Cemitério das amizades

Que diferença se operava naquelas cabeças… em apenas vinte minutos! Entravam pajens, saíam fidalgos!

Em certas zonas do Minho diz-se que… «quando casam, os filhos tornam-se mestiços». É natural: as rotinas alteram-se, os hábitos mudam, aparecem novos amigos, esquecem-se os anteriores, por vezes até a família fica para trás. 
Daí a um comportamento esquivo, estranho, às vezes hostil, vai um passo. Como maldição divina − quem sabe se por tudo ter começado com ‘um filho a bater na mãe’ − a Nação ficou com uma atávica tendência para ‘virar a casaca, como quem muda de camisa’.

Desnecessário desfiar exemplos de ‘cambistas’ de lealdades – que os há para todos os gostos, desde 1143. Atendo-nos apenas ao século XX, ficaram célebres os ‘adesivos’ da Primeira República, entusiásticos apoiantes de quem estava ‘por cima’, mas sempre a flutuarem, ao sabor do fazer e desfazer das alianças partidárias, na vaga esperança de um ministério em Lisboa ou de uma pacata repartição em Freixo de Espada à Cinta. Pragmático, José Luciano aconselhava: «Não se deve dizer tão mal de um adversário, que impeça uma aliança futura; nem tão bem de um aliado, que limite o espaço para o atacar».

Todos já tivemos a nossa dose de ‘adesivos’, que se penduraram por qualquer circunstância e descolaram assim que o vento mudou. 

Retenho as recordações mais hilariantes, que remontam a 1976-78 (I e II governos constitucionais), quando se cumpria a formalidade dos convites para a formação dos conselhos de gestão dos bancos. 

Antes e depois das audiências com o secretário de Estado, os convidados estavam comigo, primeiro com a humildade de colegas, ansiosos por confirmarem se a chamada era mesmo para a formalização do convite, a seguir para receberem indicações sobre a logística que se seguia até à posse. Ora, que diferença se operava naquelas cabeças… em apenas vinte minutos! Entravam pajens, saíam fidalgos! Num ápice, saltavam da camaradagem de colegas para a elite dos senhores gestores, com direito a secretária, carro e motorista. Um triunfo para os próprios, uma glória para as ‘digníssimas’, que passariam a ser a inveja da rua, quando o Mercedes preto as fosse buscar, na qualidade de senhoras de…
 
Com a ingenuidade que me acompanhou toda a vida, custava-me acreditar nas vozes sensatas que avisavam: «Se estás no alto, todos te adulam; se cais, todos te esquecem». Poderia lá ser… Então, aqueles que me rodeavam, e logo os mais próximos, seriam lá capazes de trair a amizade!

A Páscoa recordou-nos uma vez mais as multidões que seguiam Cristo e depois fingiram não o conhecer, quando arrastava a cruz até ao calvário. Horas antes, uma turba ululante, perguntada se preferia Jesus de Nazaré ou Barrabás, não hesitara em gritar o nome do criminoso. Mas o Filho de Deus sabia do que são capazes os mais próximos: os Judas, que traem, os Pedros, que negam. O homem comum não sabe nunca. 

Este ano voltei a receber as habituais mensagens de ‘amigos’ de outros tempos, que me desejaram uma ‘Santa Páscoa’. A todos agradeci. Mesmo aos mortos-vivos que, sem suspeitarem, jazem há anos no meu cemitério das amizades.