Arcade Fire. Lisboa a arder

Os Arcade Fire já subiram ao ringue a ganhar, mas nunca se deslumbraram com a vitória antecipada entregue pelo público e elevaram a fasquia performativa com um espetáculo impressionante do ponto de vista cénico e musical

Na ressaca do esfriar de relação entre crítica, “comunidade” e banda, provocada pelo menor entusiasmo despertado por “Everything Now”, Win Butler queixava-se da falta de sentido de humor da sociedade tecnopuritana. Em resposta: a entrada em cena não podia ser mais cabal.

Enquanto a banda se preparava para subir ao ringue, a voz de Pedro Ramos (Radar) anunciava os Arcade Fire como um pugilista que se prepara para o combate do século, exacerbando feitos, gabando qualidades e ressalvando uma “monumental derrota” nos Óscares. Isto enquanto Win Butler ia aquecendo, qual Floyd Mayweather, em gestos de pura ironia.

Quando finalmente o árbitro apita, é o delírio. E se entre a bancada é a pulsação, em palco impera a sofisticação com a produção mais exigente dos Arcade Fire. E quão diferente é tê-los por inteiro ou só em parte num festival. Quase 13 anos depois da primeira comunhão em Paredes de Coura, finalmente pudemos vê-los só a eles. E fez toda a diferença.

Impera a sofisticação em “Infinite Content”, o espetáculo centrado em “Everything Now”, mal-amado álbum do ano passado que gera reações mistas em canções como “Put Your Money On Me”, mas não no bailarico introdutório de “Everything Now”. Ao centro, a banda vai rodando a seu bel-prazer. Win Butler, Will Butler, Tim Kingsbury, Richard Reed Parry, Régine Chassagne e Jeremy Gara giram como loucos. Há um percussionista latino-americano a lembrar o insano Bernie Worrell, as teclas-passe de mágica de “Stop Making Sense”, dos Talking Heads. O filme-concerto histórico de 1984 recorre aos manuais dos nova-iorquinos com doses de adrenalina ainda mais elevadas.

O arranque é vertiginoso. “Everything Now”, “Rebellion (Lies)”, “Here Comes The Night Time”, “Haiti” e “No Cars Go” atiram os foguetes e apanham as canas. O Campo Pequeno arde em pranto de euforia. Os Arcade Fire exigentes e modernistas não dormem sobre a vitória anunciada e ambicionam o K.O. emocional.

Dança-se na trilogia “Reflektor”, “Afterlife” e “Creature Comfort” e chora-se em “The Suburbs”. “Ready To Start” explode corações. Há oooooohhhhhhsssss por toda a arena. No encore, a Preservation Hall Jazz Band faz sociedade em “We Don’t Deserve Love”, na insistência de “Everything Now” e no grande banho de “Wake Up”.

Há uma versão improvisada de “Rebel Rebel”, de David Bowie. E a festa continua com metais, batuques e Win Butler entre a multidão, consciente de que algo maior nasce dali. Público e banda não vivem um sem o outro, mas os Arcade Fire não cedem ao facilitismo unindo pontas entre as canções – quase não se escutam pausas – e evitando juras do banal. Nem era preciso.

A música salva? Claro. Por muito que “Infinite Content” seja a mais evoluída de todas as formas em que se já mostraram, os Arcade Fire voltam sempre ao lugar primitivo da existência: o coração. E daí vem uma catarse emocional, diluviana ou transcendente, que forma uma massa maior do que a música, os aplausos, os vídeos e as fotos.

Em agosto voltarão a Paredes de Coura, onde o romance com Portugal começou.