Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Gabriel García Márquez em Lisboa

Um ano depois da revolução, a dupla de intelectuais franceses quis saber mais sobre o momento português. García Márquez escreveu que o português da ditadura, sem nada, era dos “homens mais baratos do mundo”

Meses depois da revolução, e num momento de turbulência revolucionária, as alterações na sociedade portuguesa não deixaram de chamar a atenção da elite intelectual estrangeira. Entre 23 de março e 16 de abril de 1975, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir visitaram Lisboa e Porto. O colombiano Gabriel García Márquez, que seria laureado com o Nobel da Literatura em 1982, chegaria em junho, em reportagem para o semanário “Alternativa”.

Sartre e Simone de Beauvoir, filósofos proeminentes, tiveram uma visita acompanhada pela RTP, que nos últimos anos reconstruiu este episódio de “turismo revolucionário”. À chegada, questionado sobre a qualidade da imprensa portuguesa e se acharia necessário, num momento revolucionário, um limite à liberdade, Sartre foi direto. À primeira pergunta, começou por frisar que, por não falar português, não compreendia em detalhe os artigos. Ainda assim, não achava a imprensa muito boa. Faltavam detalhes sobre fenómenos como as empresas em autogestão, casas ocupadas, a “interpretação” dos factos. Sobre os limites à liberdade, seriam aceitáveis se fossem algo que partisse da sociedade – nunca emanados de um governo. 

Sartre viria a mostrar-se desiludido com os estudantes portugueses. Numa conferência na Universidade do Porto, irritou-se por não haver debate. “Gostaria que falassem sobre quais são as suas relações com a revolução e onde querem chegar. Querem chegar a uma revolução socialista, comunista – não no sentido partidário, mas de uma sociedade comunista –, ou quererão ficar pelo caminho, uma democracia burguesa? Tenho à minha frente muitos jovens, mas eles não respondem”, disse, frisando ter ficado com a perceção de que estavam atrasados face a outros movimentos do país, dos operários, aos camponeses e ao Movimento das Forças Armadas. Beauvoir resumiria: “Ficou com a impressão de que se sujeitavam à revolução mais do que a faziam.”

Tão felizes que nem viam semáforos

García Márquez publicaria três reportagens onde constataria as dificuldades do país, resumidas numa frase: “Portugal não produz nada a não ser portugueses.” E mais: “A ditadura tinha saneado a economia e reduzido ao mínimo a dívida externa, em primeiro lugar por causa da exploração desalmada das colónias em África e, em segundo, pela quase eliminação das despesas públicas. Sem educação, sem serviços de saúde, sem nenhum tipo de proteção do Estado, o português era um dos homens mais baratos do mundo.”

Da Lisboa pós-revolução, falava de uma mudança do dia para a noite. “É uma das cidades mais belas do mundo, mas até há um ano era também uma das mais tristes, por obra de uma estranha ditadura medieval que durou meio século e cuja força assentava numa polícia política inclemente. Agora é uma cidade buliçosa, com acidentes de trânsito espetaculares, não apenas porque os portugueses conduzem de uma maneira intrépida, mas porque se sentem tão contentes e tão livres que não respeitam os semáforos.” Nos restaurantes populares, os empregados interrogavam-se se deviam receber gorjeta no regime atual, relata. “Toda a gente fala e ninguém dorme. Às 4h da madrugada de uma quinta-feira qualquer não havia um único táxi livre. Desde o dia seguinte ao da Revolução dos Cravos houve uma explosão de erotismo no cartaz dos cinemas e nos quiosques.” 

O socialismo à portuguesa

Da conversa com os militares fica-lhe otimismo. “Surpreendi-me com a propriedade da sua linguagem, a sua independência e o seu esclarecimento ideológico, sobretudo o alto nível da sua cultura geral”. Já os comunistas enfrentavam, na leitura do repórter, problemas graves. “Têm contra si o medo que o seu nome desperta em amplos setores da população envenenados por tantos anos de regime fascista e controlo clerical (…) Mas, sobretudo, têm contra si toda a social-democracia europeia, o governo dos EUA e a própria imagem conflituosa do seu secretário-geral, Álvaro Cunhal, um comunista da linha dura moldado pelas trevas do cárcere e da clandestinidade, um homem misterioso e quase mítico.”

Márquez contava ainda que havia, no início do Verão Quente de 75, mais de dez partidos em Portugal, mas “o mal de todos” era nenhum ser um “verdadeiro partido de massas”. A pergunta para a qual não encontrou resposta não é muito diferente da de Sartre. “O que ninguém sabe, no entanto, é qual é o socialismo possível nas condições tremendas de Portugal. Inventar esse socialismo à portuguesa, independente do centro internacional do poder, e construí-lo com imaginação e humanidade, parece ser o objetivo supremo do MFA, com um aliado apenas, até agora incondicional: o PC. O desafio é enorme. Mas estou convencido, modestamente, que o vão conseguir.”