Lídia Jorge. Não aceitar que a vida seja só a vida

“O que me leva a escrever é a vida, ela e o sonho, é o não aceitar que a vida seja só a vida”. A frase ganha nova força com o anúncio do seu novo romance: “Estuário”, um livro onde o desenho do futuro e a literatura se enlaçam

Algarvia, de Boliqueime, Lídia Jorge – justamente reconhecida como romancista mas também autora de vários livros de contos (O Belo Adormecido, 2004; O Amor em Lobito Bay, 2016) e uma peça de teatro (A Maçon, 1997) – é um nome sonante da ficção portuguesa, por diversas razões, das quais há sempre que destacar  a intensidade do seu discurso, apostado numa releitura da História como matéria de ficção, sugerindo implicitamente a autora que esta é, em primeiro lugar, discurso e, como tal, motivo e produto de elaboração ficcional.

O conjunto da sua obra, pelo qual recebeu, em 2006, o prestigiado prémio ALBATROS da Fundação Günter Grass ou, mais recentemente, o Prémio Vergílio Ferreira 2015, constituindo uma das mais coerentes e consequentes produções ficcionais da nossa literatura nas últimas décadas, é atravessado por um acontecimento histórico de profundo alcance, a Revolução de Abril de 1974. Importante, nele, é também a centralidade da figura feminina, na sua força poderosa e subversiva, mas socialmente invisível.  

Licenciada em Filologia Românica pela Universidade de Lisboa, a autora do premiadíssimo O Vale da Paixão (1998), que tem também produção no domínio do ensaio e da literatura infantil (O Último Voo do Pardal, 2007; O Romance do Grande Gatão, 2010) cresceu num Algarve de dificuldades materiais e de escassez cultural, no seio de uma família de camponeses que cultivava o gosto da leitura. O apelo da escrita surgiu ainda na infância, enriquecida por uma pequena biblioteca que herdou do bisavô e por um pecúlio de vivências que a partida para África, em 1969, haveria de alargar, imprimindo-lhe uma intensidade dolorosa.

Não conseguiu, como era seu desejo, calçar, um a um, todos os seus colegas de escola, mas haveria de manter-se atenta ao Outro, ao momento presente e fiel a uma ética da responsabilidade que não se compadece com atitudes de sobrevoo do espaço público. Nela, o exercício literário e a intervenção cívica não são esferas inconciliáveis. E disto nos falaria suficientemente o romance Os Memoráveis (2014), um livro sobre as nossas fragilidades, virtualmente superáveis, e as nossas possibilidades. Trata-se de um romance de intenção dupla: celebrar os 40 anos do 25 de Abril, acenar às gerações já nascidas em democracia com uma gramática pontuada por verbos como ‘despertar’, ‘intervir’, ‘resistir’, ‘agir’, numa luta que tem por meta a liberdade e a dignidade humana. Se há palavra que pudemos colocar no centro da vasta obra da autora de Contrato Sentimental (ensaio, 2009) essa palavra é ‘mudança’.

Mergulhando-nos na perplexidade causada pela Revolução de 1974 numa pequena comunidade algarvia, o seu aclamado livro de estreia, O Dia dos Prodígios (1980), que lhe valeu o Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências de Lisboa, abalou os leitores e o meio literário português. Construído como uma alegoria do país fechado e parado que Portugal era sob a ditadura de Oliveira Salazar, permanentemente à espera de uma força que o transformasse, é habitualmente apontado como um marco na cartografia portuguesa ficcional pós-revolução. Seguir-se-iam O Cais das Merendas (1982) e Notícia da Cidade Silvestre (1984), ambos distinguidos com o Prémio Cidade de Lisboa. Localizado no mundo urbano, este terceiro romance marca talvez um segundo momento da produção da autora, que então se afasta do Portugal rural (e do realismo mágico), alarga horizontes, voltando-se para histórias mais ligadas aos problemas do mundo contemporâneo, adoptando progressivamente uma linguagem mais directa (A última Dona, 1992; O Jardim sem Limites, 1995).

Centrado na Guerra de África, ousadamente apresentada por uma narradora feminina e exibindo uma proliferação de vozes em diversidade, A Costa dos Murmúrios (1988) abriu-lhe as portas para o reconhecimento internacional, tendo sido posteriormente adaptado ao cinema por Margarida Cardoso. É um romance que vem absorver a experiência colonial da escritora, que desenvolveu actividade docente em Angola, entre 1969 e 1970, e mais tarde em Moçambique, entre 1972 e 1974, antes de se estabelecer definitivamente em Lisboa. Em O Vento Assobiando nas Gruas (2002), outro dos ápices do percurso literário de Lídia Jorge (quem poderá esquecer Milene?), reencontramos aquela temporalidade inquieta da sua escrita, raras vezes reconduzível a uma linha sossegadamente horizontal.

Combateremos a Sombra (2007) e A noite das Mulheres Cantoras (2011), são títulos igualmente marcantes que vieram confirmar que Lídia Jorge, respondendo sempre ao apelo da interioridade, é, contudo, uma escritora avessa àqueles «comigos de mim» de que falava Álvaro de Campos. A obra que até aqui construiu, com coerência e constância qualitativa, vem contradizer André Gide, quando o escritor francês afirmava que com bons sentimentos não se podia escrever bons romances. Quem percorra os de Lídia Jorge achará neles a aproximação ao Outro, a capacidade de amar, um profundo apelo à tolerância, a experiência da confiança na vida, pese embora o desconcerto do mundo e a sua marca deceptiva.  

Anunciado está já o seu próximo romance: “Estuário”. O protagonista é o viajado Edmundo Galeano, regressado a casa depois de atribulações várias, sem parte da mão direita. Muito terá a contar.