Crise. Os aviões até levantam voo, os passageiros é que não

O mundo da aviação vive dias complicados e os passageiros afetados contam-se às centenas. A TAP enfrenta cada vez mais cancelamentos e a Ryanair também. Mas há ainda problemas com atrasos, overbooking, guerra de preços, pessoal e taxas e taxinhas quando o assunto é a bagagem

Tempos houve em que viajar de avião não era para qualquer um. Muito pelo contrário. Mas os anos foram passando e, hoje em dia, pode ser mais difícil pagar um bom jantar do que levantar voo. No entanto, nem só de boas notícias é feita toda esta mudança. Algumas companhias enfrentam cada vez mais cancelamentos de voos por falta de pessoal, é frequente haver atrasos, a bagagem funciona cada vez mais numa lógica de taxas e taxinhas, o overbooking nunca esteve tanto na moda e há histórias de grandes companhias aéreas que não viram no tamanho da marca a força suficiente para fazer face à falência.

Num mundo em que falamos de milhões de euros e de passageiros, há quem não se entenda. Uns falam de crescimento do setor da aviação, mas há quem defenda que enfrentamos um grave crise. Há guerra entre transportadoras para ter os preços mais baixos, um descontentamento crescente dos trabalhadores e até dos passageiros – isto deixando de parte o facto de haver uma guerra entre as companhias aéreas no que respeita aos trabalhadores, sejam pilotos ou tripulantes de cabina.

A TAP, por exemplo, alcançou resultados que saltam à vista com números que parecem diferentes dos que foram apresentados nos últimos anos. As contas de 2017 mostram uma TAP SGPS a alcançar lucros de 21,2 milhões de euros. No entanto, os primeiros meses deste ano não podiam estar a ser mais atribulados. Só até março, a companhia aérea já teve de cancelar mais de 560 voos. De acordo com os dados avançados pela OAG – empresa britânica que divulga mensalmente relatórios de pontualidade de companhias e aeroportos –, em janeiro tinham sido cancelados 75 voos da TAP. Em fevereiro, esse número aumentou para 117 e, em março, disparou para 365.

De acordo com o ministro do Planeamento e Infraestruturas, Pedro Marques, é necessário perceber que “há várias companhias aéreas na Europa que também enfrentam situações de cancelamentos, desde logo porque houve greves noutros países e mau tempo que afetou uma quantidade de países e também afetou Portugal”. Até aqui, tudo certo, porque os cancelamentos e as greves verificam-se em vários países. No entanto, no caso da TAP, a situação dos pilotos que decidiram não fazer mais horas do que está previsto no acordo de empresa complicou muito a vida dos passageiros.

“A AirHelp, empresa especializada na defesa dos direitos dos passageiros aéreos e líder na obtenção de compensações por perturbações em voos, analisou o período entre 1 de janeiro e 6 de abril de 2018 e concluiu que cerca de 23 300 passageiros afetados por perturbações em voos da TAP são elegíveis para receber compensações de acordo com o regulamento EC261. No total, os pedidos de compensações poderão representar para estes passageiros afetados um valor global de cerca de 8,5 milhões de euros”, explica a empresa ao i, acrescentando que “neste período, cerca de 30% dos voos da TAP sofreram perturbações. Cerca de 5200 voos tiveram um atraso entre 15 e 180 minutos, cerca de 90 voos tiveram um atraso superior a 180 minutos e cerca de 400 voos foram cancelados.”

A empresa tem justificado os vários cancelamentos com questões operacionais, mas o motivo perde importância face a tantas consequências para os passageiros. Contactado pelo i, também o Portal da Queixa mostra que o número de cancelamentos tem vindo a aumentar este ano e, apesar de estarmos ainda em abril, os números já impressionam. Embora o número de reclamações seja muito inferior ao de passageiros afetados, “dentro desta estatística podemos verificar que, das 111 já em 2018, 34 foram dirigidas à TAP e 15 à Ryanair; contudo, em muitas não são passíveis de serem identificadas as companhias aéreas, tendo em conta que são dirigidas às agências de viagens como, por exemplo, a eDreams”. Quando solicitados os números de 2017, a empresa fez saber que o número é muito inferior: 69.

Já o segundo motivo que gera mais descontentamento entre os passageiros diz respeito à bagagem – um dos tópicos que têm servido às companhias como forma de conseguirem algum lucro. Os bancos ocupam cada vez menos espaço e a bagagem é um assunto cada vez mais complexo. O número de companhias aéreas a mudar as regras do jogo das malas é crescente. A TAP garante que há viagens mais baratas para quem viajar sem bagagem de porão enquanto, por exemplo, a Ryanair bateu o pé para acabar com a possibilidade de haver duas malas de mão por passageiro na cabina do avião. Com o aumento de passageiros, as companhias aéreas viramse obrigadas a encontrar soluções. Apesar de algumas terem optado por reforçar as ligações e as frotas, também houve situações em que foram os próprios aviões que foram adaptados à nova realidade. Um dos casos mais comentados é o caso da portuguesa TAP. Os cadeirões em pele azul acabaram por dar lugar a uma estrutura em plástico e pele cinzenta, com alguns pequenos apontamentos a verde ou vermelho, as cores da transportadora. Com uma espessura muito menor, nota-se, assim que se entra no avião, que os bancos ocupam agora muito menos espaço do que antes. A verdade é que longe vão os tempos em que as malas não eram problema. Agora, cada centímetro conta e cada cêntimo também. Tudo funciona cada vez mais numa lógica de taxas e taxinhas.

Também o overbooking traz cada vez mais problemas aos passageiros, mas cada vez mais retorno às companhias. No fundo, falamos de uma forma legal de evitar ter lugares vazios. Como são registados casos de pessoas que acabam por não embarcar por um motivo ou outro, as companhias aéreas começaram a vender o mesmo lugar mais do que uma vez. Apesar de a gestão da prática depender de companhia para companhia e de rota para rota, há em média dez lugares em overbooking por cada dez mil assentos vendidos. A prática está longe de ser nova, ainda que seja certo que se verifica uma trajetória ascendente no número de passageiros afetados. Em Portugal não existem episódios de violência como o que foi registado na United Airlines, mas multiplicam-se casos de passageiros que acabam por ficar em terra.

Em 2016, por exemplo, a AirHelp chamava a atenção para o facto de mais de 11 700 passageiros não terem conseguido embarcar em aeroportos portugueses, o que fez com que as indemnizações por overbooking em Portugal chegassem aos 4,7 milhões de euros. Para a AirHelp, falamos de uma estratégia que serve acima de tudo a “maximização dos lucros” das companhias aéreas. A facilitar a prática está, de acordo com a empresa, o facto de os passageiros não conhecerem os seus direitos. “Com base na legislação, se o voo for atrasado, cancelado ou estiver em sobrelotação (overbooking), a companhia aérea deve compensar o passageiro. No entanto, a percentagem de pessoas que conhecem estes direitos é diminuta. Entre os EUA e a Europa, oito milhões de passageiros não são ressarcidos.” 

Seja como for, a verdade é que o céu parece estar a ficar cada vez mais pequeno para tantos aviões, tantas companhias e tantas rotas. O aumento da concorrência no setor deu origem a uma verdadeira guerra de preços e até de mão-de-obra. Além do número de passageiros que ficam em terra por overbooking ou cancelamentos, há registo de cada vez mais dificuldades nas companhias e até casos de empresas que levantam voo, mas para o abismo da falência. Em setembro do ano passado, a Ryanair era notícia pelo cancelamento de vários voos. Com mais de 18 mil ligações a serem fortemente afetadas, a low-cost dava conta de se encontrar a braços com a redução do número de aviões disponíveis no período de inverno. Mas a verdade é que não era apenas o número de aeronaves que preocupava a companhia aérea. No topo dos problemas da Ryanair estava também o êxodo de pilotos para transportadoras concorrentes. Estes profissionais argumentam cada vez mais que “não há aviação sem aviadores” e a guerra pela mão-de-obra intensifica-se. A própria História tem mostrado que ser grande nunca foi suficiente para impedir a queda. No ano passado, a Monarch Airlines abriu falência, depois de ficarem a ser conhecidos problemas em algumas outras companhias como a Ryanair, a Alitalia ou a Air Berlin. A Pan American World Airways, por exemplo, chegou a ser a companhia mais famosa do mundo. Em 1991, o que parecia ser impossível aconteceu: a empresa faliu.