Medicina familiar: que futuro?

A Medicina Geral e Familiar é importante demais para cair no esquecimento dos responsáveis, e é uma peça fundamental do S.N.S. que todos queremos defender

Há mais de um ano saiu na imprensa uma notícia que me chamou imediatamente a atenção: segundo as previsões do Ministério da Saúde, 1761 médicos de família iriam aposentar-se nos próximos cinco anos. 

A mesma notícia dava ainda conta de um relatório do Tribunal de Contas que, criticando a falta de médicos de família, apontava as causas dessa situação. 

Não há dúvida nenhuma de que o assunto é preocupante, tanto para os responsáveis do setor como para toda a população, que certamente já se interroga como ficará, quando perder o seu médico assistente. Confesso que também já me tinha questionado acerca do problema – e, com o passar do tempo, vou encontrando mais razões para estar preocupado e apreensivo com o futuro desta carreira.

Criada há mais de trinta anos, a Medicina Familiar – hoje uma especialidade como qualquer outra, reconhecida pela Ordem dos Médicos e por todas as organizações médicas nacionais e estrangeiras – começou por apresentar um programa que desde logo me cativou e entusiasmou inúmeros médicos, que aderiram ao seu projeto com total empenho e dedicação. 

Seria uma forma nobre e digna de acabar com o sistema antiquado das ‘Caixas de Previdência’, iniciando um novo modelo para ir ao encontro das necessidades da população. 

A criação de uma lista de utentes escolhendo livremente o seu médico de família foi um princípio feliz – já que, englobando todo o agregado familiar, deixava antever um trabalho sério, gratificante e promissor que, em articulação com os hospitais, cuidaria dos doentes, não só em situações de doença aguda como, acima de tudo, na prevenção.

Com o decorrer do tempo, porém, foi-se percebendo que a Medicina Familiar não correspondia às expectativas, em grande parte pelos problemas ligados à organização dos centros de saúde, nomeadamente a falta de recursos humanos nos diversos setores, culminando com as condições de trabalho impostas a todo o pessoal, trazendo consigo desmotivação e um descontentamento generalizado.

Cada clínico geral foi obrigado a ter uma lista de utentes exageradamente aumentada, não permitindo mais do que uma resposta parcial nos casos de doença aguda. 

A missão mais nobre da Medicina Familiar – a prevenção – está hoje esquecida, para não dizer abandonada. E os centros de saúde, pintados de outra ‘cor’ (agora designados Unidades de Saúde Familiar – U.S.F., com regras de funcionamento muito discutíveis e diferentes tipos de remuneração), estão transformados em gabinetes de contabilidade, onde tudo é avaliado em função de indicadores informáticos de credibilidade duvidosa e os doentes passaram para segundo plano.

Os resultados falam por si: os profissionais não estão satisfeitos, os utentes estão descrentes e os objetivos não estão atingidos, conclusão a que se chega com o aumento das urgências hospitalares devido à falha dos cuidados primários, o aumento dos casos de cancro, de doenças cardiovasculares e de diabetes, pondo em evidência uma vez mais essa enorme lacuna, como a imprensa vem tristemente chamando a atenção.

Não se percebe como não sai legislação adequada aos tempos que estamos a viver; nem como, passados tantos anos e tantas políticas diferentes, ainda não se resolveu o eterno problema dos portugueses sem médico de família.

Simplesmente lamentável! 

Segundo dados do portal do S.N.S. referentes a 31/7/2017, faltavam nos centros de saúde 516 médicos de família e havia 902 mil utentes inscritos sem médico de família, panorama esse que, nos dias de hoje, não parece ter sofrido alterações significativas.

É necessário acautelar o futuro enquanto é tempo. A Medicina Geral e Familiar é importante demais para cair no esquecimento dos responsáveis, e é uma peça fundamental do Serviço Nacional de Saúde que todos queremos defender. 

Não há qualquer hipótese de solução que não passe por uma reestruturação profunda do sistema, onde tudo seja revisto. Medidas pontuais ou alterações de pouca visibilidade, como tem acontecido até aqui, só servem para encobrir um problema que se agrava de dia para dia e ir adiando a sua resolução. 

Se se quiser resolver mesmo este dossiê – e servindo-me daquele pensamento extraído da sabedoria oriental – vamos precisar de: CORAGEM para mudar tudo o que tiver de ser mudado, RESIGNAÇÃO para aceitar o que não for possível mudar e SABEDORIA para distinguir uma coisa da outra.