas da República ao herói, apenas um acrescento toponímico para Valongo, freguesia de Murça, Valongo de Milhões. Por questões orçamentais, admitirá o Galvão Teles ao recordar que numa das primeiras versões do argumento a ação raramente se descolava das trincheiras de La Lys, mas não só.

“Uma das minhas referências em termos de filmes de guerra é ‘O Caçador’. Não queria fazer só um filme de ação, ou um filme de guerra”, afirma o realizador. “Interessava-me também explorar um bocadinho as marcas que a guerra deixa e aquilo que me fascinou no personagem foi que, fosse na trincheira, com os camaradas de armas, fosse na terra, na agricultura, ou com a família, ele tinha sempre uma visão muito pragmática das coisas. Por isso é que falamos de um herói que não queria ser herói.”

Partiu então o filme para uma estrutura de narrativas paralelas, entre os anos da primeira guerra – a partida para a Flandres, as trincheiras e o episódio que fez do soldado lenda – e os da segunda, com a referência à “suposta não participação portuguesa”, Milhões em Trás-os-Montes, numa caça ao lobo que o leva a um fojo (armadilha usada para proteger as aldeias dos lobos) que o há de levar de volta às trincheiras. “O lobo abre espaço para diversas interpretações. Houve razões criativas e razões orçamentais. Fazer um filme totalmente de guerra era muito complicado. Chegou a haver um guião que 90% do filme se passava em 1917-18. Mas havia o lado criativo, do personagem, e interessava-me também explorar o antes e o depois.”

E para o “antes e depois” deste Milhões, entre 1918 e 1943, dois atores. João Arrais, para os anos La Lys, e Miguel Borges, para Murça, 25 anos mais tarde, aos quais se juntam Ivo Canelas, Tiago Teotónio Pereira, Lúcia Moniz, Raimundo Cosme e Dinarte Branco. “Chegámos a discutir a certa altura a possibilidade de aproximar os tempos para podermos ter o mesmo ator a fazer os dois papéis, mas acho que tomámos a decisão certa. Para mim, uma das coisas mais bem conseguidas no filme é a uniformização dos dois personagens, que são um só.”