José Vilhena. “O Filho da Mãe”, essa espécie que não se extingue

Não é obra que possa integrar o Plano Nacional de Leitura assim às primeiras, mas dos três admiráveis livrinhos de Vilhena, pela primeira vez reunidos num volume só com o selo da E-Primatur, recolhem-se ensinamentos para a vida e abre-olhos preciosos. Foram publicados no começo dos anos 70, mas valem ainda para o Portugal moderno…

Diz-se que o sol, quando nasce, é para todos, mas, para Justino Freitas – “o filho da mãe” –, dá a ideia de que o sol rompe várias vezes ao dia e de vários pontos do horizonte. Ao largo feixe de oportunidades há a juntar a sua boa estrela, mesmo porque, já se sabe, em matéria de êxito, “a sorte ajuda os tipos com olhinhos”, a solta tradução de Vilhena da famosa frase latina Audaces fortuna juvat. E Tino, beirão dos sete costados, tão polido como um carvão, tinha-os bem arremelgados, um na repolhuda herança do pai (que contou, pesou e não dividiu, o filho da mãe), outro na camioneta que afastava do polvo familiar.

Uma vez na capital, e dissipada a nuvem negra que lhe torrou boa parte da herança e obscurecia os rumos da fortuna, fez mira ao escadório que levava aos cumes da Sonaves, uma prestigiosa empresa cujo elenco administrativo poderia ser uma versão escovada e bem-sucedida dos irmãos Metralha, com a substancial diferença de não precisar de mexer uma palha para pôr a mão no guito: o guito ia direitinho para casa – por envelope. Pelo meio, e para aplanar o caminho da glória, atravancado por uns quantos administradores, uns tirinhos tão certeiros como aqueles com que em Covões de Baixo, nos verdes anos, chumbava a passarada. Desporto? Insânia? Crime, se preferirmos. Saíram ao Mendonça – “empenhado até ao pneu sobressalente” – os planos pela culatra, os miolos pelo crânio e, ao filho da mãe, um lugar de diretor-geral, enfim vago. A salvo ficou o administrador Calheiros, um tipo que tinha tantos tachos e biscates que lhe era “honestamente impossível” pôr os pés na firma.

Um sortudo o Calheiro, tal como Justino, essa mistura em partes iguais de sacanice e sangue-frio, sempre com ganas para os maiores cometimentos: da hedionda galeria de figuras de José Vilhena, é a única que lhe arrancou três livros: “O Filho da Mãe”, “O Filho da Mãe Volta a Atacar” e “A Vingança do Filho da Mãe”. Livro que saísse de José Vilhena tinha os leitores aos pés e a censura à perna, e estes, pela primeira vez reunidos pela E-Primatur sob portuguesíssimo título, não foram exceção. Vilhena não temia: imprimatur e siga o barco-Portugal, alvo de estimação da ironia de uma caneta teimosamente corrosiva. Num tempo em que a língua se queria casta e pura, o biógrafo de Justino Freitas faz questão de anotar as suas primeiras palavras, “puta” e “merda”, cuspidas contra as ladainhas da resignação, palavra que o dicionário do nosso homem desconhecia.

O percurso profissional de Justino Freitas tem a precisão de uma curva balística: de contínuo a presidente do conselho de administração. E sem canudo algum. Não calhou. De contrário, poderia ter concluído em menos de nada um curso ou dois à escolha, numa qualquer manhã dominical. Cábula entre todos, habilitado com o sexto ano do seminário, onde ficou conhecido como o “Judas” e esticou o a-e-i-o-u das primeiras pulhices da infância, apostou forte nas artes de trabalhar o próximo, tornear impedimentos, galgar degraus, abichar proveitos e lugares ao sol, nunca tapado com a peneira. O filho da mãe, sacana exímio, oportunista máximo, não facilitava, muito menos quando se tratava de mascarar a realidade.

E se é verdade que o “grande homem” escassilhou os nervos a muito doutor & engenheiro cheio de manias (e a algumas madames, que caíam como abelhas no mel), há coisas que conservou intactas: a ignorância de base, o horror generalizado aos livros e um desprezo cavado pela cultura académica. Presumia-se, no entanto, perfeitamente à altura do mais alto cargo que saltasse ao caminho do grande mundo da finança. Nada que um título não pudesse contrabalançar.

A consagração do Comendador Freitas chegou antes mesmo de ter alcançado os areópagos da empresa e o estatuto de “homem top business”. Foi por alturas de uma visita à terrinha em representação da portentosa Sonaves, descrita no português primoroso de Vilhena: “Chuva de flores, arcos com saudações e mensagens de boas-vindas, meninos e meninas da cruzada entoando cânticos festivos, discursos inflamados do presidente da câmara. […] Quando já iniciava o regresso, passou pelo lugar do Fajão, a quem o ligavam tantas recordações de adolescente, e também aí a população inteira veio para a rua a saudá-lo. Velhos, adultos e crianças acotovelam-se para ver o grande homem.” Um gozo, mesmo para o Bexiga, cego e verdadeiro pai do filho da mãe.

É o satírico e fidelíssimo retrato do velho Portugal, a meter pela via rápida da recomendação, do empenho e da cunha, carinhosamente designados pelo nome de “empurrãozinho”, a mandar lapidarmente à fava o lento percurso iniciático que dá pelo nome de “carreira”, essa canseira. O país dos “negócios de alcova”, dos servicinhos e dos truques baixos, das mil maneiras de entalar e atalhar caminho, dos golpes de manga, jogadas crapulosas, trunfos improváveis, mas também da vassalagem de pomadas, das latinhas amarelas e condecorações luzidias, a ombrear com a arrogância do pequeno poder. As armas do Filho da Mãe, mestre da aldrabice e da fraude, não enferrujaram nas décadas seguintes. São as mesmas armas com que, já nos anos 80, Portugal fazia pontaria à frondosa árvore europeia das patacas, a abrirem então os dias como um imenso fruto contaminado, sabe-se hoje. É o país que nos coube em herança. E por isso é com frequência assustadora que ainda ouvimos ranger o cofre, remexido em busca de um qualquer expediente que abra fresta para o futuro. E rápido.

Aos atropelos da ética nesta selva do mais forte e do mais crápula, às nódoas humanas, responde o discurso imaculado de Vilhena, cheio de riqueza vocabular e achados verbais. Um brinquinho capaz de pôr a um canto muito livro hoje incluído no Plano Nacional de Leitura.