António Sousa Ribeiro. “As Humanidades cometeram o erro de se colocar numa posição defensiva”

Catedrático da Universidade de Coimbra, António Sousa Ribeiro distingue-se entre a pobreza de imaginação com que a Academia hoje cede posições e contribui para que se morra cada vez mais de “inanição espiritual”. O tradutor e especialista de Karl Kraus é dos raros que, no Ensino das Humanidades, declara guerra ao quadro de prioridades de…

António Sousa Ribeiro leva mais de três décadas furando por entre a barulheira, tirando as horas que pode para ir sentar-se na fila da frente de um inultrapassável vulto do século XX, o satirista vienense Karl Kraus. Dele, este catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra tem aprendido e cultivado junto dos seus alunos esse talento feroz e o vigor infatigável necessários para ver para lá dos argumentos da cáfila de especialistas de última hora, esses “sicários numa esfera de ação indireta, sentados em casa, quando não têm a sorte de contarem anedotas num departamento de imprensa” e que “ensinam aos povos o medo dia após dia, até estes, com certa justificação, o sentirem verdadeiramente”. Galardoado no final de 2017 com o Grande Prémio de Tradução Literária, da Associação Portuguesa de Tradutores pela tradução do monumental drama “Os Últimos Dias da Humanidade” (Edições Humus) – que o Teatro Nacional São João encenou com um retumbante sucesso -, publicou há semanas um volume de “sátiras escolhidas” de Kraus. Esse foi o mote para uma conversa sobre as denúncias deste autor à cultura mediática e os atuais desafios que se colocam às Humanidades.

Disse que Karl Kraus tinha claro que a negatividade da sátira tem de se justificar pela existência de um ideal. No caso dele, de uma noção de humanidade.
Uma humanidade concreta – o termo pode estar um pouco estafado, mas aquilo de que aqui estamos a falar é de um humanismo concreto… É um facto pouco conhecido… E é preciso dizer, primeiro, que ele tinha uma situação financeira confortável, porque o pai era um industrial riquíssimo que se tinha mudado da Boémia para Viena (um movimento muito vulgar na altura), e que integrava a burguesia judaica. Tinha uma fábrica na Boémia que se manteve a fonte de rendimento da família. O que significa que, no pós-guerra, ele está a receber dinheiro em divisas fortes, e não é afectado pela inflação. Portanto, Kraus tem um rendimento próprio, que lhe vem da herança paterna, e permite levar uma vida sem constrangimentos… Mas esses recitais que fazia, que estavam cheios, e eram muito lucrativos, ele nunca ficou com esse dinheiro. Isso está tudo documentado.

Na revista?
Sim, ele documenta qual foi o destino do dinheiro. Deu dinheiro para as mais diversas instituições, escolas… Há um documento inédito que descobri nas pesquisas que fiz no arquivo Karl Kraus em Viena, e é um documento que nunca mais esqueci, porque estava escrito em braille – que não sei ler, mas tinha a versão transcrita –, e era de um menino de uma escola judaica nos arredores de Viena que, nos anos 1920, escreve a Kraus: “Meu caro senhor, queria agradecer-lhe muito, já que do seu último recital destinou os proventos à minha escola e há muito tempo que eu queria aprender a tocar violino. Tenho muito gosto por música, mas não tinha o violino e a escola comprou-mo com esse dinheiro, e assim vi satisfeito esse meu sonho…”

Este rapaz era cego.
Um jovem judeu cego. E, quando li isso, estremeci também ao pensar onde é que este rapaz terminou. Provavelmente terá morrido como tantos às mãos dos nazis. Mas existe também esse factor, pouco conhecido hoje, e que Kraus partilhava com os seus leitores… Esse gesto, e como se pode transformar a vida de uma pessoa. Este humanismo concreto não é apenas uma atitude do cidadão Karl Kraus, reflecte-se literariamente na forma como ele concebe a sua intervenção, e a função da sátira como algo que passa por criar condições para um mundo mais humano.

E na ausência dessas condições…
É por essas condições não existirem que a guerra são os últimos dias da humanidade. É um título muitas vezes mal compreendido, porque a humanidade não acabou, o mundo ainda aí está… E há algumas leituras muito simplistas que dizem: “Então, ele apregoou os últimos dias da humanidade, e cá estamos nós.” Aqui, humanidade deve ser entendido como um ideal. Ora, o que Kraus dizia era que, depois da guerra, as condições para a existência dessa humanidade estavam totalmente comprometidas, e daí a dimensão apocalíptica da sua sátira. E a sátira surge assim muitas vezes como um gesto desesperado de, apesar de tudo – e ele diz isso com muita clareza no prefácio do drama, dirigindo-se até a um futuro – fazer até mesmo uma confissão de culpa por pertencer a esta humanidade, imaginando que talvez algum dia as suas palavras possam ter ressonância.

Havia algum optimismo, então?
É um pouco em nome, por um lado, de um dever de memória, e, por outro, de uma esperança. Essa mesma noção nós encontramos num passo terrível, já não me lembro se nas cartas ou nos diários do Kafka, em que ele diz: “Existe esperança? Sim, existe. Mas não para nós.” A atitude do autor satírico é um pouco esta. Mas então, o que é que nós podemos fazer? Documentar isto. E intervir onde podemos intervir.

Há alguma intervenção mais notória nesse sentido?
Nos primeiros anos da República ele teve uma grande esperança de que as coisas pudessem estar bem encaminhadas, e o texto “Pão e mentira” é um exemplo da forma como ele sai literalmente em defesa do governo. Ele teve verdadeira esperança em que as coisas mudassem, mas acabou por perdê-la.

Já explicou o que lhe possibilitou as condições materiais para uma empreitada como a “Die Fackel”, revista que publicou durante 37 anos, com cerca de 922 números, quase 23 mil páginas, e foi seleccionando alguns textos que reunia espaçadamente em alguns volumes. Era essa a obra dele?
A obra dele era a revista, sim. Mas tem outros textos. Tem vários dramas. O mais conhecido é “Os Últimos Dias da Humanidade”, mas tem outros. 

Mas nesse ele utiliza a tal composição recorrendo à citação, e nos outros?
São dramas satíricos, sátira literária alguns. Tem um cujo título é, justamente, “Literatura”, e que é uma sátira aos círculos literários vienenses…

E isso foi pensado para ser representado?
Sim.

Foram representados esses dramas?
Muito escassamente. Alguns foram, mas raramente, e em parte porque ele próprio era muito selectivo… Na verdade, ele queria controlar tudo, tudo aquilo que acontecesse aos seus textos tinha de ser controlado por ele, e não era feita uma excepção para os textos dramáticos. Em relação a “Os Últimos Dias da Humanidade”, os grandes encenadores da época, como Erwin Piscator e Max Reinhardt, quiseram encenar o drama e ele não deu autorização, porque tinha um conflito com a visão do teatro deles, e queria exercer a sua autoridade até ao mais ínfimo detalhe. Exemplo disso era a maneira como ele acompanhava a impressão da revista. Hoje em dia nem seria possível. 

Por causa do fim da tipografia de caracteres móveis?
Bom, parece que o Eça também fazia um pouco isso. Mandava um texto para a tipografia, recebia as primeiras provas, e, depois, normalmente expandia. Por vezes, o que era uma pequena glosa de dez linhas, transforma-se num texto de 20 páginas. Isso está documentado, e eu trabalhei isso em vários dos textos dele, e, num dos arquivos que estão na Biblioteca Nacional de Viena, onde se conserva boa parte do espólio que foi salvo – isto em 1938, quando os nazis entram em Viena…

O espólio estava em casa dele?
Sim, mas, pouco tempo depois dos nazis chegarem, tudo o que estava no apartamento dele foi destruído. Só que, entretanto, alguns amigos dele tinham conseguido contrabandear para a Suíça boa parte do espólio… Enfim, é uma longa e aventurosa história. Foi contrabandeado para a Suíça e para outros sítios. Há um manuscrito que está em Jerusalém, há outro que está já não sei onde, quer dizer: dispersou-se bastante, mas o essencial está hoje nos arquivos da Biblioteca Nacional. Portanto, fiz esse trabalho de cotejar alguns textos, e chega a haver dez a quinze provas tipográficas, e o texto é diferente em cada passo.

E que outras peculiaridades descobriu?
Chegando às provas de página, quando a página não terminava na palavra que ele queria… Bem, dividir uma palavra no fim da página, isso nem pensar. E é algo a que hoje poucos paginadores mostram atenção, e uma coisa que me engalinha quando vejo… Mas o cuidado tipográfico de Kraus era lendário. Há um texto do Brecht em que ele comenta isso, e diz que o escrúpulo ético e o foco da sua atenção se mostra desde logo no cuidado com que ele organiza cada página da revista. Revista em que praticamente não há gralhas. Em todas as vinte e tal mil páginas podem encontrar-se meia dúzia de gralhas. 

E isso era tudo trabalho dele?
Sim, ele era o seu próprio revisor. Se lhe faltava uma vírgula, ou se havia algum desajuste, ele lá pedia novas provas, e, às vezes, já estava o número a ser impresso e mandava retirar… Tinha arcaboiço financeiro para isso, e tinha também uma relação privilegiada com o impressor, que foi durante muitos anos o mesmo. Aliás, quando ele morre, o Jahoda, em 1926 (se não estou em erro), o Kraus publicou um poema em sua homenagem nas páginas da revista.

Tornaram-se amigos?
Na verdade, isto representa o seu respeito pela materialidade do texto, a materialidade da escrita. O texto não existe se não tiver um impressor, se não houver essa colaboração profícua. E, portanto, o impressor era parte dessa produção literária, não era pura e simplesmente um executante. Portanto, Kraus controlava tudo até ao pormenor. Controlava a lista de assinantes da revista. E se se incompatibilizava com alguém que era assinante da revista… Tem até um texto, que aparece em vários dos números, em que diz que se reservava o direito de expulsar qualquer pessoa da lista de assinantes.

Para termos uma noção da distribuição, quantas pessoas chegaram a assiná-la?
É difícil dar-lhe um número. Variou muito. Os primeiros números da revista tiveram um sucesso estrondoso. O primeiro imprimiu 30 mil exemplares, e teve de ser reimpresso duas semanas depois. Temos de ter em conta, contudo, que na altura este tipo de publicações se vendiam nos quiosques, vendiam-se em todo o lado. Mas esses foram os primeiros números, antes do Kraus ter a sua persona literária configurada. Já tem alguns temas escandalosos, sobretudo o da corrupção. Normalmente, esse período inicial da revista é conhecido como a fase anti-corrupção, em que se envolveu nalguns processos muito polémicos, e alcança um universo de leitores muito expressivo.

E então ainda trabalhava com um corpo de redacção?
Não. Ele fazia tudo sozinho. Simplesmente, publicava textos de outros autores. Nunca teve um conselho de redacção ou algo do género. Em 1911, de facto deixa de contar com colaboradores, e tem aquele aforismo que cito no prefácio. 

“Já não tenho colaboradores. Tinha inveja deles. Eles afastam-me os leitores de que quero ver-me livre eu próprio.”
Ele tinha sempre estes jogos de palavras deliciosos, estes ditos de espírito que fazem da sua prosa algo extremamente sedutor e acutilante. Quanto à figura da exclusão e o exercício de autoridade, é algo que é consubstancial ao projecto da revista. Mas mesmo depois dessa fase, continuou a tirar milhares de exemplares, e tudo isso está mais ou menos documentado na própria revista. Mas é sobretudo a partir dos anos 1920 que o número de assinantes decresce, e, no final da vida, o último número é já publicado num contexto muito complicado, já depois da ditadura austro-fascista.

Mas além dessa lista de assinantes, o “Die Fackel” também estava à venda nos quiosques?
Sim, não era uma revista só para assinantes. Vendia-se em livrarias e quiosques, e não apenas na Áustria, mas no espaço alemão. Embora, no território alemão, as várias tentativas que o Kraus fez de penetração, fosse em Berlim ou noutros cidades, não foram muito bem sucedidas. Mas tinha também muitos leitores alemães. E mandava-a a muitos amigos, e em tempo de guerra, até a alguns que estavam na frente. Mas, do ponto de vista editorial, a revista foi um empreendimento bem sucedido. Não era uma revista minoritária, à imagem das pequenas revistas modernistas, para públicos muito exclusivos.

Não se confundia com uma actividade meramente artística ou clandestina?
Na verdade, tem uma fase de recepção pelo grande público e depois outra fase em que o vai limitando. Mas a revista continua sempre a ter peso, e isto apesar desse fenómeno de ele nunca ser citado nem referido pelos jornais. A estratégia que a “Neue Freie Presse” [diário mais vendido à epoca na Áustria e de grande repercussão em todo o mundo] usa para responder aos ataques dele foi justamente silenciá-lo. Há alguns episódios até bastante cómicos na relação dele com esse jornal, com eles a fazerem todos os contorcionismos possíveis para não o nomear.

E ele?
Pagava na mesma moeda, com um ódio total. O Moriz Benedikt, o editor do jornal, aparece no epílogo de “Os Últimos Dias da Humanidade” na figura do senhor das hienas. Aquele à frente de um exército de hienas, que são os jornalistas que ele comanda. 

O “Die Fackel” chegou a ter números de apenas 20 páginas outros de algumas centenas…
Sim. O número mais volumoso tem 300 e tal páginas.

E em termos de periodicidade?
De início, saía de três em semanas, normalmente. Mas os números eram menos volumosos. Depois não. Deixou de respeitar qualquer periodicidade, e havia momentos de silêncio prolongado. No início da guerra há um grande hiato, e depois vai saindo irregularmente. Podia sair de dois em dois meses, ou três em três. Saía quando ele entendia que tinha material. Na verdade, a partir daí, cada número é um livro. É assim que os concebe, até na proporção entre os diferentes tipos de texto. O poema… (publica bastantes poemas seus na revista), o texto satírico, a glosa…

O que pensa dele como poeta?
Tem alguns belíssimos poemas. Um dia espero ainda traduzir e publicar alguma selecção dos poemas. Tenho dois ou três traduzidos, mas hei-de ocupar-me de mais alguns. Não é, no entanto, a faceta mais determinante dele. Agora, como poeta satírico é quase inigualável. De resto, pelo menos um décimo de “Os Últimos Dias da Humanidade” é em verso. E o que me deu mais trabalho a traduzir nem foi o verso satírico, que até se consegue. É sempre rimado, portanto tem de se respeitar a rima… Ele tinha uma noção um pouco convencional da poesia. Não direi que é um poeta de primeira grandeza… Se olharmos para outros nomes do século XX de língua alemã, seguramente que não. Mas alguns dos poemas, apesar da sua teoria conservadora, do ponto de vista formal também, são bastante revolucionários. São densos, são difíceis do ponto de vista da sintaxe, e poeticamente muito complexos. Ele não cultiva o lirismo no sentido banal da palavra. Essa faceta leva-a a sério, até a par com a do autor dos dramas. Mas textos narrativos não tem. Isto embora haja uma forte dimensão narrativa nos textos satíricos. 

Hoje, têm-se discutido muito as questões identitárias, e em particular o feminismo. Talvez não seja a primeira coisa que vem à memória quando se fala de Kraus, mas ele parece ser aguerridamente feminista.
Esse é justamente um dos pontos em que, sobretudo na fase inicial da revista, a obra dele se torna mais problemática. Por que ele é pioneiro no feminismo no sentido em que, nesta época, que é uma época vitoriana, de moral e hábitos muito conservadores, a defesa que ele faz em textos como “A Muralha da China” é, desse ponto de vista, portentosa. Como julgo que sublinho no prefácio, ele aí leva as coisas quase até ao paroxismo.

Em que é que a visão dele difere da do seu tempo?
Tem uma visão quase mítica da sexualidade da mulher. Isto é: o homem enquanto indivíduo sexual é uma insignificância quando comparado com a mulher. É quase como se fosse um mito da natureza, e, desta perspectiva, a civilização ocidental, ou a moral cristã, secou as fontes da vida ao reprimir a sexualidade feminina. É um tema que surge na dialéctica do Iluminismo: como a sociedade disciplinar da modernidade começa pela repressão do ser humano sobre si próprio, pela repressão da natureza pelo ser humano. E isto em nome da razão ou de outro princípio qualquer.

E o que pretendia ele?
Kraus quer abrir essas comportas. Assim, há nele, e de uma forma inaudita para a época, uma abordagem chocante. Publica uma colectânea de textos da revista que tem o título “Moral e Criminalidade”, e é basicamente sobre a criminalização da liberdade da mulher, nomeadamente no que toca aos processos por adultério. Portanto, ele segue alguns desses processos, documenta-os na revista. Além do adultério, situações em que a mulher matou o marido…

Onde é que esses casos se passam?
Há um que se deu na própria Áustria, e que é um caso em que a mulher matou o marido. E o que é que acontece à mulher? É sempre exposta publicamente, é sempre alvo de um forte juízo público, e há todo um tratamento corrosivo da questão da sexualidade… Esse é também um tema quase obsessivo dessa primeira fase da revista.  E ele reúne depois os textos mais significativos nessa colectânea.

A par dessa defesa da mulher há depois um outro lado?
Há uma dimensão claramente misógina. Esta quase mitificação da sexualidade feminina vai a par com o menosprezo do intelecto feminino. As sufragistas, por exemplo, são objecto de sátira. Ele tem uma coisa horrível num dos números da revista… É uma das primeiras montagens – também nisso ele é pioneiro, e no uso da fotografia como documento –, em que surge uma sufragista a ser levada por um polícia, a gritar, e a legenda dele diz: “um grito de volúpia”. É horrível, pá. Isto hoje em dia é horroroso.

E isso mudou?
Felizmente ele depois deixou-se disso. O que é fruto, aliás, da relação que estabeleceu com algumas mulheres que estavam ao seu nível intelectualmente, e que ele leva muito a sério enquanto parceiras intelectuais. Mas naqueles aforismos dos primeiros anos, tem vários que hoje nos são difíceis de ler sobre esse tema. Tem um que é qualquer coisa do género: “A presença de uma mulher no meu gabinete de trabalho incomodar-me-ia tanto como se aparecesse um germanista no meu quarto de dormir”. Claro, que ele depois teve relações íntimas e intelectuais, até de colaboração, sobretudo com a mulher com quem ele esteve mais tempo e com quem ficou até ao fim da vida, e que o levaram a mudar a sua atitude face às mulheres.

Mas faz sentido condenar uma pessoa por haver aspectos grotescos na sua obra à luz de um tempo novo?
Isto são as contradições próprias destas figuras. Ninguém dá um passo, por maior que seja a figura – e nem umas das maiores, como é claramente o Kraus – sem expor os seus limites. E, nalguns aspectos, ele partilha os preconceitos que são característicos da sua época. Não está para além deles. Não é nenhum santo de altar. É preciso também ter esta noção dessas contradições. Agora, no meio delas, ele tem essa visão que se confunde com a sua vida pessoal, na qual ele era um assumido libertino.

Pode contar algum caso?
Isto no sentido em que se dava muito bem com o Frank Wedekind [grande dramaturgo e romancista, um dos precursores do movimento expressionista de língua alemã], e havia uma actriz que andava com os dois ao mesmo tempo, porque não se conseguia decidir. E ele [Kraus] acha isso perfeitamente compreensível. Não tem qualquer problema em relação a isso. E isto porque, em primeiro lugar, está justamente a escolha dela. Portanto, em matérias de sexualidade ele acha que o homem se deve reduzir à sua insignificância e que a mulher é que é o elemento activo na relação. Ora, esta ideia da mulher como elemento activo é totalmente contra-corrente  em relação às concepções da época sobre o papel da mulher. Aí, claramente, ele está a contrapelo face ao seu tempo. Quanto a esses preconceitos intelectuais, esbarra nos seus limites. Assim, dizer que Kraus é um feminista não chega. Ele tem algumas concepções e práticas que vão ao encontro de lógicas de emancipação da mulher, sem dúvida, e desde logo no que toca à emancipação sexual – isso é inegável –, mas tem outras atitudes misóginas. Mas depois o tema praticamente desaparece das páginas da revista, sobretudo a partir da guerra. A partir daí as urgências são outras, e isso deixa de ter relevância. Um texto como “A Muralha da China” não volta a ter outro equivalente em momentos posteriores. 

Pensando agora no Kraus como figura precursora na crítica dos media, parece que estamos a chegar a um momento de plena legibilidade da sua obra satírica, na sua feição mais crítica. A crise da imprensa parece ter aprofundado a histeria nas suas tendências mais perniciosas, o que se torna tenebroso quando falamos de questões como as notícias falsas. O facto de haver hoje tão pouca sátira, da mais violenta e com consequências que não essa dos humoristas, que acaba por ser algo que alivia, ajudando a normalizar e engolir sapos…
A distinção entre sátira e humor é fundamental. São duas coisas que só superficialmente têm alguma coisa que ver uma com a outra. Um humorista não é um autor satírico. A sátira é outra coisa, embora nalguns contextos a distinção possa não ser tão fácil. Mas a distinção deve ser feita. É curioso que, e não sei se isto é um defeito de formação meu, mas aquilo que está a descrever sobre a situação actual dos media é para mim o potenciar de alguma coisa que já existe no princípio do século. Há uma definição muito famosa, que não é do Kraus, do jornal que, parafraseando, nos diz: um jornal é uma secção de publicidade que só se torna vendável acrescentando-lhe uma parte literária, ou uma parte noticiosa… E, portanto, a mercantilização é um efeito que, já nas cartas do Eça, enquanto cônsul em Bristol, e o gajo escreve aqui para os Negócios Estrangeiros a dizer que precisa de dinheiro para subornar um jornalista porque é a única maneira de pôr uma notícia, neste sentido ou noutro. A corrupção, por isso, é uma tentação desde os inícios da imprensa. E o que se percebe é que, desde os inícios do século passado, e olhando particularmente para o papel que teve a I Guerra, é que esse conflito funciona como a revelação do que está a ser urdido por trás. Torna mais fácil, ou mais praticável, a denúncia ou a exposição pública de lógicas que, noutro contexto, num tempo de paz, poderiam ser disfarçadas. Assim, essa quase indiferença, essa normalização… O tema da corrupção é um permanente foca da acção dele. Há um texto dele, já depois daquele de que lhe falei do Palácio da Justiça, em que ele satiriza os meios jornalísticos, e há uma frase de uma personagem que diz: “Agora não posso dar atenção a esse acontecimento porque estou muito ocupado a escrever um editorial que é para não sair, e tem de ser já para amanhã.” E ele explica que uma forma do jornalista ganhar a vida sempre foi ameaçar que iria sair a notícia X, sendo pago para que a notícia não saia. Obviamente, isto continua a acontecer. É claro que o grande tema aqui, hoje potenciado pelas redes sociais, pelos comentários… Hoje, ler esses comentários às notícias de jornal é mergulhar no abismo. Eu evito fazer isso, mas o que preocupa é que, se aquilo é de algum modo o reflexo do que está na alma do povo, então que raio de povo. É preciso, de facto, demitir este povo e eleger outro, como dizia a Brecht. Claro que tudo isso é muito ajudado pela ideia do anonimato. Mas a substância, ou o cerne da questão, continua ser o da relação irresponsável com a linguagem, não haver uma noção do peso da palavra. E por isso é que a Literatura e o ensino das Humanidades é mais importante do que nunca. É isso que justifica que não se desincentive estes cursos. E é uma das coisas que procuro fazer com os meus alunos, porque entendo que o ensino da Literatura passa justamente por ensinar como se lida com a palavra de forma responsável. Isto é, que responsabilidade acarreta a linguagem. E, hoje em dia, o facto é que essa noção de responsabilidade, por uma série de factores, a começar pelo acesso fácil à esfera pública (… basta ter uma conta no Facebook), e pela possibilidade de usar o anonimato, não ter de colher as repercussões por aquilo que se escreve, isso vulnera todas as nossas relações. E é por isso que a crítica de Kraus continua a ser tão actual. Não é que eu ache que ele tinha poderes divinatórios… Isso nenhum escritor tem, nem se trata de adivinhar o que aí vinha. Trata-se antes de definir um paradigma, e como, na verdade, continuamos a viver no mesmo paradigma, só que elevado a uma potência máxima, as armas ou os instrumentos de crítica que ele forjou – e o mais importante deles é a citação: recortar do contexto e fazer com que aquela frase que parecia muito inocente revele, afinal, toda a sua enormidade, se for colocada no contexto adequado para que isso aconteça, para que o efeito de revelação surja – mantêm a sua actualidade. Ele identificou o actual paradigma de uma forma que eu continua a achar inultrapassável.
E um aspecto que me parece muito curioso é o facto de a recepção do Kraus em França estar ainda em curso. Aliás, o Jacques Bouveresse tem um livro que se chama “Schmock ou le triomphe du journalisme. La grande bataille de Karl Kraus”… Ele é um filósofo da linguagem, um especialista de Wittgenstein, mas tem este livro recente sobre Kraus. E também o [Pierre] Bourdieu, que tinha vindo a desenvolver uma crítica dos media, e são pensadores que em determinado momento descobrem o Kraus e percebem que as conclusões a que estão a chegar já ele tinha ensaiado noutro contexto, muitos anos antes. E o curioso é como a recepção do Kraus em França está a ser muito norteada por este interesse de alguns investigadores de primeira linha na crítica dos media. Ora, está-se a desenvolver essa crítica a partir de um paradigma cujos termos foram identificados pelo Kraus. A actualidade de Kral Kraus é evidente neste campo. E a sua crítica da violência, a sua crítica anti-belicista, quem for ler hoje “Os Últimos Dias da Humanidade” não deixará de sentir como é um documento que mantém a sua veemência. Aliás, o Canetti diz isso num dos seus textos quando pretende explicitar o que foi que aprendeu com Kraus… (Tem várias frases lapidares. Tem uma prosa aforística, que aprendeu com o Kraus, em que procura conduzir a frase para que cada uma seja uma unidade em si.) E ele diz de Kraus que foi o mestre do espanto, ou o mestre da indignação. Diz que aquilo que a sua geração aprendeu com kraus foi um ódio insanável contra a guerra. Portanto, o potencial da crítica anti-belicista de Kraus é uma coisa de uma actualidade brutal. Por isso é que eu dizia, seja a guerra do Iraque, seja o Trump, seja o caraças, já estão lá, são personagens de “Os Últimos Dias da Humanidade” sem o serem. E que um autor consiga isso é qualquer coisa de extraordinário. 

Para terminarmos… Sei que uma das suas angústias e batalhas é a sua devoção ao ensino da Literatura, o seu esforço para que as Humanidades não venham a tornar-se um rincão dos estudos universitários. Hoje que é tão claro o perigo de a linguagem nos dominar pela falta de intérpretes qualificados. Como vê esta fragilização de tudo o que protege a consciência destes perigos?
Do ponto de vista neoliberal, e, aliás, crescentemente, o que é muito grave no que toca ao financiamento da ciência e, obviamente, os Estudos Literários, das Humanidades em geral, tendem actualmente para a irrelevância. O que é muito preocupante nos quadros de financiamento europeu que se perspectivam actualmente é que, não só as Humanidades, as Ciênscias Sociais também, vão tender a ter um papel residual se não lutarmos firmemente contra isso. E essa luta tem de ser feita também ao nível do Parlamento Europeu como noutros fóruns internacionais. Tem de haver vozes a defender uma concepção diferente das prioridades. Isto porque, sem o desenvolvimento do ensino das Humanidades, o que nós temos são analfabetos. Há bocado falava-se ali na reunião da FCT [a entrevista foi realizada depois de uma deslocação de António Sousa Ribeiro a Lisboa para participar numa reunião sobre o quadro de financiamento para os próximos tempos] na necessidade de quem propõe um projecto ter de classificá-lo do ponto de vista de atingir objectivos de desenvolvimento sustentável… E eu estava a pensar o que é que alguém nos Estudos Literários pode advogar na defesa do seu projecto como contributo a esse nível… Bom, só estou a ver uma hipótese: qualquer projecto na área dos Estudos Literários contribui para a alfabetização do ser humano e não há desenvolvimento sustentável com analfabetos. Isto dito curto e grosso, o que se ensina nas Faculdades de Letras é a ler e a escrever. (Obviamente, não num sentido superficial da palavra.) E esse é o valor das Humanidades. O bem primeiro do ser humano é a linguagem, e tudo aquilo que contribua para o exercício, a aprendizagem e a prática de uma consciência crítica da linguagem – que é o cerne das Humanidades – é absolutamente indispensável para uma sociedade democrática. Ou, traduzido numa fórmula, ou até um slogan: sem Humanidades não há cidadania responsável. Portanto, se queremos cidadãos, pessoas capazes de exercer a cidadania, a reflexão das Humanidades é incontornável. Assim, só nos resta lutar. Aliás, tenho escrito sobre isso, e uma das coisas que repito sempre que falo neste assunto é que as Humanidades muitas vezes cometeram o erro de se colocar numa posição defensiva. Ou até mesmo numa atitude passadista. As Humanidades muitas vezes defendem o Património, defendem o Passado. Não é isso que as Humanidades devem fazer. Devem colocar-se, sim, numa atitude ofensiva e dizer: Não, as Humanidades defendem o Futuro. Não há Futuro sem as Humanidades. Sem elas o que nos resta são os últimos dias da humanidade. Também isso está implícito no título do Kraus. E, no fundo, é o que há a dizer.