À espera de dádivas para ser pais

Decisão do Tribunal Constitucional deixou em suspenso os tratamentos de fertilidade que envolvem a doação de gâmetas. No SNS, há 344 pessoas à espera da doação de gâmetas para poderem iniciar os seus tratamentos.

A decisão do Tribunal Constitucional foi conhecida na terça-feira e impôs o suspense na área dos tratamentos de fertilidade, atualmente responsáveis por mais de 2% dos nascimentos no país, mais de 2000 crianças todos os anos. Além da declaração de inconstitucionalidade de normas relacionadas com a hipótese de recorrer às chamadas barrigas de aluguer em caso de incapacidade da mulher em gerar um filho por razões clínicas, os juízes chumbaram pontos da lei que implicavam que, até aqui, os dadores de óvulos e espermatozoides pudessem manter o anonimato. A dúvida que ficou no ar foi o que fazer daqui para a frente e como não foram emanadas instruções por parte do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida – o organismo que regula os tratamentos de fertilidade no país – não houve nem novas colheitas nem novos tratamentos a ser iniciados.

Qual é a dimensão do impacto? No país existem cerca de 30 centros que fazem tratamentos através de técnicas de procriação medicamente assistida, a maioria no setor privado. Em 2015, último ano com dados disponíveis, nasceram 2504 crianças fruto de tratamentos de fertilidade. Em mais de 300 nascimentos, os casais beneficiaram da doação de gâmetas, óvulos ou espermatozoides.

Se no privado não existe informação centralizada sobre quantos casais estão à espera atualmente da doação de gâmetas para avançarem com os seus tratamentos, o Banco Público de Gâmetas, com sede no Centro Hospitalar do Porto, dá conta de uma lista de espera nacional de 344 pessoas seguidas no Serviço Nacional de Saúde, 183 a aguardar a doação de óvulos e 161 a aguardar a doação de sémen, revelou ao SOL a instituição. 
Quando é necessária a doação de gâmetas, a espera para iniciar tratamentos no Estado torna-se ainda maior e pode ir além dos dois anos. Nos últimos meses houve um reforço dos esforços para promover a dádiva, até porque a lei permitiu no final de 2016 que mulheres solteiras ou casais de mulheres possam ter acesso a tratamentos de procriação medicamente assistida, o que aumentou a necessidade de doações. 

Ainda assim, os dados fornecidos ao SOL sugerem que a adesão ainda permanece aquém das necessidades. Em 2017, o Centro Hospitalar do Porto registou apenas 12 homens dadores, num total de 53 candidatos, e 19 mulheres dadoras, num total de 98 candidatas. 

No início do ano passado, a recolha de gâmetas para o banco público, que até aqui só funcionava no Porto, foi alargada à Maternidade Alfredo da Costa (MAC), em Lisboa, e ao Hospital Pediátrico de Coimbra. Mas fora do Porto a adesão não parece ser muito maior. Questionados ambas as instituições, apenas o Centro Hospitalar Lisboa Central, a que pertence a MAC, informou ter recebido em outubro uma amostra de ovócitos. Já no último mês de janeiro de 2018 recebeu quatro amostras de esperma e uma de ovócitos.

Receios de uma quebra dos dadores

No caso da gestação de substituição, o acórdão do TC salvaguarda que os casais que já tiverem iniciado os tratamentos após luz verde do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida poderão prosseguir. Até à data, apenas dois casais tinham tido luz verde. Outros sete pedidos estavam em avaliação.
Quando à dádiva de gâmetas, a preocupação do acórdão é garantir que as crianças que nascem de tratamentos de procriação medicamente assistida têm direito a conhecer não só que houve um tratamento de fertilidade mas também a identidade civil de um eventual dador. 

A posição dos juízes suscitou receios de uma quebra nas dádivas. A preocupação foi expressa por Eurico Reis, juiz desembargador que dirigiu o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida durante onze anos e se demitiu esta semana em protesto contra o acórdão do Tribunal Constitucional, tecendo duras críticas ao que considera ser uma posição «reacionária» do tribunal. Também a Associação Portuguesa de Infertilidade se manifestou incrédula com a decisão. 

Até aqui, a lei era relativamente fechada no campo da confidencialidade, embora houvesse algumas salvaguardas. «Todos aqueles que, por alguma forma, tomarem conhecimento do recurso a técnicas de PMA, incluindo nas situações de gestação de substituição, ou da identidade de qualquer dos participantes nos respetivos processos, estão obrigados a manter sigilo sobre a identidade dos mesmos e sobre o próprio ato da PMA», ditava a legislação, norma agora declarada inconstitucional, uma posição diferente da que tinha tido o TC em 2009. 

Garantia-se o acesso a informações de natureza genética, importante por exemplo para saber se havia alguma doença hereditária, mas não a identificação do dador. A exceção seriam decisões judiciais em sentido contrário ou se alguém que estivesse a pensar casar-se tivesse informação sobre a existência de um eventual impedimento legal, como poder ser irmão do futuro cônjuge. Neste caso, poderia desfazer a dúvida junto do Conselho de Procriação Medicamente Assistida, mas a lei mantinha a confidencialidade acerca da identidade do dador, exceto se este «expressamente» permitisse que fossem dados os seus dados à pessoa interessada. Pedido que nunca foi feito, admitiu ao jornal i Eurico Reis, que considerava a legislação em vigor «equilibrada».

Daqui para a frente, nada será igual. No Centro Hospitalar do Porto, o Banco Público de Gâmetas tem as próximas consultas marcadas para quarta-feira, visto que na terça-feira é feriado. Até lá são esperadas instruções.