‘Não há um dia em que não receba queixas de médicos’

Em vésperas de três dias de greve dos médicos, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, fala de um clima generalizado de indignação, falta de material e desinvestimento no SNS. Deixa as reivindicações salariais para os sindicatos, mas concorda com a proposta de António Arnaut de uma carreira equiparada à dos juízes.    

‘Não há um dia  em que não receba queixas de médicos’

Nos últimos dias houve reuniões gerais de médicos em Lisboa, Porto e Coimbra. Com uma greve à porta, qual é o estado de espírito?

Das reuniões que foi possível fazer, sobressai em primeiro lugar que os médicos acham que esta greve se justifica plenamente. Apesar de acharem que pode não ter grandes efeitos práticos, que ao outro dia as coisas voltam ao normal, a verdade é que o facto de vários profissionais de saúde estarem a fazer greve mostra a indignação com o que se vive hoje nos serviços. É curioso que os médicos que participaram nas reuniões, mais do que apontar para os problemas específicos da classe, falaram da necessidade de defender o SNS, de os concursos para os médicos mais jovens serem mais rápidos, da importância que se deve dar à necessidade de renovação de equipamentos. 

Falaram de situações concretas?

Existem vários hospitais que continuam a ter equipamentos fora de prazo. Mesmo hospitais centrais. Há TACs da geração anterior que, apesar de permitirem uma boa imagem, têm uma radiação maior que tem um impacto na saúde das pessoas, em particular das que fazem múltiplos exames, como os doentes oncológicos. No fundo a preocupação neste momento centra-se na qualidade da medicina. 

Como disse, não foram apenas os médicos a marcar greve. Que leitura faz desta vaga de contestação? É uma questão política?

De todo. Se fosse o PSD seria igual. É uma preocupação com o futuro do  SNS.

O Governo tem desvalorizado as críticas contrapondo com o aumento de recursos e da atividade do SNS.

O Governo devia era agradecer à Ordem e às outras instituições da saúde o facto de alertarmos para deficiências que existem no SNS e que precisam de ser rapidamente resolvidas. Posso falar do exemplo mais recente do Hospital de S. João mas há inúmeros exemplos de pequenas grandes coisas que só vão sendo resolvidas porque nós chamamos a atenção e os jornalistas se interessam por isso. Se não fosse assim, provavelmente não eram resolvidas. Esta forma de atuar do Governo, que é igual à do Governo anterior – e só isso mostra que isto não tem a ver com cor política –  revela um problema de política de saúde. A opinião generalizada dos médicos que participaram nas reuniões é que o Governo e o Ministério da Saúde, ao estabelecerem que tem de haver restrições orçamentais e que para melhorar o défice é preciso manter uma linha de austeridade com poucas folgas, estão a poupar na saúde. Com isto, o que o dr. Paulo Macedo fazia e que o dr. Adalberto Campos Fernandes continua a fazer é, de certa maneira, empurrar os doentes para a medicina privada. E o setor privado tem crescido nos últimos anos.

Parece-lhe deliberado ou um efeito colateral desse objetivo político de manter o controlo orçamental? O ministro da Saúde é médico, conhece o sistema de Saúde, não vê esse movimento?

Eu acho que o ministro da Saúde não está a cumprir a missão dele. Isto não tem a ver com ser médico ou não. A dra. Maria de Belém não era médica. O dr. Correia de Campos não era médico.

Teve também algumas das suas decisões contestadas, desde logo o encerramentos de serviços.

Sim, tem é de haver uma linha de orientação. E se a linha de orientação é manter um baixo orçamento, de 5,2% do PIB para a Saúde, isto só é possível se os portugueses se dividirem e grande parte for para o privado. Acho que é esta estratégia que estão a seguir e tem um problema: ao não haver investimento suficiente no Serviço Nacional de Saúde, ao não se contratar quem é preciso, torna-se o SNS cada vez mais fraco. E quando se diz que o SNS é uma das maiores conquistas depois da liberdade, um fator de coesão nacional, é isso que está ameaçado.

Já sente que os doentes que recorrem por exemplo à sua consulta no Hospital de S. João são cada vez mais pessoas sem meios para procurar alternativa noutro lado?

Sem dúvida. E nota-se também que as pessoas estão a ficar revoltadas.

Quanto tempo se espera por uma consulta de urologia no seu hospital?

São tempos de espera elevados, tanto para a primeira consulta como para cirurgia. Os tempos de espera têm disparado. E é por isso que digo que quando o ministro vem dizer que se fizeram mais cirurgias e mais consultas, primeiro é preciso analisar bem os dados e, segundo, reconhecer que não chega.

Nos últimos meses liderou o grupo técnico que analisou a fiabilidade dos dados da saúde depois de uma auditoria do Tribunal de Contas ter alertado para limpezas artificiais das listas de espera. A que conclusões chegaram?

Ainda não entregámos o relatório, está na fase final. Não entregámos em parte pelo atraso enorme que tivemos em aceder a dados da parte da ACSS (Administração Central do Sistema de Saúde) e depois porque é preciso compatibilizar as conclusões entre as várias entidades presentes  – e pela primeira vez temos representantes dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, da Direção-Geral da Saúde, da Inspeção-geral de Atividades em Saúde, da Entidade Reguladora da Saúde, da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, da academia, dos doentes, um leque enorme de pessoas. 

Mas ficou mais tranquilo?

Tranquilo estou sempre, mas a situação não está fácil. Esta questão em torno da fiabilidade dos dados e métodos suscita sempre algumas dúvidas. No caso das cirurgias, é preciso perguntar quantos doentes foram operados. Não é a mesma coisa falar em cirurgias e em doentes. Um doente pode representar uma cirurgia ou dez, depende da forma como se registam os procedimentos.

Está a dizer que o número de cirurgias pode não refletir o número de doentes operados?

Sim. Antigamente registava-se apenas um procedimento e hoje registam-se os diferentes procedimentos de uma mesma operação. Isto não é errado, são atos cirúrgicos distintos, mas não significa mais doentes operados. Além disso, a verdade é que quando analisamos as listas de espera, e aí o relatório do Tribunal de Contas foi conclusivo, temos tempos de espera que não são clinicamente aceitáveis face até àquilo que são os tempos recomendados enquadrados pelo próprio Ministério. E quando falamos em situações prioritárias, ainda é mais grave.

Os últimos dados revelam que um quinto dos doentes com cancro são operados depois de esperarem mais tempo do que seria recomendável. É aceitável?

Não. Significa que a capacidade de resposta no SNS neste momento está em baixo. E os profissionais trabalham que nem uns desgraçados, nunca trabalharam tanto. É por isso, quando me pergunta o que vejo nesta contestação, é esta insatisfação generalizada e as pessoas sentirem que não têm muitas vezes as condições dignas para observar os doentes e lhes darem a melhor resposta. Ou precisar de um material para fazer uma cirurgia e ele simplesmente não existir.

Um médico partilhava comigo noutro dia que, ao ver-se sozinho numa escala só com internos, optou por não ir trabalhar e assim foi substituído por dois ou três especialistas. Sente este dilema de consciência por parte de mais médicos?

É o que tenho dito nas reuniões. Temos de ser médicos sem medo. Temos de não ter medo de dizer não. Ir mais longe implica, além de potenciar a capacidade de negociação com o ministério – e isso é um trabalho dos sindicatos –, dizer mais vezes não quando não temos as condições necessárias para iniciar os cuidados, nomeadamente intervenções cirúrgicas.

Isso exige também assertividade perante o doente. 

Sim, mas explicar ao doente também fará as pessoas perceberem que os médicos valorizam a sua segurança. Por outro lado, pressionam-se as administrações hospitalares a resolver os problemas. Se não dizemos nada e vamos usando o adesivo para colar uma peça à outra, ninguém compra nada, fica tudo na mesma. A gente consegue quase sempre improvisar – aliás uma característica dos portugueses é essa grande capacidade de desenrascar. Mas há um momento em que se deve parar e acho que este é o momento para exigir as condições adequadas, não é as condições super ideais, é as condições adequadas.

Uma das reivindicações da greve, além da limitação das horas extra ou da redução das horas de trabalho nas urgências, é a revisão das grelhas salariais para responder à concorrência do privado. Reclamar salários mais elevados num país onde o salário médio são 800 euros não pode parecer estranho a uma grande parte da população?

Os médicos devem ser remunerados de acordo com o conhecimento e responsabilidade que têm.

O pai do SNS António Arnaut propôs  uma equiparação dos salários dos médicos aos dos juízes. É por aí?

Até concordo com essa proposta, embora não me compita como bastonário estar a falar disso. De facto um alto magistrado não tem mais responsabilidade do que um médico. Lidamos com a vida das pessoas. Um médico, ao operar, se algo falha ou corre mal está sujeito a pagar uma indemnização ao doente e aparecer na capa de jornais. Isto raramente acontece aos juízes, aliás acho que os juízes estão isentos de pagar indemnizações: podem ser penalizados pela magistratura mas não pagam indemnizações. A proposta do Dr. António Arnaut no sentido de terem uma carreira idêntica à dos magistrados parece-me sensata: não iriam ganhar muito mais mas é um bom ponto de comparação. Outro aspeto que me pareceria interessante seria fazer algo como foi feito nos EUA ou Canadá que é encontrar fórmulas para tentar saber qual é o valor justo da remuneração das várias áreas profissionais em face das funções e responsabilidade de cada um.

Um tribunal deu recentemente razão a uma médica de família que tinha doentes a mais. Os sindicatos defendem que as listas dos médicos regressem aos 1500 doentes e não os atuais 1900. Que relatos lhe chegam dos centros de saúde?

Os cuidados primários em Portugal têm uma característica única que é termos médicos que trabalham nas chamadas na UCSP e USF modelo A e outros nas USF modelo B, onde há mais trabalho de equipa, as pessoas estão mais coordenadas, há melhores remunerações, todos estão articulados para dar resposta aos doentes.
Enquanto nas UCSP, centros de saúde convencionais, vão-se acumulando os doentes sem médico…
Sim. Há um sentimento de insatisfação e um fosso que é preciso resolver. Se porventura o melhor  modelo é o B, é preciso dar incentivos para todos passarem a modelo B. 

Vê uma estagnação nessa reforma dos cuidados primários?

Completamente. No ano passado não houve nenhuma passagem de USF do modelo A para o B. Isto diz tudo. Não tem havido uma aposta forte nos cuidados primários. No fundo acham que as USF modelo B são menos rentáveis ou mais caras, o que num estudo pedido pelo Governo se mostrou que não era verdade e que a transição pouparia milhões de euros.

O ministro da Saúde tem sido alvo de críticas mais duras por parte do BE e PCP. Adalberto Campos Fernandes tem condições para  governar até ao final da legislatura?

Acho que o ministro tem de decidir aquilo que quer fazer, se não vai ficar na história como o ministro que menos fez na área da saúde e o que fez, na nossa opinião, foram asneiras. A última foi o reconhecimento de licenciados em medicina tradicional chinesa. Até o dr. Paulo Macedo se recusou a assinar esse diploma.
Mas avançou com a regulamentação das terapêuticas alternativas.
Regulamentar é uma coisa, reconhecer um curso é outra.

Esta não é uma resistência corporativista dos médicos?

Não. A Ordem tem o dever de defender a ciência e penaliza os médicos que cometem erros na prescrição ou não executam as boas práticas e o estado da arte. A medicina tem evoluído a grande velocidade. Através do método científico foi possível descobrir medicamentos e curar doenças até aqui incuráveis, como a hepatite C, ou tornar doenças mortais em crónicas, como a sida.  Quando sabemos isto tudo, custa-nos aceitar que se legalize e se atribua validade científica através do reconhecimento de uma licenciatura a práticas que não passaram o crivo da fundamentação científica. 

A OMS reconhece a acupunctura.

A grande massa da medicina tradicional chinesa não é a acupunctura mas a fitoterapia. Aqueles produtos todos que têm aqueles rótulos que dizem ‘bom para doenças renais, doenças do coração, ansiedade’. Toda a gente percebe que aquilo não pode funcionar assim. E com isto passam a ter um estatuto igual a um medicamento. E mais: os medicamentos têm de ser submetidos a ensaios clínicos rigorosos, ter a aprovação do agência europeia do medicamento, do Infarmed… E depois temos estes medicamentos que são usados sem qualquer estudo. Mas antes de fazer este desvio, dizia que o ministro corre o risco de ficar na história como o ministro que menos fez pelo SNS e é uma imagem que ele seguramente não quer deixar. Portanto, se não quer deixar esta imagem, tem um ano e meio de mandato e tem de bater o pé no Governo para que a Saude seja valorizada.

Até aqui tem havido sintonia entre Saúde e Finanças. 

Essa sintonia favorece o ministro das Finanças e desfavorece totalmente o ministro da Saúde. Provavelmente, se fosse feita uma sondagem da popularidade dos ministros, deve estar cá em baixo quando já esteve no topo. Os portugueses não são estúpidos. Dizer ‘Somos todos Centeno’ não o valoriza e depois Centeno dizer ‘Somos todos Adalberto’ também não. Claro que está bem: o dinheiro está a ser canalizado maioritariamente para as Finanças.

Centeno tem sido uma figura muito presente no debate público e político em torno dos problemas de Saúde, com um papel mais evidenciado do que o do primeiro-ministro. Espera uma intervenção diferente de António Costa?

Acho sinceramente que a situação atual exige intervenção do primeiro ministro. Ou para dar força ao ministro ou para arranjar outro ministro. Neste momento ou deixam o dr. Adalberto Campos Fernandes governar em termos daquilo que é a sua pasta e ele fica livre e com o orçamento adequado – e não é preciso inventar muito, existe uma despesa média da OCDE em termos de percentagem do PIB que não atingimos… Ou o deixam governar pelo menos com isso e avançar com as suas ideias ou então mais vale deixarem-no sair. Estamos a viver uma situaçao em que toda gente já percebeu que o SNS está enfraquecido por isso não acredito que o ministro da saude tenha percebido isto. Está impotente para resolver a situaçao e não sei porquê, não consigo entender.

Mas tem algum palpite?

Não sei. Acho que o Governo, através do primeiro-ministro, acabou por apostar tudo nas Finanças contrariamente ao que seria de esperar do Partido Socialista e continua a apostar tudo nas Finanças. Porquê? Porque teve sucesso nas Finanças e isso permitiu ao ministro Centeno ocupar um lugar importante na Europa. Pode haver aqui uma estratégia política: não me admiraria que, aproximando-se as eleições, se aumentassem os salários das pessoas e se fizessem algumas coisas na área da Saúde ou da Educação. 

O ministro Mário Centeno já garantiu que não fará nada para ficar apenas na fotografia.

Vamos ver.

O MP está a investigar os contratos dos contentores do Hospital S. João onde funciona a pdiatria, renovados várias vezes a empresas das mesmas pessoas. Trabalha no hospital. Não se comentava nada?

A questão das novas instalações para a pediatria é falada há muito tempo. Esta questão dos sucessivos contratos não conhecia. O que sabíamos é que as crianças ali não estão bem e os contentores são uma porcaria. Falou-se várias vezes nisto publicamente, mas não se resolveu o problema. Agora resolveu-se porque foram os pais das crianças que vieram a público e isso tem uma força maior. E uma coisa também quero sublinhar: o diretor do hospital reconheceu que as coisas não estão bem. Não me lembro de um conselho de administração dizer que as condições na sua instituição são miseráveis. Acho que também foi um ponto de viragem e aparentemente a situação vai ser resolvida. Aparentemente.

As ordens juntaram-se para a realização de uma Convenção Nacional da Saúde em junho e vão apresentar uma proposta de pacto para a Saúde. Já disse que gostaria de ver um compromisso entre os principais partidos. Já iniciaram conversações com PS e PSD?

Não. O que vamos fazer é primeiro ter um compromisso ou um acordo com todas as ordens profissionais da saúde, associações de doentes e instituições que vão participar na convenção. Depois de termos um documento com os pontos consensuais vamos apresentá-lo ao Presidente da Republica e a todos os partidos, mas isso será depois da convenção.

Acredita que é este ano que este pacto verá finalmente a luz do dia?

Acredito. Claro que não pode ser um pacto para a saúde global, não se pode ter todos os pormenores, cada partido tem a sua visão. Para mim, um bom compromisso à cabeça seria ter um orçamento fixo correspondente à média da despesa pública em saúde dos países da OCDE, que é 6,5% do PIB. Penso que existir um orçamento deste tipo, eventualmente orçamentos plurianuais com alguma previsibilidade, como defende por exemplo a Apifarma, permite até alguma poupança pois impede que se acumulem dívidas que saem mais caras ao Estado. Penso que isto pode ser consensual entre todos.

Leva pouco mais de um ano de mandato. Recebe muitos contactos e solicitações dos médicos?

Não há um dia que não receba denúncias e queixas de médicos, de falta de material, de internatos que não estão a ser feitos nas melhores condições.

Sente que o conhecimento que tem hoje do SNS é muito diferente do que tinha antes de ser bastonário?

É muito maior. Conhecia sobretudo o Norte e há grandes diferenças no país.

Até agora o que é que o deixou mais chocado?

O desinvestimento, a falta de manutenção. Ir visitar serviços que não têm condições de dignidade para as pessoas. Falo de Gaia que foi o último hospital que visitei: é incrível as condições em que trabalham aqueles profissionais, doentes em macas nos corredores, pelas salas, homens misturados com mulheres. Há situações que é emergente resolver e nos deixam indignados. Esta é a maior preocupação que tenho e não vi isto apenas em Gaia.  

Está em cima da mesa uma proposta de remuneração do cargo de bastonário. Já está concluído esse dossiê?

Está a ser discutido internamente. O estatuto da Ordem dos Médicos prevê que os órgãos executivos possam ter um vencimento. Há uma comissão independente que está a avaliar a possibilidade de o bastonário e dos presidentes dos conselhos regionais poderem ter um vencimento. Nem sei se isso vai ficar feito este mandato.

Falou-se de um vencimento bruto na casa dos 6000 euros. É um valor justo para o trabalho?

É uma questão que passa pela assembleia de representantes e está em discussão publica entre os médicos, é o valor equivalente a um assistente hospitalar graduado sénior, portanto um valor que poucos médicos alcançam quando chegam ao topo da carreira. Foi esse o valor que foram buscar.