A Europa vai à tropa

A vida dos recrutas durante a instrução militar não é a coisa mais agradável do mundo. Quem já lá passou sabe. Mas servir o país implica fazer sacrifícios. Ou implicava. Numa tentativa limite de cativar os jovens para a causa militar, o exército belga propõe uma experiência menos exigente: terminado o treino diário, os recrutas…

A vida dos recrutas durante a instrução militar não é a coisa mais agradável do mundo. Quem já lá passou sabe. Mas servir o país implica fazer sacrifícios. Ou implicava. Numa tentativa limite de cativar os jovens para a causa militar, o exército belga propõe uma experiência menos exigente: terminado o treino diário, os recrutas podem trocar as botas da tropa pelas pantufas no conforto do lar. «Não vamos para zonas de guerra com homens que têm saudades da mamã», dispara um veterano paraquedista citado na imprensa internacional. Há muitas objeções ao modelo belga. Contudo, ele aponta para um dilema crescente entre o ‘establishment’ de segurança europeu. Depois de décadas de progressivo desmantelamento da instituição militar – por razões ideológicas ou orçamentais – a generalidade das forças armadas europeias debatem-se com uma gritante falta de recursos humanos e com uma enormíssima incapacidade de recrutar o talento num quadro laboral competitivo e voluntário.

Há 20 anos, quando a maioria dos decisores vivia na utopia do paraíso pós-militar, isso não seria um problema. Mas o regresso da geopolítica e a progressiva desordem internacional, as ameaças à integridade territorial da União Europeia e a própria demografia do continente, mudaram o caso de figura. 

Há cada vez mais capitais a fazer marcha atrás e a reconsiderar a introdução do serviço militar obrigatório em nome da defesa e soberania nacionais. 

Emmanuel Macron, um liberal que não serviu nas forças armadas, propõe um recrutamento «universal» e «obrigatório». Não está sozinho. Forças de esquerda acompanham o presidente francês na sua promessa de campanha transformada em política.

A progressista Suécia, governada pelo centro-esquerda, reintroduziu recentemente a conscrição. O serviço militar será alargado às mulheres, como na vizinha Noruega, mas as autoridades garantem que só veste o uniforme quem tiver «interesse, vontade e motivação». Objetivo: aumentar as suas forças em 13 mil efetivos. A Alemanha, da grande coligação, tem planos para acrescentar 18 mil militares ao seu contingente de 180 mil efetivos e também quer discutir o serviço militar obrigatório. A Polónia – mais populista, mais nacionalista e também mais próxima da Rússia – planeia crescimentos de 50% na sua força militar por via do recrutamento obrigatório. E nos Bálticos multiplicam-se milícias paramilitares como a Liga da Defesa Estónia ou a União dos Atiradores da Lituânia.

Do Mediterrâneo ao Báltico, do centro ao leste europeus, os sinais estão lá: os governos têm uma perceção aguda das vulnerabilidades de defesa dos territórios perante novas (e velhas) ameaças. 

E nós? Portugal aboliu o serviço militar obrigatório em 2004. E nos últimos dez anos, as Forças Armadas (FA) perderam 25% dos efetivos. Uma razia de mil militares ano. As FA estão já a operar bem abaixo do contingente mínimo inscrito na Lei – 30 mil militares – e o Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas não esconde que os três ramos «não estão a conseguir recrutar efetivos». 

Como acontece com os pares europeus, talvez tenha chegado a altura dos decisores nacionais (muitos deles abolicionistas do serviço militar na década de 80, quando faziam política nas jotas) fazerem perguntas importantes. O nosso modelo é ou não eficaz na blindagem da integridade territorial e na defesa dos cidadãos? É ou não garante, presente e futuro, da soberania nacional em todas as suas dimensões? Está ou não preparado para promover a grande estratégia nacional e ser instrumento eficaz na defesa de uma ordem constitucional livre e democrática que enfrenta ameaças crescentes? 

A Europa vai à tropa. Por cá, os decisores políticos têm de decidir se calçam as botas ou se ficam de pantufas.