Boaventura Sousa Santos. “A democracia nunca foi compatível com o capitalismo”

O sociólogo português não tem dúvidas que hoje o combate pela democracia é cada vez mais urgente com a erupção de regimes “fascistas de novo tipo”.

O pretexto da conversa foi o encontro de solidariedade com a democracia no Brasil e contra a prisão de Lula da Silva organizado pelo Centro de Estudos Sociais e pela Fundação Saramago que teve a presença de Boaventura Sousa Santos, Pilar del Rio, o líder do Podemos, Pablo Iglesias, o ex-presidente do PT, Tarso Genro, o candidato pelo PSOL, Guilherme Boulos, e a líder do BE, Catarina Martins. 

O fio da conversa seguiu algumas das teses que estão expressas no novo livro do sociólogo, a sair brevemente, com o nome de uma planta que consegue respirar em ambientes hostis, “Pneumatóforo: Escritos políticos (1981-2018)”. 

Lula foi eleito com o voto das classes médias, em 2002, tendo depois perdido esse apoio. A que  se deve o ódio das classes médias ao ex-presidente?

As classes médias têm uma característica em todo o mundo: são classes que se sentem ameaçadas. E sempre que isso acontece identificam-se com os de cima e nunca com os de baixo. A classe média tende a identificar-se com os estilos de vida mais altos, que é tudo aquilo que a televisão e os grandes media transmitem. Grande parte da nova classe média foi criada a partir da transferência de rendimentos promovida por programas como a bolsa família e sistemas de quotas. Precisaríamos de duas ou três gerações para consolidar a classe média como cidadania. Neste momento, ela apenas existe como consumidores e não como cidadãos. E quando, a partir de 2010, com o rebentar da crise no Brasil, viu ameaçado o seu consumo – devido ao embaratecimento do preço das matérias primas por causa da diminuição do crescimento da China – aumentou o seu medo, reforçado por ser a camada social que está mais exposta aos media, não no sentido das outras classes não verem televisão, mas no sentido de estarem mais permeáveis a uma ideologia do ódio em relação a um indivíduo que eles identificam ser de uma classe baixa e que não devia ter sido presidente.

Isso apesar dos governos de Lula terem tirado 30 milhões de pessoas da pobreza e terem feito ascender um número comparável de pessoas à classe média?

Todos os trabalhos que temos feito revelam uma coisa: nós vivemos não só em sociedades capitalistas, como em sociedades colonialistas e patriarcais. O Brasil é um exemplo disso. Criou-se a certa altura um ódio de classe que também é uma forma de ódio racial. No caso de Lula, que não é negro, reside no facto de ele ter tirado muita gente da situação de dependência que se encontrava em relação às classes médias e brancas. O país é metade negro ou mestiço, mas a verdade é que essa população não estava nas universidades, nem estava nos serviços, nem no consumo, nem nos centros comerciais. As políticas de Lula levaram essas camadas a ter acesso a esses lugares e isso criou um ressentimento das classes altas. Acresce o papel de uns media com um nível de intoxicação e manipulação que, como a rede Globo, já tinha legitimado o golpe militar de 1964, e que agora estão praticamente a fazer o mesmo. É interessante verificar que em termos gramscianos, a classe dominante brasileira não é hegemónica, no sentido que vemos que este homem, apesar de ser demonizado por ela anos a fio, continua a ter as maiores intenções de voto. Há aqui uma grande ambiguidade, porque ela não consegue ter a maioria do país mas consegue polarizar. Agora é verdade que o Lula cometeu muitos erros. A minha crítica em relação ao Lula, foi ele não ter aproveitado o boom do preço das matérias primas, tendo dado a ideia que isso era eterno, para ter feito uma reforma política, fiscal e mediática.

Independentemente de ele não ter feito essas reformas, há uma outra coisa que se pode imputar, a esquerda latino-americana parece funcionar só com lideranças populistas.

Essas lideranças políticas surgiram em condições concretas, no caso do Brasil surgiram em condições de ditadura. Normalmente são carismáticas porque correram muitos riscos para poderem ser lideranças: desde o Perón, Getúlio Vargas, Lula e Chávez. Explica-se mais pela sua origem do que por outra coisa. É evidente que são sociedades oligárquicas em que as divisões de classe são muito pronunciadas. A tradição colonialista nessas sociedades é muito forte. As classes que sempre dominaram e privatizaram o Estado não precisam de gente carismática porque têm o sistema todo a trabalhar para eles. É por isso que a esquerda se enganou na América Latina ao pensar que ganhando o poder do governo, em eleições, estava a ganhar o poder social e económico. Há uma grande assimetria quando a direita está no poder: domina a política, a sociedade, a economia. Quando a esquerda está no governo tem o poder político, mas não tem o económico e social.

Daí o populismo?

Não é por vontade própria. As formas de dominação política levam a que seja preciso correr muitos riscos para conseguir contrariar o peso das classes dominantes. Explica-se por isso o peso dessas personalidades, que se reflete, por exemplo, no carinho com que as classes populares veem Lula e a sensação de injustiça que têm ao ver o homem, que acabou um mandato com uma taxa de aceitação de mais de 80% dos brasileiros, a ser perseguido e preso.

O populismo, apesar disso, parece-lhe sempre negativo?

O populismo para mim é sempre de direita. Acho que foi o grande erro de Laclau teorizar o populismo como algo positivo. Tem de ver com as condições específicas da Argentina onde isso funcionou. Tenho esse debate há anos com a Chantal Mouffe [cientista política, viúva de Ernesto Laclau, e co-autora com ele do “ Hegemony and Socialist Strategy – Towards a Radical Democratic Politics”]. Mouffe tentou vender essa ideia ao Podemos, que teve uma certa aceitação, sobretudo via Iñigo Errejon, e que se baseia na afirmação que somos trans-classistas [o discurso político não depende do lugar social em que nos encontramos], que não há esquerda nem direita e que nós somos o povo. Eu penso que tirando o caso concreto da Argentina, o populismo é sempre de direita, porque elimina todas as intermediações necessárias politicamente. O populismo é um conceito equivocado que pretende no fundo eliminar as diferenças entre esquerda e direita, quando eu acho que hoje essa diferença é mais importante que nunca. Quando se põe em causa a distinção esquerda e direita, normalmente quem está em causa é a esquerda e nunca a direita.

Defende uma espécie de reafirmação da esquerda?

Exatamente. Num livro que apenas está editado no Brasil, com o título “Esquerdas de Todo o Mundo Uni-vos”, que vou aproveitar numa parte do meu novo livro, defendo que o argumento de virar a esquerda para o populismo, diluindo a esquerda e a direita, foi mais ou menos o mesmo que levou a social-democracia a virar-se para o centro. O que significou esta ideia de criar uma hegemonia com as pessoas que não são de esquerda? A ida para o centro, proposta pela Terceira Via, resultou na descaracterização total da social-democracia. Na atual situação do sistema capitalista existe uma enorme polarização e desigualdade social, é o pior momento para pôr em causa a distinção esquerda e direita, porque há muita gente a empobrecer ativamente para que muito poucos possam enriquecer ativamente. 

Um dos aspetos mais curiosos e gritantes dessa polaridade que se vive em grande parte do mundo é o papel do racismo como forma de separar as pessoas, seja no Brasil, seja no muro de Trump ou na islamofobia na Europa. Porquê esse recrudescimento?

Em primeiro lugar deixe-me sublinhar uma coisa, fico feliz porque as minhas teorias se confirmam e ao mesmo tempo triste pelas consequências dessa confirmação. Defendo há muito tempo, contra uma certa ortodoxia marxista, que as contradições nas sociedades modernas não são apenas as entre o capital e a classe. Para mim é claro que nas sociedades modernas há três formas de dominação principais: capitalismo, colonialismo e patriarcado. Ao contrário do que muitos diziam, o colonialismo não terminou. O colonialismo mudou de forma em relação ao modelo de ocupação territorial estrangeira. É tal e qual o que sucede com o capitalismo. Existe desde o século XVII e é hoje muito diferente dessa época, mas nós continuamos a falar de capitalismo. Por que é que não continuamos a falar de colonialismo? É porque caímos na armadilha de pensar que os países independentes tinham deixado de ser coloniais. Continuam a ser. Há momentos em que na história esta articulação de dominações continua a ser muito forte. Nós estamos exatamente num destes momentos em que o colonialismo, o capitalismo e até o patriarcado continuam muito poderosos. Ao contrário do que a gente pensa, as vitórias dos movimentos feministas, que foram importantes em muitas áreas, não estão a reduzir significativamente o número de mulheres assassinadas pelos seus companheiros; o feminicídio e a discriminação continuam a existir de uma maneira persistente. Aquilo que eu pretendo fazer é uma análise marxista da nossa sociedade, mas como se Marx estivesse aqui comigo a viver esta época e não no final do século XIX. No caso do racismo há ainda uma razão de economia política. Neste momento a terra está em grande medida na posse de povos indígenas ou de populações afro-descendentes. Em África são as populações africanas naturalmente, e na América Latina são as populações indígenas ou mestiças. As populações branqueiam-se à medida que se observam as cidades. A terra é neste momento a grande fronteira onde estão os conflitos mais duros. Veja-se o caso da Colômbia, Brasil e África. Mais de 75% da biodiversidade do mundo está em território indígena, portanto neste momento a terra é a grande fronteira do capital. A terra não é apenas para a agricultura. A Nestlé, por exemplo, está a negociar nesta altura os aquíferos do sul do Brasil. Os países estão a usar a terra como reserva alimentar. A China e a Arábia Saudita estão a comprar terra em África. Neste momento a terra é para agricultura industrial, reserva de alimentação e reserva de água. Para tirar às populações esses recursos é preciso desqualificá-los. Para desqualificarmos o trabalho das mulheres no lar, na família e no emprego, tivemos de desqualificar as mulheres; para tirar esta terra é preciso desqualificar e degradar as populações que lá vivem. Chama-se a isso racismo. O racismo vai a par da islamofobia e da xenofobia. Desde Aristóteles que a humanidade nunca foi plena. Já existia a ideia que uns são humanos e outros sub-humanos. O que o capitalismo fez foi reconfigurar esses preconceitos para desvalorizar o trabalho e os recursos.

Como é que essa narrativa encaixa com o racismo na Europa, onde essas populações não têm recursos de terra nem de água?

Não têm recursos, mas são as mesmas populações que têm recursos noutras zonas do planeta, contra os quais o capitalismo global lança a sua desqualificação. O racismo na Europa, a islamofobia e a crise dos refugiados também têm aspetos próprios. Se vir bem, quando a social-democracia se consolidou na Europa, entre 1945 até aos anos 80, consolidou-se através da pilhagem dos recursos lá fora. Os nossos trabalhadores tinham direitos e em compensação os trabalhadores em África e na América Latina não tinham direitos nenhuns. Eram as mesmas fábricas que davam direitos aos trabalhadores aqui e os exploravam brutalmente lá fora. O que acontece agora com os refugiados, imigrantes e a islamofobia? São ecos distantes de uma questão colonial que não foi bem resolvida. Como não o foi, a questão colonial está a ir para dentro da Europa. Só assim se explica que a extrema-direita tenha uma agenda social muito semelhante à da social-democracia. Eles também defendem a existência de saúde pública, educação e segurança social públicas. Não são necessariamente neoliberais. Mas querem tudo só para os europeus. Não querem refugiados nem imigrantes.

Durante muitos anos os liberais diziam que havia uma correspondência perfeita entre democracia e capitalismo. Hoje é visível que a democracia encontra-se em regressão um pouco por todo o lado.

A democracia nunca foi compatível com o capitalismo: a acumulação infinita nunca coincidiu com a soberania popular. Quando o liberalismo surge e é teorizado por exemplo por [John] Locke, o que existe é uma democracia censitária, em que os proprietários eram os únicos a poder votar. Tudo o que é democrático no capitalismo foi uma conquista e não uma concessão. As primeiras greves foram ferozmente reprimidas. É o que acontece agora nos conflitos de terra no Brasil ou na Colômbia, em que este ano, depois do acordo de paz, foram mortos mais líderes sociais que no ano passado.

A democracia foi sempre reduzida pelo capitalismo?

A democracia teve sempre uma tensão. Houve um período em que a democracia criou muito a ideia – aliás credível, não era uma pura ilusão – de que era compatível com o capitalismo. Isso existiu e chamava-se social-democracia. A partir de 1945, o capitalismo teve muito medo que um sistema alternativo do outro lado do muro de Berlim pudesse cativar as classes populares e abriu os cordões à bolsa. Na Alemanha, as fábricas chegaram a ser governadas numa parceria entre trabalhadores e empresários. Hoje em parte nenhuma do mundo aconteceria que ficassem nacionalizados os setores básicos da economia e que a riqueza fosse muito tributada. Os impostos para os super-ricos chegaram aos 70%. Quando cai o muro de Berlim, não foi só o comunismo soviético que caiu, foi também a social-democracia. Nós tivemos a ilusão, muito transmitida pelo neoliberalismo, que tínhamos chegado a uma democracia eterna. Isso é desmentido pela situação que vemos nos ex-países do bloco soviético que ficaram no capitalismo selvagem com regimes autoritários, como a Polónia e a Hungria. A Europa ocidental sempre teve a válvula dos direitos sociais. O neoliberalismo entrou nesta parte da Europa pela mão da União Europeia e dos bancos centrais.

Participou no Fórum Social Mundial que no seu apogeu defendia que uma outra globalização é possível. Neste momento para haver democracia não é necessário regressar em parte à soberania do Estado Nação?

Grande parte das alavancas para controlar a economia foram tiradas aos Estados através de todos os tratados de livre comércio e da liberalização da economia a partir dos anos 80, que visou retirar ao Estado qualquer papel na regulação económica, com as três palavras milagrosas: privatização, liberalização e desregulação. Ao contrário do que pensamos, os cientistas sociais têm de ter muito cuidado, era a ideia que um Estado franco que estava a ser criado. Não era um Estado fraco. É um Estado forte para ser mais fiel à exploração capitalista. O que caiu foi o Estado Social. Esta forma foi substituída por Estado muito mais autoritário e repressivo que assenta na vigilância, e que cada vez torna mais difícil a ação dos movimentos sociais. No Fórum Social Mundial de Montreal mais de 400 vistos foram recusados a pessoas que vinham dos países do sul. Há uma tendência de remover ao Estado as manivelas da regulação social. Um dos aspetos mais importantes foi a retirada do controlo político dos bancos centrais. A chamada independência dos bancos centrais é transformar o banco dependente do Estado para dependente do capital financeiro, que neste momento são 28 empresas financeiras que têm 50 triliões do PIB mundial que é de 80 triliões. Estes dados são de um estudo de colaboradores do Piketty, a que se podem acrescentar 20 triliões que estarão, segundo o “Economist”, em paraísos fiscais. O capital financeiro é totalmente globalizado e ri-se do controlo que podem querer fazer 200 países. É evidente que há uma tentativa de regresso à soberania nacional. É isso que propõe a extrema direita. A esquerda tem muita dificuldade em aceitar este argumento, embora alguma o faça, a que está contra o euro e a que também esteve no Brexit. Mas o problema é o seguinte: quando houver um regresso à soberania nacional que Estado é que lá está? Se for do tipo deste que o neoliberalismo criou, pior a emenda que o soneto.

Como se pode combater este poder gigantesco do capital financeiro senão se travar a globalização existente?

Estamos numa fase difícil que tem as seguintes características: a primeira, é que estamos numa nova fase de globalização – cada fase de globalização está associada a uma inovação tecnológica e um país dominante. A Inglaterra dominou o primeiro e os EUA o segundo. A nova fase ligada à automação e à Inteligência Artificial está em disputa, com a China em boa posição para a liderar. Quando se passa de uma fase para outra, aumentam os conflitos, que por vezes levam à guerra. Neste momento a rivalidade é entre os EUA e a China. Os estudos da CIA mostram que em 2030 a China será a primeira economia mundial. Tudo o resto é paisagem. A Rússia só é hostilizada porque é uma aliada da China. O Brasil foi posto na ordem por causa dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), porque tinham querido criar um banco mundial alternativo. Isso era uma ameaça para o dólar. A Rússia e a China já estão a negociar vendas de petróleo com a moeda chinesa. O dólar só existe como reserva mundial porque todos os pagamentos de petróleo são em dólares. Estamos neste momento numa fase complicada devido a este aumento da rivalidade. Como a China tem seis triliões dos 20 triliões de dívida dos EUA, a China não pode ser atacada diretamente. Ela é atacada nas áreas da grande tecnologia, porque é aí que está a nova área de domínio e fonte de acumulação.

Neste contexto é possível manter a democracia?

Não, acho que neste processo estamos a atingir um ponto de rutura com a democracia. Só que as ditaduras vão ser de um tipo novo. É o que estamos a assistir no Brasil através de uma instrumentalização grotesca do poder judiciário para caricaturar a democracia sem a eliminar. 

Enfraquece as forças que lutam pela democracia, é por isso que nós não podemos dizer que Lula é um preso político aqui na Europa, porque as pessoas acham que o Brasil é uma democracia.

Mas ele é ou não é?

É, mas experimente dizer isso aos movimentos sociais na Europa. Por exemplo, o Podemos franze logo o nariz, temendo que isso seja usado para definir os independentistas catalães presos.

Às vezes o Podemos diz que esses são presos de consciência.

É bastante ambíguo. Pode dizer, embora para eles isso seja um problema no resto da Espanha. Para lançar uma campanha na Europa, como preso político, não vai muito longe. Há muita pressão. Foi a mesma que impediu o PS, por pressão do governo do Brasil e da embaixada dos EUA, de estar na iniciativa de solidariedade com a democracia e o Lula.

Os governos brasileiro e dos EUA  impediram o PS de ir à iniciativa? Foi por essa razão que Ana Catarina Mendes e a presidente do PSOE faltaram?

Não tenho dúvidas. Convidámos todos os partidos. O membro do PS Ana Catarina Mendes prontificou-se até a encerrar o debate. O que mostra uma grande vontade de participação. À última da hora não só não vem, como não nomeia substituto, como se fica a saber pelo PSOE que eles foram pressionados pelo PS português para também não comparecer. De onde é que veio essa pressão? Veio através do Ministério dos Negócios de Estrangeiros que considerou uma iniciativa não amistosa para com um país irmão. O PCP não veio porque quando não organiza não vem, agora o PS estava na iniciativa de alma e coração. Sabemos pelo PSOE que foram instados a não vir.